Bombas, boatos e morte: a reação do governo à onda de protestos na Colômbia

    Governo reage com violência e mata estudante de 18 anos; apesar de tentativa do governo de “diálogo social”, os protestos continuam

    Protesto de estudantes na Praça Bolívar, em Bogotá, na tarde de 22/11, antes de ser dispersada com bombas pela tropa de choque | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    “Dizem que a greve geral de amanhã foi organizada por um grupo lá de São Paulo”, comenta Miguel, um motorista sorridente e bom de papo, logo após saber que sou brasileiro. É a primeira pessoa com quem converso após desembarcar no Aeroporto Internacional El Dorado, em Bogotá, capital da Colômbia, na última quarta-feira (20/11).

    “Está falando do Foro de São Paulo?”, pergunto.

    “Isso. Foro de São Paulo. Dizem que são eles que estão por trás de todas esses protestos, no Chile, no Equador, e agora querem fazer o mesmo por aqui.”

    Sim, o Foro de São Paulo, a entidade criada pela esquerda latino-americana em 1990 que nunca conseguiu ter mais poder político real do que o gabinete presidencial montado no Twitter pelo ator José de Abreu, mas que mesmo assim ganhou a imagem de uma entidade ultrapoderosa, misto de Iluminatti com seres reptilianos capaz de erguer e derrubar governos, segundo a imaginação (fértil, em mais de um sentido) dos seguidores do ideólogo bolsonarista Olavo de Caravalho.

    E não só na deles. A julgar pela fala de Miguel, havia gente na Colômbia querendo culpar o pobre Foro de São Paulo pela greve geral convocada por centrais sindicais, estudantes e movimentos sociais para o dia seguinte, 21 de novembro. E faz algum sentido culpar gente de fora. Greve geral é um acontecimento que não parece combinar muito com os colombianos. “Nós não somos um povo que sai por aí protestando na rua”, explica Miguel. Ele próprio não acredita nesse tipo de mobilização. “Sou um coach empresarial. Eu explico a meus alunos que você não deve se preocupar com a situação econômica do país. Você tem que criar a sua própria economia”, me ensina.

    ‘Mamãe, se não volto para casa, foi o Estado que me assassinou’, protesta um jovem em 22/11; no dia seguinte, a tropa de choque feriu mortalmente Dylan Cruz, 18 | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    Sobre as grandes mobilizações de massa não combinarem com a Colômbia, a história parece dar razão a Miguel. A última greve geral do país ocorreu em 1977 e deu muito ruim, com dezenas de trabalhadores assassinados pelas forças policiais da época. Se, 42 anos depois, os colombianos resolveram fazer uma outra greve geral, isso só pode ser explicado por alguma conspiração gestada fora do país. Pelo menos, foi em boatos assim que o governo colombiano apostou para lidar com os protestos.

    ‘Cubanos e venezuelanos’

    Não que não existam motivos para protestar na Colômbia, como, de resto, em toda a América Latina. Mesmo que a taxa atual de homicídios do país seja a menor em três décadas, a violência ainda corre solta, especialmente as mortes de lideranças populares e dos povos originários — foram 198 indígenas assassinados nos últimos três anos, 135 apenas durante o governo do atual presidente, o conservador Iván Duque, eleito em agosto do ano passado. O desemprego não para de subir e atinge 10% da população, embora a economia esteja crescendo a um ritmo de 3% ao ano. Mesmo a situação de quem tem emprego não é muito melhor, já que mais de metade dos postos de trabalho ocupados são informais. Atrás apenas do Brasil no quesito de pior distribuição de renda na América Latina, a Colômbia é o segundo país mais desigual da região mais desigual do planeta Terra.

    Uma desigualdade social e racial que salta aos olhos de quem anda pelas ruas de Bogotá, que nesse sentido lembra muito São Paulo, com seus grupos de moradores de ruas espalhados pelo centro da cidade, quase todos com mais traços indígenas e pele mais escura do que a dos engravatados que entram e saem apressados dos prédios imponentes com tijolos à vista da paisagem local.

