Artigo | Quem é bandido? E quem é cidadão de bem?

    A definição cabe à própria polícia: bandido é quem os policiais decidem combater. Quem apoia a violência de Estado projeta nos policiais a força que queria ter, em busca de um gozo sádico

    Ilustração: Junião

    Quando minha avó dizia que “as palavras têm poder”, encarava eu como uma crendice segundo a qual os meros sons proferidos pela boca teriam o condão de atrair energias cósmicas positivas ou negativas. Em resumo, uma bobagem. Observando nosso sistema de segurança pública e justiça criminal, no entanto, constato que as palavras têm não só poder, mas o maior deles: o de decidir sobre vida e morte. A distribuição dos estigmas popularmente expressos por “bandido” e “cidadão de bem” funcionam como roleta a definir quais indivíduos cairão no alcance da barbárie e quais permanecerão no espectro da civilização.

    Na internet, páginas que exaltam a violência policial e não raro defendem execuções sumárias possuem milhões de fãs. Os textos, as imagens e os comentários nesses fóruns digitais cultuam a morte e uma simbologia macabra de facas e caveiras, característica dos destacamentos de elite da Polícia Militar no Brasil. O discurso legitimador por trás desse fenômeno virtual é a dicotomia entre “bandido” e “cidadão de bem”. A dicotomia apontada está na base da relutância e da desconfiança da opinião pública com os ativistas dos direitos humanos, tachados de “defensores de bandidos”. Entender as razões de desenvolvimento e o modo de distribuição dos estereótipos “bandido” e “cidadão de bem” na atual sociedade brasileira é, talvez, o principal problema que se apresenta à nossa criminologia.

    Os estudiosos da vertente crítica [escola da criminologia que analisa como as condições sociais definem o que é considerado crime] têm farta produção enfocando a mídia como indutora de uma “cultura do medo”, que, por sua vez, seria a responsável por criar na população demandas punitivistas em relação ao Estado. Este, adotando o recrudescimento legitimado pela opinião pública, utilizaria as leis e a justiça criminal para selecionar, criminalizar e punir somente os comportamentos oriundos dos estratos sociais mais baixos ou politicamente ameaçadores, mantendo-os sob controle e perpetuando o status quo. Para esse modelo de explicação, o estigma de “bandido” é conferido não por um critério ético uniforme, mas pela correlação de forças políticas, econômicas e de discurso que conflitam entre si.

    Por outro lado, existe uma crença corrente de que a raiz da criminalidade no Brasil está na impunidade. Operadores do direito, meios de comunicação e cidadãos em geral falam repetidamente nos baixos índices de resolução de crimes pelas Polícias Civis e apontam as leis penais e processuais penais como lenientes. É bastante conhecido o lema “A polícia prende e a Justiça solta”, presença garantida nos telejornais. Tal falta de fé nas respostas judiciais estimula, inclusive, uma subterrânea simpatia por resoluções imediatas da tropa armada, ou seja, mais e mais violência policial, execuções, facas e caveiras. Pode o problema ser colocado como meramente operacional, a ineficiência do Estado em proteger o “cidadão de bem” do “bandido”?

    Policiais assassinos não são “bandidos” porque permitem o gozo

    O público que curte as páginas que postam fotos de pessoas mortas pela polícia tem noção da ilegalidade do que aplaude; sabe da inexistência da pena de morte no Brasil em tempos de paz e também que, mesmo se esta existisse, não poderia ser aplicada sumariamente, sem processo penal com direito à defesa; mas se justifica invocando um sentimento moral de combate ao inimigo comum: o “bandido”.

    O jornalista Caco Barcellos, no livro Rota 66 (1992), investigou um grupo de policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) paulista que executou cidadãos sumariamente por anos a fio. Os casos descritos não se enquadravam na definição legal de legítima defesa, logo, tratavam-se de homicídios, ilícitos e culpáveis, assassinatos. A gravidade aumenta quando se verifica que confrontos foram simulados para esconder a intenção criminosa dos atos, que se deram, de acordo com as dinâmicas narradas, em virtude de um profundo desprezo pelos direitos civis e por despeito contra aqueles que resistiram, de qualquer forma, à autoridade policial, ainda que abusiva. Mesmo quanto às vítimas implicadas em crimes, a desproporcionalidade da Rota sacrificou vidas para preservar bens patrimoniais.

