Artigo | Tarados por torturadores

    Louvar Ustra não é o mesmo que celebrar Marighella ou Che Guevara com o sinal invertido; esses são admirados apesar da sua violência, e não por causa dela

    Em 1972, dia 28 de dezembro, eu e meu marido fomos presos. Em seguida, foram à minha casa e sequestraram minha irmã e os meus dois filhos – minha filha com cinco anos de idade e o meu filho com quatro. Ficamos na Operação Bandeirantes. No segundo dia, já estavam os meus filhos dentro da sala de tortura. Eu estava amarrada na cadeira do dragão [instrumento de tortura, era uma cadeira que dava choques], sem roupa, urinada, com fezes, com vômito, e meus filhos foram colocados dentro dessa sala da Operação Bandeirantes. Eles ficaram ali durante uns 10, 15 dias – iam e voltavam. Minha irmã foi torturada, grávida de sete meses. Os meus filhos são traumatizados até hoje. Tortura é para sempre.

    Ela já contou muitas vezes essa história. Os trechos acima pertencem ao depoimento prestado pela militante Maria Amélia de Almeida Telles à Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, da Câmara Municipal de São Paulo, em 2012. Amelinha contou a mesma história para diversas outras comissões, em audiências judiciais, palestras e entrevistas, diante de juízes, parlamentares, estudantes, jornalistas… Impossível imaginar o que dever ter sido para ela revisitar dentro dela um lugar de tanta dor, as lembranças da tortura sofrida junto com os filhos pequenos, e recontar dezenas, talvez centenas de vezes, a mesma história de dor e humilhação.

    Pois todas as vezes que Amelinha contou sua história não bastaram. São histórias que precisam continuar a ser contadas e recontadas, e contadas de novo, e mais uma vez. Porque muita gente não sabe de nada disso. E, por não saber, cai em armadilhas e comete erros.

    Uma das pessoas que aparentemente não conhece a história da Amelinha é a juíza Daniela Pazzeto Meneghine Conceição, da 39ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, que na semana passada autorizou um bloco de Carnaval a desfilar com o nome “Porão do Dops” e celebrar figuras como as do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi comandante do DOI-Codi (Departamento de Ordem Interna – Centro de Ordem de Defesa Interna), onde executou a tortura e morte de centenas de pessoas, entre elas Amelinha e sua família.

    Na sua sentença, a juíza afirma que a louvação em torno dos nomes de Ustra e do delegado Sérgio Paranhos Fleury, comandante do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), “não configura exaltação à época de exceção”, já que essas pessoas “sequer foram reconhecidas judicialmente como autores de crimes perpetrados durante o regime ditatorial, em razão da posterior promulgação da Lei da Anistia”. A juíza, pelo visto, não sabia que Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser oficialmente reconhecido pela Justiça brasileira como torturador, em 2008, numa ação movida justamente pela família Teles. O militar acabou morrendo em 2015, sem nunca pagar por seus crimes.

    Já os membros do grupo Direita São Paulo, criador do bloco Porão do Dops, certamente não carregam o mesmo desconhecimento da juíza. Eles sabem muito bem quem é Ustra. A escolha de um símbolo diz tudo a respeito de um movimento, e Ustra é um símbolo muito especial.

    O significado de Ustra

    Algumas figuras históricas podem ter várias dimensões. A Polícia Militar paulista elegeu como patrono, por exemplo, o tenente Alberto Mendes Junior, morto em 1969 por guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) comandadas por Carlos Lamarca. É um símbolo que evoca a coragem do soldado brasileiro, o sacrifício pessoal, o heroísmo.

    Várias ideias bonitas também estão associadas a outras figuras que os conservadores brasileiras adotam como símbolos. Os bandeirantes são louvados por terem desbravado o interior do país, Duque de Caxias é celebrado por ter sufocado rebeliões e vencido a Guerra do Paraguai. Mesmo quem escolhe louvar os presidentes da ditadura militar pode justificar essa admiração com base em eventuais progressos econômicos que trouxeram ao país, a despeito de suas atrocidades.

    A imagem desses heróis em pedra, como o Monumento às Bandeiras no Ibirapuera ou a estátua equestre de Duque de Caxias na Praça Princesa Isabel, ambos do escultor Victor Brecheret, mostram homens fortes e viris, uns empurrando uma piroga sertão adentro, outro erguendo uma espada rija em direção aos céus. São imagens que evocam heroísmo, não matança. Quando as histórias desses heróis são contadas, os cadáveres que produziram são deixadas de lado, como uma parte do mito que não interessa celebrar.

    Mas Ustra é um símbolo de outro naipe. Ele não venceu guerras, não desbravou o sertão, não se sacrificou, não trouxe progresso econômico. Ele não é um personagem com várias facetas. Ustra tem apenas uma dimensão: é um torturador. Se um dia recebesse uma estátua, teria que ser retratado arrebentando um ser humano pendurado em um pau de arara. E seus seguidores aprovariam. É do que gostam nele.