    O rosto da América do Sul numa bandeira, no primeiro dia de protestos | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    No dia em que cheguei, os avisos sobre os protestos do dia seguinte estão por toda a parte. “Amanhã não abriremos ao público por motivo de greve nacional, agradecemos a compreensão”, avisam os cartazes na entrada de lojas e restaurantes da região central. Pego um dos panfletos sobre os protestos, assinado por centrais sindicais e movimentos sociais, e leio que o protesto é contra “o pacotaço de Duque, a OCDE e o FMI, pela vida e pela paz”. O pacotaço, informa o panfleto, envolve uma série de medidas neoliberais, muito parecidas com as que o Brasil vem adotando desde o governo Michel Temer: reforma trabalhista, reforma da previdência, reforma tributária e privatizações em massa.

    Quando passo os olhos pelo noticiário em busca de mais informações, descubro que o “pacotaço” ainda está num estágio bem menos avançado do que no Brasil: muitas das propostas nem chegaram a ser apresentadas formalmente pelo governo e algumas foram apresentadas não pelo governo, mas pelo senador e ex-presidente Álvaro Uribe, padrinho político de Duque e, para muitos, o “verdadeiro presidente” da Colômbia. Vendo a movimentação que ameaçava tomar as ruas, o presidente Duque se apressou em avisar que não tinha planos de implantar as reformas.

    O governo parecia determinado a agir como se não houvesse motivos reais para o protesto e a greve geral fosse uma agitação de grupos radicais e estrangeiros. Ligo a tevê e vejo imagens de militares se movimentando pelas ruas: Duque havia emitido decretos autorizando o emprego das Forças Armadas contra os manifestantes e permitindo que os prefeitos pudessem decretar toques de recolher em suas cidades caso achassem necessário.

    Na tela, o diretor de migração do governo, Christian Krüger Sarmiento, surge dizendo que o país havia fechado suas fronteiras por mar e por terra para evitar a possível infiltração de “agitadores profissionais” vindos de Cuba e Venezuela para o protesto — até estranhei que ele não mencionasse diretamente o nome do Foro de São Paulo, mas a ideia estava lá. O diretor se gabava de ter barrado a entrada, só naquele dia, de mais de 20 venezuelanos que “buscavam afetar a ordem, a tranquilidade e a segurança de um país que sempre esteve disposto a ajudar”. Nem nas entrevistas do diretor daquele dia, contudo, e nem nas reportagens feitas depois, encontrei explicações sobre as provas que o governo teria levantado contra esses migrantes.

    Estudante no primeiro dia de protestos | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    Não que o governo precisasse de provas para investir contra quem quer que fosse. Enquanto a tevê anunciava o fechamento das fronteiras aos estrangeiros interessados em incendiar o país, fucei nas redes sociais e me surpreendi com uma série de denúncias sobre invasões arbitrárias que a Polícia Metropolitana de Bogotá e a Procuradoria-Geral da Nação haviam promovido no dia anterior em casas de estudantes, coletivos de arte, grupos feministas e meios de comunicação alternativos envolvidos com a greve geral, por meio de 27 mandados de busca e apreensão destinados a combater “atos de vandalismo e terrorismo”. Para o Cartel Urbano, veículo de “jornalismo rueiro e cultura alternativa”, uma das vítimas das invasões policiais, a ação significava “a criminalização do protesto social no país”. Agora, na véspera da greve geral, um juiz confirmava que a maior parte das ações da polícia haviam sido ilegais. Mesmo assim, o recado para a população havia sido dado: o protesto da quinta-feira era coisa de gente radical e de estrangeiros interessados em promoverem a violência.

    Todos os motivos para odiar o governo

    Pela educação. Pela saúde. Contra a corrupção. Contra a Odebrecht. Contra as reformas neoliberais do governo Duque. Pelos trabalhadores. Pelos indígenas. Pelas mulheres. Pela população LGBT+. Pelos animais. Pela liberdade de expressão. Pela legalização das drogas. Contra a masculinidade tóxica. Contra a Esmad (Escuadrón Móvil Andisturbios), a temida tropa de choque da polícia colombiana. Contra a monocultura. Pela paz.

    Todo tipo de causa e de pessoa se misturou nas ruas durante a quinta-feira da greve geral. Para um brasileiro, era impossível olhar para tantas bandeiras diferentes marchando juntas e não lembrar dos jornadas de junho de 2013.

    Cena do primeiro dia de protestos | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    Antes de me encontrar com o protesto, eu havia tomado um típico café da manhã colombiano, um ensopado de peixe com pão, omeletes e salsicha, mais um suco cremoso de manga e café, enquanto lia no celular notícias que falavam sobre conflitos entre a polícia e encapuzados durante o início da greve na região norte de Bogotá. O clima que encontrei, quando me juntei à multidão que marchava na Carrera 7, era bem mais ameno. Estudantes e trabalhadores, famílias e artistas, andavam lado a lado, cantando e gritando palavras de ordem. A cidade estava tomada: era gente marchando de todos os lados em direção à Praça Bolívar. Os agentes da Esmad, a temível tropa de choque colombiana, circulavam por ali, mas discretamente, reunidos em pequenos grupos nas esquinas. As pessoas caminhavam sorrindo, felizes por se expressarem.

    O “pacotaço” de medidas neoliberais de Duque era apenas um entre os vários motivos mencionados para a mobilização. “Estamos nesta greve rechaçando as intenções de reforma trabalhista e previdenciária de Duque, todas as suas mentiras, seu comportamento criminoso contra os lutadores sociais e os indígenas”, me disse o professor Pedro Luís, ligado ao PST (Partido Socialista dos Trabalhadores), o PSTU colombiano. Entre os estudantes, a questão mais lembrada era a violência de Estado e não pediam menos do que a saída do presidente. “Estamos inconformados com o governo Ivan Duque e queremos pedir não apenas a sua renúncia, mas de todo o seu gabinete, porque não cumpriu os acordos de paz [com as Farc, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], porque houve crianças mortas em campo aberto e tratadas como terroristas. Como estudantes, queremos uma melhor educação e como futuros empregados queremos salários dignos e que nos paguem por horas exatas”, explicou Angelica García, estudante de jornalismo.

    Entre os estudantes, um episódio muito lembrado, em falas e cartazes, foi a morte de oito adolescentes, assassinados em um bombardeio do Exército contra dissidências das Farc (Forças Armadas Revolucionários da Colômbia), que não aderiram ao acordo de paz firmado com o governo em 2016. Executado nos primeiros dias do governo Duque, o assassinato dos adolescentes veio a público somente no início deste mês, pegando o presidente de surpresa. “Do que fala, velho?”, foi o que Duque respondeu a um repórter que lhe peguntou sobre o massacre, em 6 de novembro. A reposta virou um dos memes mais populares da política colombiana e ajudou a aumentar ainda mais a reprovação ao governo de Duque, rejeitado hoje por 69% da população. Durante os protestos da semana, frases como “Agora nos escuta, velho?” ou “É disso que falamos, velho” circulavam nos cartazes carregados pelos estudantes.

    Eram muito comuns as imagens de porcos, usadas para se referir a Duque. O ódio pela polícia em geral, e pela Esmad em particular, é muito presente: em três quilômetros de marcha, contei dez pichações com a expressão anarquista ACAB (All Cops Are Bastard, todos os policiais são bastardos) e um equivalente local, “la puta policia!”.

    Carregando a Wiphala, a bandeira de sete cores dos povos indígenas dos Andes, o casal Leslie Mamani e Giovani Simbaqueba, ela boliviana, ele colombiano, ambos professores e indígenas, contaram que marchavam pelos direitos dos povos originários. “Lutamos para que não haja mais matanças e para que haja paz em nossas comunidades, não somente na Colômbia, e sim em toda a América Latina”, disse Leslie. Membro da etnia Aimara, a mesma do presidente deposto Evo Morales, da Bolívia, a professora contou que se sentia “muito dolorida” com os acontecimentos de sua terra natal. “Me dói muito ver como maltratam meus irmãos. O racismo voltou, com o domínio da extrema-direita, e só quer nos machucar.”

    Professores Giovani e Leslie carregam a Wiphala, bandeira dos povos indígenas, no primeiro dia dos protestos | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    E havia os que estavam lá por diversas bandeiras ao mesmo tempo. “Estou apoiando várias causas, entre eles a educação gratuita para nossos jovens, os direitos, a liberdade, a palavra, o jornalismo e que todos tenham melhores oportunidades”, disse Margerita Salamarieta. A sensação de que o governo precisa ser combatido, fosse qual fosse o motivo.

    Pânico e conspirações

    A greve geral mobilizou um milhão de pessoas na Colômbia, segundo seus organizadores. O Ministério do Interior avaliou um número menor, mas ainda muito expressivo, de 207 mil manifestantes. Em Bogotá, a tranquilidade foi uma marca do protesto, mas não o tempo todo. No final da tarde, a Esmad atirou bombas de gás lacrimogêneo na Praça Bolívar. O motivo? Um grupo de encapuzados havia retirado uma manta de proteção que envolvia o prédio da Prefeitura. À noite, manifestantes atiraram pedras nas estações da rede de ônibus. Ainda assim, a principal imagem de violência que marcou o final do primeiro dia de protestos na Colômbia não partiu dos manifestantes, mas da polícia: o chute de um policial da Esmad em uma jovem encapuzada de bicicleta, flagrado pelo jornal El Tiempo.

    Em Cali, terceira cidade mais populosa do país, o prefeito Maurice Armitage decretou toque de recolher, no início da noite, alegando como motivo apedrejamentos de ônibus, bloqueios de vias e saques a comércios. Longe de tranquilizar a população, a medida estimulou o pânico. As redes sociais mostravam cenas de pessoas montando guarda em seus prédios, na madrugada, contra possíveis tentativas de invasões a condomínios, que não passavam de boato. Mais tarde, seria a vez do prefeito apelar para teorias da conspiração, ao dizer que os boatos teriam sido plantados de forma “sistemática e muito bem calculada” por… alguém.

    Eu estava em Chapinero, bairro de classe média alta, uma espécie de Pinheiros de Bogotá, quando ouvi o barulho de panelas vindo de dentro dos apartamentos e das ruas. Ali, o panelaço fez um barulho coletivo de protesto por meia hora sem parar. O Twitter me informou que não era só lá. Em diversas cidades do país, naquele momento, os colombianos estavam batendo panelas.

    Também investigada na Colômbia, Odebrecht também foi lembrada nos protestos | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    Na sexta-feira (22/11), quando encontrei na rua os primeiros grupos que se dirigiam à Praça Bolívar, vi que muitos deles levaram nas mãos uma panela e uma colher. Depois da noite de quinta, os colombianos haviam encontrado um símbolo para seus protestos. Os comerciantes rapidamente se aproveitaram do movimento: àquela altura, já havia lojas vendendo panelas “com ritmo” por 6 mil pesos (R$ 7).

    Na hora do almoço, o evento em que eu estava participando, na Universidade dos Andes, terminou mais cedo por conta dos protestos. Os organizadores nos mandaram para o hotel, com um kit de sanduíches e refrigerantes, e recomendaram que não saíssemos de lá “para nossa segurança”. A dose de paranoia era elevada: o hotel onde estávamos colocou cercas de ferro e seguranças com cachorros em todo o perímetro externo e ainda desligou os elevadores, para “evitar que os vândalos subissem” caso o local fosse invadido pelos bárbaros. A essa altura, Bogotá havia decretado lei seca e sabíamos que era questão de tempo até chegar a um toque de recolher.