    Ainda assim, os policiais da Rota não receberam o estigma de “bandidos”. Ao contrário, foram acobertados por Inquéritos Policiais Militares (e, hoje, também, por inquéritos civis e julgamentos no tribunal do júri) parciais, condecorados com medalhas por “ato de bravura”, elogiados por superiores e alçados à condição de “heróis” por seguimentos da imprensa e da opinião pública. Por que isso acontece? Não se trata apenas de ignorância da população sobre os métodos dos setores mais violentos da PM, ou de uma crença generalizada nas versões de “trocas de tiros”, pois, conforme apontado, páginas virtuais que exaltam símbolos de violência policial, como facas e caveiras, e encorajam execuções são curtidas por milhões de pessoas, a despeito da ilegalidade dos comportamentos ali expostos. A questão, portanto, é mais complexa. De alguma forma, os estigmas “bandido” e “cidadão de bem” não são distribuídos tendo como critério exclusivamente o respeito ou o desrespeito à lei.

    Devemos observar que, no senso comum sobre os temas segurança pública e criminalidade, ocorre um direcionamento das pulsões agressivas contra um inimigo externo — um fenômeno conhecido dos estudiosos da psicanálise freudiana, que o identificam com maior clareza em particulares momentos históricos, como na Alemanha nazista. Essa necessidade de eleger um inimigo será tão mais necessária quanto mais heterogênea, desigual e conflituosa uma sociedade for. Ocorre que, em tempos de paz, não existe um inimigo fora do território que possa aglutinar em sua figura essa descarga das pulsões, logo, faz-se necessária a criação do inimigo.

    O “inimigo” que criamos como objeto da descarga catártica de pulsões é o próprio estigma do “bandido”. E a partir da criação do “inimigo”, forçosa é a definição dos legitimados ao seu combate e nenhuma instituição de controle formal se enquadra tão bem nessa representação, dentro da mentalidade popular, do que as forças policiais. A polícia acaba assumindo, portanto, não o caráter de uma instituição submetida ao Estado Democrático de Direito, mas o da mão que possibilita a descarga das tensões e pulsões agressivas da massa, como os carrascos das torturas e execuções públicas na França absolutista.

    Alcançamos, neste ponto do artigo, um dos componentes que explicam por que a violência policial é tão aplaudida nas redes: ali vemos cristalinamente o direcionamento de pulsões agressivas a um “inimigo” externo, o “bandido”, que pelo seu sofrimento expia, canaliza e absorve as energias sádicas transbordantes das psiques.

    Se assim ocorre, policiais que infringem a lei não são estigmatizados como “bandidos” porque à atividade policial é atribuída, inconscientemente ou nem tanto, o papel não de garantir bens jurídicos e direitos, mas de impingir sofrimento aos “inimigos”, possibilitando a catarse, o gozo sádico e agressivo. Defender o recrudescimento da prática policial é, para muitos, defender a única possibilidade legitimada de expressão da sua própria violência. Aplaudem inclusive execuções porque projetam nos agentes repressivos uma força que queriam e não podem exercer pessoalmente. Perante fenômenos psíquicos tão poderosos, não admira que críticas a excessos da PM tendo em vista a “legalidade” sejam encaradas com animosidade, pois são estraga-prazeres. Conceitos intelectuais e abstratos, como lei e direito de defesa, podem pouco contra pulsões imemoriais.

    A partir do momento em que a sociedade desenvolve a necessidade do “inimigo”, o conceito em si de polícia é transfigurado e passa a significar “combatentes do inimigo”, levando a conclusões simplificadoras como “a polícia combate bandidos/José foi combatido pela polícia/logo, José é bandido”. Ora, se o “combate aos bandidos” passa a ser a própria definição da atividade policial, por decorrência lógica será a atividade policial que, a depender de quem combata, definirá quem são os “bandidos” e os “cidadãos de bem”. Policiais em confronto com a lei escapam à criminalização automática não só porque encarnam as projeções agressivas da massa, constituindo talvez sua principal expressão legitimada, mas também porque eles mesmos são a fonte das definições.

    Essa “ideologia da defesa social” não está encastelada nas elites econômicas, mas espalha-se vertical e horizontalmente, constituindo uma hegemonia, apesar de tanta heterogeneidade e conflituosidade internas em nosso país. A explicação apontada pelos criminólogos críticos é uníssona: mídia de massa. Acusam os grandes veículos de comunicação de induzirem uma “cultura do medo”. Coberturas sensacionalistas de crimes e um exagerado enfoque na violência urbana gerariam uma espécie de histeria coletiva a partir da qual os cidadãos legitimam mais punitivismo e permanecem passivos, acríticos às “verdadeiras” causas da criminalidade, como desigualdade e exclusão.