    E o Bloco Soviético?

    Uma análise que buscasse “o caminho do meio”, supostamente longe dos extremos, do tipo que é tão popular entre diversos acadêmicos e jornalistas do Brasil (e que equivale a dizer que, entre o “radicalismo” dos que defendem que a Terra é plana e os “extremos” de quem afirma que é redonda, uma posição correta e moderada deveria ficar com a ideia de que o planeta é oval), poderia argumentar que extremistas existem por todos os lados e que, afinal, celebrar Ustra não é pior do que andar por aí com uma camiseta de Che Guevara ou celebrar Carlos Marighella. Ou lembrar que outro bloco de carnaval paulista, o Bloco Soviético, celebra figuras de esquerda que também mancharam as mãos de sangue em algum momento de suas histórias.

    É um raciocínio para lá de torto. Porque, também para os heróis da esquerda, vale a mesma comparação que fiz com os heróis mais “convencionais” da direita, como os bandeirantes ou Duque de Caxias. Eles não são admirados pela sua violência, mas apesar dela. A molecada que veste as camisetas de Che Guevara ou canta Mil Faces de um Homem Leal, a homenagem dos Racionais a Carlos Marighella, não faz isso por causa das pessoas que o argentino ou o brasileiro mataram, mas pela imagem de luta e rebeldia associado a essas figuras. Até o filho de um banqueiro, Walter Salles, fez um filme sobre Ernesto Guevara, Diários de Motocicleta, suavizando ao máximo as inclinações socialistas do herói e encerrando a trama bem antes que ele machucasse qualquer pessoa.

    Ao escolher Ustra como símbolo, os membros do Direita São Paulo claramente escolheram a mensagem mais repulsiva que poderiam passar: a admiração por um homem que torturou e matou as pessoas que  pensavam diferente dele, incluindo aí mulheres grávidas e crianças.

    O deputado Jair Bolsonaro (PSC) sabia o que estava fazendo, há dois anos, quando dedicou seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) ao general Ustra. O voto que afastou uma mulher da presidência, vítima de tortura, Bolsonaro dedicou a um torturador. Aí já não se trata de conservadorismo político, de debate de ideias. É crueldade e nada mais.

    Naquele dia, no Congresso, logos após homenagear Ustra, Bolsonaro tomou uma cusparada da boca do deputado Jean Wyllys (Psol). É triste um país em que um deputado cospe na cara de outro dentro do parlamento? Tenho certeza de que é. Mas acho que seria mais triste viver num país em que um parlamentar elogia um torturador e ninguém cospe em sua cara.

    Ustra argentino

    Quem quiser conferir a diferença que faz a um país acertar as contas com seu passado, como nós nunca fizemos, poderia dar uma olhada no ambiente político da Argentina, onde vários dos militares assassinos da ditadura local foram processados, condenados e presos. A influência que esse acerto de contas provoca no ambiente político, no ar que se respira, faz muita diferença.

    A noção de que a ditadura militar foi um período horrível que não deixou saudades é compartilhada por várias vertentes políticas. Quando estiver por lá, fiquei fascinado ao conhecer diversos eleitores do presidente de centro-direita Mauricio Macri – gente tão contrário ao governo de esquerda de Cristina Kirchner que reclama de quem ri com kkk nas conversas de Whatsapp – e ver que todos repudiavam os crimes da ditadura. Reconheciam o que devia ser óbvio: que despejar jovens no Mar del Plata e depois sequestrar suas crianças, como os militares argentinos faziam, é o tipo de barbaridade que deve ser repudiada por qualquer pessoa, de qualquer tendência política.

    O clima é tão diferente que, ali, os assassinos não recebem homenagens em blocos de carnaval, ao contrário, eles são motivos de vergonha. Tanta que uma filha de Miguel Etchecolatz, um policial responsável por diversos crimes, entre eles o massacre de diversos estudantes no episódio conhecido como “Noite dos Lápis”, recusou-se a carregar a carga de vergonha associada à família e conseguiu alterar na justiça seu sobrenome, conforme reportagem da revista Anfibia. No pedido que enviou ao juizado de Buenos Aires, em novembro de 2014, a filha do Ustra argentino deixou registrado:

    “Permanentemente questionada e tendo sofrido inúmeras dificuldades por carregar o sobrenome que solicito que seja suprimido, a sua história me causa nojo, sinônimo de horror, vergonha e dor. Não há, nem nunca houve, nada que nos uniu, e decidi com esta solicitação colocar um ponto final ao grande peso que para mim significa arrastar um nome manchado de sangue e horror, estranho à constituição da minha pessoa. Mas, além do acima, minha ideologia e meus comportamentos foram e são absolutamente e decididamente opostos as dele. Porque nada liga meu ser a este genocida.”

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