Atrás do silicone também bate um coração

    Primeira Caminhada pela Paz “Sou Trans e Quero Dignidade e Respeito” levou para a rua os grupos mais discriminados do movimento LGBTT

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “Eu nasci com boceta, mas eu sou homem como qualquer outro”, bradou Samuel Silva, 23 anos, estudante de Ciências Sociais e homem transexual. Ele estava no carro de som que puxava a 1ª Caminhada pela Paz “Sou Trans e Quero Dignidade e Respeito”, realizada neste sábado (30/1) na cidade de São Paulo. Embaixo, o público bateu palmas.

    A caminhada foi pensada para trazer à luz os corpos das travestis e dos transexuais, os mais marginalizados e perseguidos da sigla LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Do alto do carro de som, Samuel recebeu novos aplausos quando falou da discriminação que os trans sofrem de outras minorias. “Nós, homens trans, estamos cansados de sermos esquecidos pelo movimento LGBTT. Estamos cansados de sermos estuprados e silenciados e de ninguém (ninguém!) fazer nada”, gritou.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Pouco depois, ao descer do carro de som, Samuel contou à Ponte que já havia sido vítima de dois “estupros corretivos”, uma violência praticada contra homens trans com o objetivo enquadrá-los como mulheres. Da primeira vez, ele tinha 9 anos de idade. “Eu era a única garota no meio de um monte de moleque de várias idades, e acho que me estupraram porque queriam inconscientemente me colocar no lugar de outras meninas”, disse. O segundo estupro ocorreu há dois anos, e ele não teve coragem de denunciar o crime à polícia. “Você se culpado, sujo, muito vulnerável”, disse.

    Realizada um dia após o Dia Nacional do Orgulho Trans, comemorado em 29 de janeiro, a primeira edição da Caminhada Pela Paz reuniu cerca de 500 pessoas, com a esperança de crescer mais nos próximos anos. “Que essa marcha se reforce a cada ano e quem sabe um dia, na cidade de São Paulo, a gente possa ter a maior parada do orgulho trans do mundo”, saudou a militante Fernanda Moraes, do Fórum Paulista de Travestis e Transexuais.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornailsmo
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “Somos travestis, transexuais e homens trans, mas somos pessoas primeiro. Pagamos nossos impostos e queremos direitos iguais, nem mais e nem menos”, disse a cantora Renata Peron, 38 anos, presidente da Cais (Associação Centro de Apoio e Inclusão Social de Travestis e Transexuais), responsável pelo evento.

    12604824_1667997456821389_2076771121593220020_o
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Na véspera da caminhada, o Cais recebeu uma mensagem da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), da prefeitura de São Paulo, informando que a marcha não poderia ocupar as ruas e que o carro de som poderia ser multado. Renata conta que o Cais decidiu ignorar a determinação e fazer o evento de qualquer jeito. Para a organizadora, a atitude da CET foi discriminatória. “A gente sente que, para travesti, as coisas são sempre mais difíceis, porque parecem que não querem que a gente apareça no cotidiano das pessoas.”

    Oprimidos que oprimem

    “O preconceito entre oprimidos não deixa de ser preconceito. Oprimido também oprime”, disse à Ponte o escritor João Silvério Trevisan, 71 anos, um veterano do movimento LGBTT, ao comentar o preconceito que as trans sofrem de gays e lésbicas. “A presença das travestis vem desde o começo do movimento, mas o impacto político do movimento trans é mais recente. Como estão mais marginalizados, é muito mais complicado se juntar e criar solidariedade”, analisou.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornailsmo
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornailsmo

    Sorridente, o escritor se disse emocionado com as cores e formas dos manifestantes ao seu redor. “É gratificante perceber que estou entre humanos que não têm limites nem fronteiras para o seu crescimento pessoal. Todo esse movimento trans me chega com essa mensagem: que o ser humano é absolutamente grandioso e ilimitado”, disse Trevisan.

    Quando se trata de ser oprimido por opressores e outros oprimidos, os homens trans estão entre os alvos mais visados. “No imaginário da sociedade, só existe a mulher trans. Muitas travestis não reconhecem nossa existência e nos chamam de lésbicas masculinizadas”, afirmou Samuel Silva, membro da ABHT (Associação Brasileira de Homens Trans).

    12604828_1667994350155033_4387099680276730420_o
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “Somos os mais invisibilizados”, resumiu o trans Luiz Fernando, 32 anos, do grupo Família Strong. Segundo ele, os trans que usam hormônio passam mais facilmente por homens do que as mulheres trans conseguem se passar por mulheres. Mas a maior “passabilidade” (termo usado pelos militantes) acaba sendo uma desvantagem. “Quem não existe como ser político e social não recebe política pública”, disse.

    Fernando levou quase dois anos para conseguir mudar o nome e o sexo nos documentos, e durante todo esse tempo ficou desempregado. “Não dá para conseguir um emprego com um nome de um jeito e a aparência de outro. Quando você fala que é homem trans, não importa sua qualificação, acabou para você.”

    Silicone e coração

    A caminhada saiu do vão livre do Masp, na Avenida Paulista, desceu a Rua Augusta e terminou diante da Câmara Municipal de São Paulo. No caminho, misturou música com discursos e gritos de guerra. “Não à discriminação, atrás do silicone também bate um coração” era um deles. Renata Peron cantou uma versão trans de “Comida”, dos Titãs: “A gente não quer só esquina, a gente quer escola e dignidade”.

    12605543_1667998300154638_294459130367888153_o
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Atacada por cristãos fundamentalistas ao encenar uma crucificação durante a Parada LGBT de 2015, a atriz Viviany Beleboni, 26 anos, prometeu fazer um novo protesto com temática religiosa neste ano: “Enquanto não pararem de me incomodar e de incomodar a comunidade LGBTT, vou continuar apertando no clique da religião até se porem no lugar deles”.

    Outra presença foi a do ator Thammy Miranda, que no ano passado recebeu diversas críticas por se filiar ao PP, legenda que, na época, abrigava o deputado federal Jair Bolsonaro, homofóbico assumido. “Estou procurando poder representar vocês de uma forma cada vez melhor, sem que eu fale nenhuma besteira”, prometeu.

    12633468_1667995196821615_7163340181946138056_o
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Uma das manifestantes participou do percurso apoiada numa bengala: era Waléria Suri, 39 anos, que é trans e deficiente visual. “Eu tenho o privilégio de pertencer a essas duas realidades, de pessoas com deficiência e pessoas transexuais, e vejo muita semelhança na forma como são segregadas. Também vejo transexuais discriminando pessoas com deficiência e pessoas com deficiência discriminando transexuais. É entristecedor”, comparou.

    12633703_1667997070154761_4375210253071601047_o
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Mesmo na posição de uma pessoa que poderia ser duplamente vítima de preconceito, Waléria trabalha como bancária e cursa Direito. “Eu sou um pouco destoante da realidade da maioria, porque tive pessoas que me aceitaram e minha transformação foi tardia, aos 34 anos”, explicou. “Mas tenho amigos que vivem outra realidade. São expulsas de casa, não conseguem terminar o ensino básico e só podem se sustentar com a prostituição.”

    Performance silenciosa

    O Palácio Anchieta, sede da Câmara Municipal de São Paulo, foi escolhido como ponto final da caminhada por ter sido o palco de uma derrota. No ano passado, os vereadores, por 44 votos a 4, aprovaram uma versão do Plano Municipal de Educação que eliminou qualquer referência ao combate contra o preconceito de gênero, atendendo à pressão de igrejas evangélicas e movimentos católicos conservadores. Ao final da manifestação de sábado, os militantes entregaram ao vereador Toninho Vespoli (PSOL) um pedido para a realização de uma audiência pública sobre transfobia.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornailsmo
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Diante da Câmara Municipal, mulheres e homens trans se vestiram com sacos plásticos pretos e deitaram na rua, segurando a foto de uma bandeira com as cores azul, rosa e branco do movimento trans, manchada de sangue. Ao lado das pessoas deitadas no chão, de olhos fechados, acenderam velas para lembrar as travestis assassinadas no Brasil. Durante a performance, o carro de som tocou Rise Like a Phoenix, da cantora austríaca trans Conchita Wurst:

    Acordando nos escombros
    Caminhando sobre vidro
    Os vizinhos dizem que somos um problema
    Bom, esse tempo passou

    No final, fizeram um minuto de silêncio.

    Uma das trans que participou da performance, Samantha Andrade, 19 anos, que aos 15 tinha de ouvir gritos de “traveco!” dos colegas de escola que jogavam pedras e mijo sobre ela, contou que, durante o tempo em que ficou deitada no chão, de olhos fechados, passavam por sua cabeça violência e morte. “Fiquei pensando como é ruim viver no país que mais mata travestis e transexuais no mundo, e que eu posso ser a próxima.”

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas