Boatos provocam caos depois de fuga de presos em Bauru

    Para funcionários e parentes de presos, verdadeiro motivo da fuga em Bauru foram as más condições da penitenciária

    Cenas do motim no Centro de Progressão Penitenciária III em Bauru

    Eram aproximadamente 8h da manhã quando helicópteros Águia da Polícia Militar sobrevoavam a cidade de Bauru, no interior de São Paulo, na terça (24). Isso porque os reeducandos do Centro de Progressão Penitenciária (CPP III) Professor Noé de Azevedo, antigo IPA (Instituto Penal Agrícola), na zona rural de Bauru, iniciaram um motim seguido de fuga.  De acordo com nota divulgada pela SAP (Secretaria de Administração Penitenciária), o incidente começou quando um agente de segurança penitenciária “surpreendeu um preso se comunicando através de celular”.

    Na internet e no WhatsApp, boatos circularam durante todo o dia, “avisando” as pessoas de que “mais de 200 presos de alta periculosidade haviam fugido e estavam armados de facas e machados”. A sensação de caos aumentou depois que o comércio e órgão públicos na região central fecharam as portas. Até supermercados foram alvo de rumores de que haviam sido assaltados, o que foi desmentido.

    O presidente do Sindicato dos Servidores Públicos do Sistema Penitenciário Paulista, Gilson Pimentel Barreto, explicou a origem da revolta e desmentiu os boatos. Em entrevista à Ponte Jornalismo, disse que os servidores que apreenderam o celular foram realizar o procedimento disciplinar. “Nessa abordagem dentro da unidade os presos intervieram para não deixar levar esse preso. Ali começou a confusão”, explica. Mas ele salienta que não houve rebelião. “Houve um motim dos presos com relação a certas práticas que acontecem naquela unidade da penitenciária. A diferença da rebelião para um motim é muito grande”, diz.

    Conforme explica Barreto, a movimentação não tem ligação com as rebeliões que aconteceram no início do ano em presídios do norte e nordeste, que são uma “guerra pelo poder das unidades”, segundo ele. “Ali não teve isso, só três colegas sofreram escoriações na hora de se evadir de onde estavam”, argumenta. Para ele, o motim foi por causa da forma da ação dos funcionários. “Não teve agressão de preso contra funcionário nem entre eles, não houve matança ou cobrança de dívida”, pontua.

    Com a confusão, os funcionários se retiraram e a cadeia ficou “fora de controle”, segundo Barreto. “Eles colocaram fogo, mais como forma de protesto do que de rebelião”, completa. A ausência dos funcionários foi aproveitada para que alguns fugissem.

    Cenas do motim no Centro de Progressão Penitenciária III em Bauru

    Com relação aos números, há divergências. De acordo com a SAP e a Polícia Militar, 152 homens fugiram, dos quais 100 já haviam sido recapturados pela PM até o final da tarde do mesmo dia e encaminhados ao Centro de Detenção Provisória (CDP) de Bauru. Mas o Presidente do SINDCOP discorda, contabilizando 142 fugitivos. Seu cálculo partiu da recontagem de presos, feita no CPP após a revolta. Existem 1.412 reeducandos cumprindo o regime semi-aberto, e pela recontagem feita no CPP, foram contabilizados 997. No entanto, 273 homens já estavam fora do centro no momento, trabalhando.

    Outra divergência foi encontrada entre o discurso oficial da Secretaria e Barreto. De acordo com o site do órgão, a penitenciária tem capacidade para 1.124 pessoas, enquanto a população carcerária atualmente é de 1.430. Mas Barreto contesta novamente: “a capacidade, o espaço físico é de 700 pessoas. Aí o SAP constrói uma cama a mais e diz que ampliou a capacidade, mas o espaço físico é o mesmo”, diz.

    “A rebelião aconteceu por causa de telefone, mas eu acho que não foi só isso”, argumenta Naiany, dona de casa e esposa de um dos detentos presos no CPP I, outra unidade penitenciária. “Foi por causa de lotação, a comida que não mata a fome do preso, um dorme em cima do outro”, explica. Naiany vê de perto as condições dos reeducandos do CPP III porque suas vizinhas e amigas têm parentes retidos lá, além de gerenciar uma página no Facebook que dá apoio aos familiares. “No IPA não entra quase nada de comida. Não foi só por telefone a rebelião, foi por causa de opressão também”, conta.

    O advogado Yves Patrick Pescatori, idealizador do site “Liberdade para todos”,  também acredita que as condições a que os presos estão submetidos pode ter sido uma das motivações da revolta. “A gente vê no sistema carcerário essa questão da opressão, vai além da situação de cabeça baixa”, afirma.

    As críticas também partem do presidente do Sindcop. Para ele, a superlotação encontrada no CPP III afeta as condições de vida tanto dos internos como também dos funcionários. Em sua visão, isso dificulta o abastecimento de água, alimentação e acesso a roupas. “O IPA é um alojamento que teria que abrigar 50 presos em beliches, mas tem 200. Vai ficando insuportável, você tem disseminação de doenças, ratos, baratas”, critica.

    Reeducação

    O CPP III de Bauru é uma unidade de regime semiaberto, pensada como instrumento de progressão de pena dos condenados pela justiça. Lá os internos são considerados reeducandos e podem sair durante o dia para trabalhar ou estudar.

    Cenas do motim no Centro de Progressão Penitenciária III em Bauru

    Com objetivo de cooperar na recuperação dos detentos do regime semi-aberto, a Prefeitura de Bauru firmou um convênio com a unidade, em 2013. Participam do acordo as secretarias municipais do Meio Ambiente, Bem Estar Social, Obras, Cultura e Departamento de Água e Esgoto (DAE), que usam a mão de obra dos reeducandos para limpeza pública, ajardinamento, alvenaria, serralheria e outros serviços.

    Para Yves, o CPP é almejado pela comunidade carcerária como um lugar onde eles gostariam de estar. Por buscar a ressocialização do preso, é como um “marco divisor de que a pessoa vai realmente se recuperar e sair pro regime aberto”, explica.

    Na visão de Gilson Barreto, “carrasco é o Estado”, ao apontar a negligência com que o poder público trata o sistema carcerário paulista, uma vez que o número de funcionários está aquém do ideal, equivalendo a 10% da população carcerária. Ele também critica a contenção de despesas empregada pela gestão Alckmin (PSDB), conforme decreto 62.413/2017. “Esse ano o governador sancionou um decreto fazendo contingenciamento das secretarias. Da SAP foi [bloqueado] 21,7% do orçamento do ano. Infelizmente é um caos anunciado”.

    Cultura

    Uma das mais importantes iniciativas culturais de Bauru e do interior paulista, a ocupação e o uso da antiga Estação Ferroviária, não teria sido possível sem a atuação dos reeducandos do próprio CPP III.

    Evento “Estação Hip Hop” realizado na Estação Ferroviária no ano passado. Foto: Lucas Mendes

    Na opinião de Orlando Alves, diretor da Divisão de Museus da Secretaria de Cultura de Bauru, “sem essa mão de obra não teríamos conseguido fazer nem 30% do que foi feito aqui na Estação Ferroviária. Eles acabam fazendo todo o serviço pesado”.

    Diversos grupos e coletivos estão utilizando o espaço, como a Academia Bauruense de Letras, a Casa do Hip Hop de Bauru, teatro, dança, além da Divisão de Ensino às Artes da Secretaria Municipal de Cultura, fazendo dali uma importante incubadora e fomentadora de cultura e efervescência artística na cidade.

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