Aza Njeri: ‘nossos ancestrais chegaram portando apenas o corpo, a palavra e o conjunto civilizatório’

Pesquisadora de literatura africana e afrobrasileira, Aza Njeri foi a convidada da Academia de Literatura das Ruas, série de lives da Ponte, para falar do encontro da negritude com a literatura

O quarto episódio de Academia de Literatura das Ruas, série de lives sobre literatura da Ponte, debateu na última quarta-feira (17/2) as origens e as influências socioculturais da literatura negra. A editora de audiências da Ponte, Jessica Santos, conversou com a professora doutora em Literaturas Africanas e pós-doutora em Filosofia Africana, Aza Njeri. 

Em contato com a literatura desde a infância, Aza conta que sempre foram os livros que a ajudaram a atravessar o racismo presente nas suas relações e foi o que guiou a sua escolha de cursar letras na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 2003. Hoje ela é coordenadora do Núcleo de Estudos Geracionais sobre Raça, Arte, Religião e História do Laboratório de História das Experiências Religiosas e do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório Geru Maa, ambos da UFRJ. Além disso, integra o Festival Segunda Black e o Grupo Emú, um coletivo teatral, e possui um canal no YouTube sobre crítica teatral e literária.

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Aza mergulhou na literatura africana feita por autores negros, se tornando pesquisadora de África, afrodiáspora e mulherismo africano. Entre os autores que mais marcaram sua vida, ela destaca o malinês Amadou Hampâté Bâ, o dramaturgo nigeriano e vencedor do Nobel de Literatura, Wole Soyinka, e José Craveirinha, importante poeta moçambicano. Todos eles serviram de inspiração artística para o seu livro de poesia Rasgos, lançado em 2017. 

O papel da literatura para a negritude

A pesquisadora explica que o papel da literatura para as pessoas negras vai muito além de uma experiência ou um hobby. Segundo Aza, a literatura tem a ver com a reflexão da identidade negra coletiva, o que ela chama de “eu refletor coletivo”. “O artista querendo ou não, mesmo que ele esteja falando de experiências pessoais e existenciais, reflete o coletivo. É muito visível nas literaturas africanas no início do século XX até o processo de descolonização e depois a partir dos anos 80 ”, pontua. 

Para Aza, essa abordagem artística documenta não só a subjetividade dos escritores como também os dramas coletivos de uma sociedade, sendo fundamental diante do silenciamento histórico das pessoas negras. Sobre a origem da literatura afrobrasileira, ela explica que no ambiente da academia “coloca-se muito o tripé formador da literatura brasileira no José de Alencar, sobretudo com [a obra] O Guarani. E vão tecendo um apagamento de Maria Firmina dos Reis, Luís Gama, que estão ali escrevendo”. 

A pesquisadora fala do histórico de embranquecimento de autores negros brasileiros como Machado de Assis, o poeta Cruz e Sousa e Mário de Andrade. “O enriquecimento e o reconhecimento que vem [para os autores] de alguma forma embranquece. A academia embranquece. A arte do entretenimento é uma arte embranquecedora. Talvez seja um processo ontológico, do ethos, da construção artística”, afirma.

Herança africana na literatura

Diante da colonização europeia e da negação dos valores civilizatórios ao continente africano, Aza conta que a literatura foi uma forma de resistência e humanização do povo africano. “Nossos ancestrais chegaram na América portando apenas o corpo, a palavra e o conjunto civilizatório e uma grande desumanização”, diz.

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Nesse sentido, a oralidade para a expansão da literatura africana foi fundamental e se tornou um valor civilizatório e uma herança, explica a pesquisadora. “Esse atravessado, sobrevivente, escravizado transmite todo o seu conjunto civilizatório ético e estético a partir do corpo e da palavra”, esclarece. Ela diz que essa literatura, chamada pela escritora Conceição Evaristo de ‘oralitura’, pode estar fora dos padrões da língua, mas é um marco subjetivo dos personagens.

Arte e identidade negra 

Há um grande interesse e procura por livros que tratem das questões raciais nos últimos anos, como no contexto dos protestos do movimento Vidas Negras Importam. Aza fala que é preciso uma organização para isso se manter futuramente e não seja somente um proveito mercadológico do momento. “Temos editoras pretas crescendo, mas ainda está muito aquém das grandes do mercado. Pensar nisso e ter esse tipo de ambição também é importante. Negócios negros que tenham a centralidade dos interesses negros na sua pauta”, opina.

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Crítica teatral, Aza fala que o teatro negro exerce também um papel importante na identidade negra. “O teatro negro é muito organizado, mobilizado e muito educador. Os coletivos teatrais negros que conheço do Rio de Janeiro estão preocupados na formação da plateia. Há sempre uma mobilização para se trazer a massa para assistir os espetáculos”, conta. Apesar disso, ela fala que o acesso aos livros e ao teatro ainda continua muito restrito para as pessoas que estão na periferia.

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