    É notório que algumas emissoras de tevê aberta dedicam a maior parte de sua programação à cobertura de delitos. Jornais impressos e portais on-line também priorizam essas mesmas pautas. Como a maioria dos veículos não têm condições de produzir conteúdo sofisticado, porque, afinal, talento e sensibilidade são exceção, não regra, buscam a audiência da forma mais crua, fácil e garantida: exploração do sangue. O conteúdo da mídia de massa é ao mesmo tempo uma resposta a essa demanda brutalizada e uma indutora oportunista. Estabelece-se um círculo vicioso: a massa tende a ser atraída pela violência, a buscar um “inimigo” e a legitimar seus “soldados” para o combate, e por isso a mídia, em busca de audiência, reproduz tais imagens e discursos; mas o faz em escala tão larga e repetitiva que acaba retroalimentando a concepção reproduzida, tornando-se sujeito ativo de perpetuação da violência.

    Corpo fardado, sangue impregnado

    Outro fator contribui para que policiais em confronto com a lei, ao invés de serem estigmatizados como “bandidos”, acabem protegidos por superiores e cresçam em prestígio dentro de suas corporações, é um fenômeno próximo ao que popularmente conhecemos por corporativismo.

    Segundo o sociólogo norte-americano Howard S. Becker, um grupo desviante em relação à ordem oficial cria discursos justificadores entre seus membros para neutralizar os conflitos com valores externos. Essa tendência autorreferencial observada em qualquer grupo minoritário, desviante ou não, assume uma expressão poderosa no caso da PM, tendo em vista os rituais empregados intensivamente para formar uma identidade militar. A antropóloga e psicanalista Cláudia Vicentini analisa, na etnografia Corpo Fardado (Editora UFG, 2014), o processo de substituição das referências civis pelas da caserna, num esforço de verdadeira conversão que culmina por incutir, na cabeça dos policiais, a oposição nós-eles, militares-civis. A convivência profissional, a disciplina do corpo, a indumentária, os símbolos e os sofrimentos aos quais são submetidos geram uma sensação de pertencimento não mais à “sociedade em geral”, mas ao “corpo” da PM.

    Com frequência observamos grupos minoritários desenvolverem vocabulário pejorativo em relação aos indivíduos do “mundo exterior”, tanto para demarcar e reforçar a identidade interna quanto para valorizar seus membros em relação aos não-membros. Becker notou, por exemplo, que os músicos de casa noturna, em especial os jazzman, chamavam os não-músicos de “quadrados” (square) e que se julgavam superiores a eles. Interessante perceber também a conotação moralmente negativa atribuída por diferentes denominações religiosas cristãs à palavra “mundano”. Os militares, por sua vez, se referem aos não-militares como “paisanos”.

    E em que consiste a identidade militar? Vicentini identifica um ethos, isto é, um sistema de valores em estado prático, que provém da ligação simbólica da PM, inclusive na farda, com o Exército, resultando na redução mental dos problemas de segurança pública a um “inimigo” a ser combatido, como se fosse uma questão de vitória ou derrota, típica das ações das Forças Armadas.

    Historicamente, o policiamento ostensivo nos moldes militares foi a saída encontrada para subordinar ao Estado os agentes públicos incumbidos da tarefa de preservação da ordem, numa época marcada pela crise de governabilidade provocada pela abdicação de Pedro I, em 1831. Ou seja, a adoção do modelo militar pelas polícias veio pela necessidade estatal de policiar justamente aqueles que policiavam a sociedade, dado que esses indivíduos eram provenientes do próprio segmento social contra o qual a organização policial era chamada a atuar: “(…) os pobres sem patrão, os ex-escravos, os descendentes de escravos, os mestiços, os artesãos, os biscateiros (…) os capoeiras, os estrangeiros, os negros forros e os portugueses de poucas posses (…)”, como afirma a cientista política Jaqueline Muniz em sua tese de doutorado Ser Policial é, Sobretudo uma Razão de Ser Muniz – Cultura e Cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Percebe-se, portanto, que parte essencial da identidade militar é exatamente a cisão com o mundo civil pela adoção de um ethos guerreiro.

    A identidade é completada pela submissão incondicional do corpo à hierarquia e à disciplina, na resistência ao desconforto e ao sofrimento corporais em patrulhamentos e treinamentos, na padronização dos gestos e da farda, no asseio, na discrição. Em suma, um processo de mortificação do eu que culmina com a dissolução da personalidade civil anterior e a assunção da persona militar, fechando o ciclo de controle e absorção total do indivíduo-policial pela instituição PM. Cada policial passa a ser a PM, conforme metáfora esclarecedora de uma das entrevistas transcritas em Corpo Fardado: “Não sei explicar isso não, isto (a Polícia Militar) está impregnado no sangue da gente”.

    Por consequência, o sentimento de pertencimento maior será com a caserna, com a identidade militar, não com seu contrário, o mundo “paisano”. Essa circunstância se soma à citada projeção psicológica da sociedade sobre os policiais como “combatentes de bandidos”, pois tal projeção externa não passa despercebida pela tropa, que a assimila e incorpora ao ethos guerreiro. Cada PM passa a se ver como a própria encarnação da ordem, pelo que seria impossível pertencer ao estigma “bandido”, que é o seu oposto, seu “sinal negativo”.

    O superdimensionamento do aspecto guerreiro explica por que policiais, em especial os dos destacamentos de elite, são tão compreensivos com colegas homicidas, mas não com colegas viciados em drogas ilícitas, por exemplo. Explica por que um superior pode acobertar um subordinado que tomou parte na execução de uma pessoa e ao mesmo tempo puni-lo exemplarmente caso desobedeça qualquer ordem direta. Se um policial viola o sistema de valores da PM, sofre punições internas, formais ou informais, ao passo que, se viola a lei com um proceder não justificado aos olhos da identidade militar, tem menos chance de conquistar a solidariedade do grupo.

    Se, no entanto, atitudes de cunho profissional tomadas e interpretadas pela tropa como expressão dos valores do guerreiro extrapolarem a legalidade e forem condenadas, confrontadas pelo mundo civil em razão disso, poderá ser desencadeada uma série de reações por parte da polícia: a projeção do valor de hierarquia interno para o exterior, legitimada pela superioridade pressuposta dos militares sobre os “paisanos”; a autoafirmação da identidade militar sobre a civil; a reivindicação do papel de “herói” na narrativa e dramatização públicas sobre a criminalidade; e, por fim, a reivindicação da prerrogativa de definir, a partir da identidade militar e não da lei “paisana”, quem são os “bandidos” e os “cidadão de bem”.

    Da “guerra ao crime” às milícias

    A permissividade quanto ao crescimento de tal ethos guerreiro, inclusive em sacrifício da legalidade, com o tempo acostuma os militares mais agressivos, que passam a se irritar pelo mero ato de dar explicações. A verossimilhança das versões oficiais para mortes diminui, degenerando em um mero fingimento cínico, despreocupado com a credibilidade da história perante os civis. E não se trata de incompetência para a comunicação, mas de expressão e demarcação de poder. O que se deseja é que baste ao mundo “paisano” a palavra afiançada pelo militar. Balizas e limites legais deixam de ser vistos como os critérios de uma boa operacionalidade e se transformam em entraves ao livre exercício do policiamento.

    Quando o policial ultrapassa o paradigma da legalidade no “combate ao inimigo”, nenhuma referência objetiva sobra para lhe controlar as ações, que com o tempo se desgovernam. Em termos coloquiais, pra quem abandona a lei e se acostuma a matar para o “Estado”, para a “sociedade”, é apenas mais um passo, um limite tênue, até começar a matar para a família, para amigos, por vinganças e, em última instância, por dinheiro.

    Uma classe de pessoas unida, corporativamente autodefensiva, treinada para o combate, com autorização para uso de arma, glorificada por pulsões instintivas da população, insuscetível de estigmatização criminalizante mesmo quando age contra a lei e capaz de definir por si mesma quem são “bandidos” e “cidadãos de bem”, constitui o instrumento perfeito para qualquer interesse ou projeto de poder, pois se torna um braço armado, um veículo de força, que pode agir de forma socialmente legitimada para a direção que se deseje.

    Assim, governos podem, por interesses eleitorais, informalmente estimular execuções para tentar diminuir, de modo artificial, os índices de alguns crimes em determinadas regiões, ao mesmo tempo em que resumem a criminalidade, perante a opinião pública, como uma ação de “inimigos”, os “bandidos”, traduzindo o problema, portanto, como algo externo ao Estado, e não relacionado às suas deficiências; candidatos podem angariar eleitores estimulando pulsões agressivas contra o “inimigo comum”; empresas jornalísticas podem ganhar audiência e patrocinadores com a exploração sanguinária e fácil dessas mesmas pulsões; empresários podem cooptar policiais para protegerem interesses patrimoniais particulares; comandantes podem controlar subordinados de acordo com quem desejem favorecer, a exemplo de “favores a políticos”, tendo em vista ambições de ascensão na hierarquia da carreira policial militar.

    Quando o processo de liberação do ethos guerreiro está avançado e este já adquiriu um caráter puramente instrumental, é o momento em que se formam milícias e grupos de extermínio. Uma das principais críticas à Operação Sexto Mandamento, deflagrada pela Polícia Federal sobre a Polícia Militar de Goiás, em 2011, foi não ter demonstrado a existência de um grupo coeso, de comando centralizado, que agia organizadamente para eliminar pessoas. Em vez disso, teria reunido em um único inquérito ocorrências sem relação direta entre si e deflagrado a operação. A rigor, foi realmente o que aconteceu, mas a crítica parte de uma concepção idealizada e simplista sobre o que seria um “grupo de extermínio”.

    O PM pode estar prestando segurança particular, transportando valores para postos de combustível, cobrando dívidas pra amigos, e mesmo assim se comportará como policial na postura, nos gestos, no linguajar de comando para com civis. Isso significa que, mesmo em desvio, continua pertencente à identidade militar e protegido pelos privilégios desta. E esse é justamente o ponto.

    À medida que um grupo minoritário se radicaliza na doutrina interna e se afasta dos padrões exteriores, as elaborações, as racionalizações, a ética do segredo e o corporativismo se acentuam, como precaução e defesa. Isso ocorre também nos grupamentos de elite da polícia, por mais que gozem de apoio popular. O quadro se torna ainda mais delicado quando agentes que derivam sua legitimidade e credibilidade do discurso legal e moral veiculado oficialmente, a exemplo dos governantes, se utilizam do caráter guerreiro da PM para objetivos ilegais.

    Estabelece-se uma relação de cumplicidade entre autoridades e executores na utilização comum do caráter guerreiro da PM para fins não-oficiais, gerando um contexto em que um depende do outro e implicitamente se chantageiam. As autoridades públicas passam fazer parte da “ética do segredo”, sendo a partir de então do seu interesse que as práticas criminosas do grupo minoritário do qual se servem permaneçam ocultas à população e recebam aparência legítima. Ao mesmo tempo, como não pode haver remuneração direta, os PMs comprometidos com o desvio estabelecido por superiores e políticos são protegidos e recompensados dentro da burocracia, com promoções.

    Nem seria preciso dizer que esse sistema informal de recompensa a ethos desviados entra como um vírus na lógica de hierarquia e disciplina da corporação policial militar. Da resiliência do vírus, porém, depende a reputação dos comandantes e autoridades públicas que se utilizaram ilegalmente da força, bem como a possibilidade de continuarem utilizando.

    No imaginário popular, “grupo de extermínio” remete a uma atuação planejada e contínua de PMs bem coordenados entre si com o fim específico de eliminar pessoas. No entanto, abusos e crimes de farda tendem a ser relativamente descoordenados, sem relação direta uns com os outros ou com uma fonte central e única de comando. Apesar disso, concentram-se sempre no pequeno contingente acostumado a matar sem consequências, porque usado pra toda sorte de interesses, sejam de superiores hierárquicos, de autoridades públicas ou do poder financeiro. Embora seja verdade, então, que apenas uma minoria na PM extermine, também é verdade que a condição de existência dessa minoria é a identidade militar contaminada pelo vírus institucional.

    (*) Valério Luiz de Oliveira Filho é especialista em Criminologia e Segurança Pública pela Universidade Federal de Goiás, em parceria com a Renaesp (Rede de Altos Estudos em Segurança Pública), do Ministério da Justiça. Fale com ele.

    (**) Esse texto é a versão reduzida de um artigo publicado nos Anais do I Congresso de Pesquisa em Ciências Criminais do Ibccrim e é fruto de pesquisa realizada no curso de Especialização em Criminologia e Segurança Pública da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, com orientação de Franciele Silva Cardoso. Leia a versão original do artigo.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas