Audiências de custódia ignoram denúncias de tortura policial, diz estudo

    Entre os casos relatados pelo IDDD, está o de um juiz que questionou se um PM dizer ‘vou arregaçar suas bocetas’ a duas mulheres poderia ser considerado agressão

    Racismo estrutural, subnotificação dos casos de tortura ou violência policial na hora da prisão em flagrante, excesso de “juridiquês” nas audiências de custódia e alto índice de conversão do flagrante em prisão preventiva. Esses são os principais dados que aparecem no relatório Audiências de Custódia – Panorama Nacional, feito pelo Instituto de Defesa do Direito à Defesa (IDDD), que pretende mapear como têm sido as dinâmicas desse dispositivo pelo país e, sobretudo, o que tem e o que não tem funcionado.

    Para a advogada Carolina Costa Ferreira, líder do Grupo de Pesquisa “Criminologia do Enfrentamento” e doutora em Direito, Estado e Constituição da UnB, que participou do levantamento, de todos os pontos apresentados, o mais gritante é a pouca notificação de casos de violência policial no ato da prisão ou tortura em delegacias. “Em que momento a pessoa que está passando pela custódia vai se sentir à vontade na frente de um policial para relatar uma violência que de repente um colega dele ou ele mesmo praticaram?”, questionou.

    Um dos relatos presentes no estudo conta o caso de duas mulheres, de 30 e 69 anos, acusadas de furto, que contaram que um policial as obrigou a assinarem o boletim de ocorrência, senão iria “arregaçar suas bocetas”. O juiz que ouviu o relato questionou com olhar irônico: “Mas isso é agressão?”. Em outro trecho, um juiz ouvido pelo IDDD conta que não manda investigar denúncias de tortura se o preso não apresentar marcas visíveis de violência. Para o IDDD, “a fala desse magistrado representa a postura de grande parte dos operadores do direito atuantes nas audiências de custódia, que se colocam em posição passiva diante das supostas arbitrariedades do Estado”.

    Os dados apresentados mostram essa discrepância. O IDDD, além de acompanhar as audiências, faz entrevistas com os detidos. O instituto cruzou os dados com os do Sistac, que é base de dados dos tribunais de justiça. No Ceará, por exemplo, segundo dados do IDDD, houve relato de violência em 30,2% das prisões. Para o Sistac, foram só 6%. Em São Paulo, foram 23,98% contra 7%. E, no Rio de Janeiro, foram 34,25% contra 2%. Um detalhe importante destacado por Carolina Costa Ferreira é que no Sistac só constam os casos que geram algum tipo de protocolo, ou seja, que vão para a investigação. “Isso também acaba por aumentar essa invisibilidade com relação aos casos de tortura. O sistema só considera que houve violência se a vítima souber o nome e sobrenome de quem a praticou”, disse.

    Com relação ao índice de soltura, os dados refutam a afirmação, de quem é contrário ao dispositivo, de que as audiências soltariam presos excessivamente. São Paulo é o estado mais equilibrado onde o índice de soltura é de 50%. O Rio de Janeiro e Pernambuco são os que mais encarceram com índices de conversão do flagrante em preventiva de 63,4% e 61%, respectivamente. Esse cenário acaba gerando um alto número de pessoas no sistema prisional que ainda não foram julgadas. A mais recente pesquisa do Infopen mostra que 40% da massa carcerária ainda não foi julgada.

    Outro ponto destacado pelo levantamento é a constatação de que pessoas negras são mais presas preventivamente do que brancas. “Tem até o relato em uma das páginas do estudo que lembra um caso de tráfico onde essa diferença ficou muito nítida. Foi em Brasília, era tráfico de drogas sintéticas. Era um rapaz branco, estudante de direito. Foi liberado. Na sequência, entrou na sala um caso semelhante, só que dessa vez era um negro e o juiz converteu em preventiva. No final, eu questionei o juiz sobre por que casos tão semelhantes tinham sido tratado de maneira distinta. E ele perguntou pra mim se eu eu estava chamando ele de racista. E eu expliquei que não, mas que estava tentando mostrar a ele a diferença de tratamento”, explica a pesquisadora Carolina Costa Ferreira.

    Sobre o uso de algemas, que segundo a súmula vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federeal – editada em 2008, após a prisão do banqueiro Daniel Dantas – deveria ser exceção, a pesquisa mostra que é regra. Pernambuco e Rondônia foram os únicos estados em que a maioria dos custodiados não estava algemada. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, segundo a amostra, todas as audiências foram realizadas com o detido algemado.

    Outro ponto de crítica por parte dos analistas que participaram da pesquisa é o excesso de “juridiquês”, com termos técnicos apenas compreensíveis para operadores do direito e a falta de uma explicação mais clara sobre para que serve a audiência. Um levantamento realizado no ano passado, por exemplo, mostra que cerca de 61% dos presos do CDP de Guarulhos, na Grande São Paulo, que tinham passado por audiência de custódia, não entenderam o que era e nem o quê e por que o juiz havia decidido. “O mais importante daquela cena é a pessoa assistida, o destinatário é o preso. Então, a linguagem tem que ser acessível, sim”, afirma o vice-presidente do IDDD, Hugo Leonardo.

    A metodologia da pesquisa consiste em acompanhar, por dois meses, 10% do total de audiências de custódia, alternando dias da semana para conseguir analisar as diferentes equipes envolvidas no processo. No levantamento deste ano, os dados se referem a Fortaleza (CE), Brasília (DF), Belo Horizonte (MG), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). Há menções também de Salvador (BA), Londrina (PR) e Natal (RN), mas, nesses locais, nem todos os aspectos puderam ser observados, em virtude da baixa quantidade de audiências de custódia que acontecem ali.

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