Artigo | Uma reforma eleitoral que passa em branco

No Brasil, onde a maioria se declara preta ou parda, apenas 25% dos deputados e 20% dos senadores são negros; a tramitação do Novo Código Eleitoral é uma janela de oportunidade para, no lugar de aprovar diversos retrocessos, implementar ações para criar uma democracia plena

Comissão da Reforma Eleitoral no Congresso, 09/06/2021
Comissão Geral para tratar da Reforma Eleitoral no Congresso Nacional, 09/06/2021 | Imagem: Câmara dos Deputados

No icônico texto da grande Lélia Gonzalez “Cumé que a gente fica?”, alguns negros e negras são convidados para uma festa pelos brancos. Nessa festa estranha em que se fala deles sem ouvi-los, a confusão se instala quando uma “neguinha atrevida” se pronuncia. Assim como na festa descrita por Lelia, na “festa da democracia” também podemos ser chamados de atrevidos, pois vimos, há décadas, ousando provocar as instituições da República para garantir a efetivação de uma democracia plena. Foi isso, por exemplo, que fizemos em 2020, ao provocar o Supremo Tribunal Federal para que fosse garantida a proporcionalidade no financiamento de candidaturas negras.

A provocação deu resultado. A ADPF 738 regulamentou a aplicação da decisão relativa à divisão proporcional do fundo eleitoral entre candidaturas de pessoas negras e brancas. Talvez, uma consequência dessa medida tenha sido o crescimento recorde, em 2020, no número de candidaturas negras, crescimento esse, contudo, ainda muito tímido. A população negra brasileira segue sendo absolutamente sub representada em nossas Casas Legislativas. Em um país de maioria preta e parda, temos na Câmara dos Deputados 25% de parlamentares assim autodeclarados, enquanto no Senado esse número é de apenas 20%.

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Uma democracia com disparidades tão abissais em sua representação é uma democracia falha. Apesar de estarmos avançando nesse sentido, os passos ainda são muito comedidos. É preciso reconhecer que somos um país atravessado e estruturado sobre o racismo. Necessário também reconhecer que há incontáveis barreiras sociais, culturais e institucionais que impedem a presença de lideranças negras na política institucional. A partir dessas constatações, que já deveriam ser óbvias após tantos anos de denúncia por parte dos movimentos negros, faz-se urgente implementar ações afirmativas que garantam a efetivação desse direito constitucional básico da parcela majoritária de nossa população, em consonância com aquilo que foi corroborado pela Corte Suprema deste país.

Estamos atravessando, neste momento, uma janela de oportunidade nesse sentido. Tramita, a portas fechadas, na Câmara e no Senado, o maior conjunto de projetos sobre a reforma do sistema político brasileiro dos últimos 30 anos. No chamado Novo Código Eleitoral, produzido sob relatoria de Margarete Coelho (PP/PI) e chancela do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/AL), dentre os mais de 900 artigos propostos no texto que circula informalmente, apenas dois abordam a perspectiva racial. O projeto ignora por completo a decisão do STF e deixa de lado a designação de recursos financeiros para candidaturas de pessoas negras. Isso sem falar na proposta do Distritão, amplamente ventilada na Câmara, que fortalece políticos que já estão no poder, ou seja, um grupo de homens brancos e ricos, e dificulta sobremaneira o acesso de novas vozes e outros corpos, como mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQI+.

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Nós, negros e negras atrevidos, como diria Lelia, seguiremos afrontando e questionando, até o momento em que nos tornemos anfitriões dessa festa e em que as nossas vozes sejam efetivamente ouvidas. Que possamos ditar, em pé de igualdade, os rumos e desígnios dessa nação. Como salienta a Coalizão Negra por Direitos, enquanto houver racismo, não haverá uma democracia plena.

Anna Karla Pereira é co-fundadora do Frente Favela Brasil

Hélio Santos é presidente do IBD – Instituto Brasileiro da Diversidade

Natália Sant’Anna é da Coordenação de Articulação Política do Pacto pela Democracia

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