Artigo | Universidade preta segue sem um prédio próprio em plena pandemia

    Os estudantes do Campus Malês da Unilab, na Bahia, destinada a alunos do Brasil e da África, denunciam o racismo estrutural que impede a entrega de um prédio adequado para poderem estudar

    A Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) realiza a integração com os Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) do continente Africano: Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Tem a missão de promover desenvolvimento regional e o intercâmbio cultural, científico e educacional. É a única instituição de ensino superior na América Latina que possui um projeto de pesquisa e ensino afrorreferenciado, pois viabiliza, na sua produção acadêmica científica, conhecimentos e cosmopercepções africanas, afrodescendentes e indígenas. A universidade, portanto, é uma instituição de encontro entre países que possuem uma história colonial portuguesa e que tiveram um processo de marginalização e genocídio histórico, ainda não reparado pelas políticas nacionais e internacionais.

    A Unilab possui um campus no Ceará e outro na Bahia, situados em cidades de contribuições históricas, sociais, econômicas e culturais de ancestralidade africana, e que marcam a agência de povos tradicionais na diáspora. O Campus dos Malês, na Bahia, existe há sete anos e possui um corpo discente composto por grande maioria de povos negros e indígenas. E que, durante todo o tempo de existência e persistência, ambos têm sofrido sistemática precarização de recursos e sucateamento.

    Atualmente o campus funciona em uma escola cedida pela Secretaria de Educação de São Francisco do Conde, um município que possui grande contingente de população negra e demarcados territórios quilombolas — Quilombo Dom João e Quilombo do Monte.  No entanto, o local cedido possui um espaço pequeno, que não atende às necessidades das atividades e da comunidade acadêmica, que conta hoje com cerca de mil discentes e docentes. Esse fato acaba por gerar um ambiente insalubre, dada a quantidade de estudantes em relação  desproporcional aos espaços disponíveis, como é o caso da lotação das salas de aula e do refeitório. Antes da pandemia, para solução temporária da situação, as aulas eram realizadas em prédios anexos, de escolas públicas da educação básica, até que ocorreram assaltos com violência contra os discentes.

    A obra destinada ao futuro Campus Malês se encontra parada, bem como todos os recursos orçamentários dela, por complicações com a construtora, ainda não explicitados pela reitoria. Com o objetivo de realizar um processo de petição para a continuidade das obras do prédio, foi criada a Irmandade Malês, composta por discentes, comunidade civil e docentes da Unilab. Porém, até o presente a comunicação com a reitoria tem se demonstrado inconstante e imprecisa. Na última e única reunião, do dia 19/2, embora tenha sido acordado o compromisso da reitoria em buscar recursos e explicitar o processo de cancelamento da obra, assim como demonstrativos dos repasses financeiros para o campus, não foram encaminhados tais documentos e mantidos os acordos de diálogo e transparência.

    É sistemática a negação de transparência e diálogo das sucessivas reitorias com a comunidade discente do Campus Malês. No ano de 2019, foi realizado um movimento para reabertura do vestibular específico para pessoas transgêneros e intersexuais (Edital Nº 29/2019), que foi anulado dada a atual conjuntura política de perseguição e inviabilização desse segmento. Depois de sucessivas tentativas de comunicação com a reitoria, as representações estudantis do Campus Malês se deslocaram até o Ceará para uma conversa com a reitoria, porém esses não foram recebidos e não obtiveram respostas sobre o processo.

    Deste modo, o movimento Irmandade Malês denuncia o racismo institucional vigente nos processos de existência do Campus Malês. Explícito não só no modo como a reitoria não estabelece diálogo com o Campus, mas também em como ela inviabiliza avanços estruturais urgentes no Campus Malês, comparado ao Campus Redenção, no Ceará. Na medida em que somente este possui estrutura e recursos para o cumprimento das atividades e  necessidades da universidade. Cabe ressaltar, o racismo quanto à marginalização regional do campus, por estar situado em uma cidade do interior da Bahia e até mesmo em relação às universidades sudestinas e sulistas, que dispõem de maiores repasses de recursos federais.

    No atual estado de calamidade pública, e de 280 mil mortos pela Covid-19, o campus não possui condições estruturais de retornar às atividades. A ausência do prédio se torna uma questão de saúde pública e diplomática, dada a característica da universidade internacional, que possui uma  comunidade formada por estudantes de países africanos e interestaduais,  em que a contaminação afeta famílias que se encontram distantes e o próprio município, que já não possui leitos e recursos. Pois, antes da pandemia,  já foi necessário fazer vaquinhas e campanhas de arrecadação financeira para transportar discentes que vieram a óbito para o continente africano.

    Assim, a Irmandade Malês solicita o apoio de parlamentares do Estado da Bahia para a obtenção de recursos com o fim de dar continuidade às obras do prédio, já que até hoje não obtemos respostas positivas do Governo Federal. E, à sociedade civil, pede o apoio e que assinem a petição.

    (*) A Irmandade Malês é um movimento de resistência inspirado em formas ancestrais de lutas contra o racismo e opressões, composto por discentes e docentes da Unilab e pela sociedade civil.

    (O texto é assinado pelo movimento porque seus autores temem represálias caso seus nomes sejam revelados)

    A Ponte procurou a reitoria da Unilab e o Ministério da Educação sobre as denúncias deste artigo e aguarda um posicionamento

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