    Assim que tive chance, dei um jeito de escapar do hotel, junto com outros participantes do evento, e fomos bater pernas entre os manifestantes. Não encontramos o monstro que anunciavam os funcionários do hotel e o noticiário da tevê. As ruas continuavam cheios de manifestantes, quase todos jovens. Um dos professores que estava comigo, natural do México, ficou impressionado ao ver de perto os protestos que haviam levado o governo a anunciar medidas tão duras. “Querem decretar um toque de recolher por causa de um protesto de estudantes? No México tem um assim toda semana”, riu.

    Estação de ônibus apedrejada e pichada com o nome do ex-presidente Alvaro Uribe | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    Havia duas novidades em relação ao primeiro dia de protestos. Quase todos levavam panelas para bater e havia menos diversidade: a maioria dos manifestantes era de estudantes. Gente como o estudante de engenharia Pablo Ramírez, 22 anos, que contou estar ali não por alguma razão específica, mas por “um descontentamento geral” com as decisões do governo. “Para mim, a gota d’água foi o bombardeio às crianças”, disse. Sobre os atos de vandalismo, afirmou: “São ações de um grupo à parte, com o qual não estou de acordo, mas, se o Estado for violento, o mínimo que se pode esperar é mais violência”. Mas os formados também estavam por lá, como a engenheira Maria García, 31 anos, que também tinha motivos para reclamar: “Não ganho o que mereço, porque me excluem por ser mulher”.

    Enquanto a Esmad voltava a usar tiro, porrada e bomba para esvaziar a Praça Bolívar, pequenos grupos de manifestantes apedrejavam as estações de ônibus. Nem todos estavam encapuzados. Uma conhecida youtuber, Daneidy Barrera, a Epa Colombia, postou um vídeo em que destruía uma estação de ônibus com um martelo. O Ministério Público abriu uma investigação contra ela, mas um juiz decidiu que a youtuber poderia responder em liberdade.

    Cena do vídeo em que a youtuber Epa Colombia destrói uma estação de ônibus | Foto: reprodução

    O toque de recolher que esvaziou as ruas de Bogotá foi visto com naturalidade por boa parte da mídia colombiana, que aceitou as alegações dadas pelo prefeito Enrique Peñalosa de que a cidade estava sendo atacada por uma conspiração liderada por… alguém. “Não se trata de jovens com manifestações espontâneas. Há um complô, organizações de alto poder e politiqueiros interessados em desestabilizar o pais”, declarou o prefeito, sem nomear ninguém.

    Policiais diante de um prédio público no segundo dia de protestos | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    Na edição desta semana, a principal revista do país, a Semana, apoiava a edição dos toques de recolher, reclamava da “dose de injustiça” que era atacar Duque por conta de “problemas estruturais que existem há décadas” e fazia uma defesa das propostas de reformas que nem o governo tinha mais coragem de fazer, afirmando que era hora de convencer “os colombianos indignados” de que “o chamado ‘pacotaço de Duque’ não é para prejudicá-los”. Destacando a existência de “estruturas organizadas” que querem “parar o país”, a revista pedia mais repressão para evitar a “violência dos vândalos”, sem quase mencionar os crimes do Estado.

    No mesmo dia em que a revista chegou às bancas, um jovem foi assassinado. Não por vândalos, mas pela polícia.

    Dilan Cruz, símbolo da violência policial

    Dylan Cruz, morto pela Esmad,a tropa de choque colombiana | Foto: Reprodução

    Vi as imagens a caminho do aeroporto, quando deixava Bogotá, no domingo. Haviam sido filmadas na tarde de sábado (23/11), na esquina da avenida 4 com a rua 19, perto de onde eu estivera há pouco tempo, e mostravam um jovem tombando na rua após ser atingido na cabeça por um artefato disparado pela Esmad. As autoridades não deixaram claro se o artefato era mesmo uma bomba de gás, como divulgado inicialmente, mas o certo é que perfurou o crânio do jovem, um estudante de 18 anos chamado Dilan Cruz. Hospitalizado na tarde do domingo, morreu dois dias depois.

    Nos dois dias de agonia de Dilan, e também depois, o Hospital San Ignacio, onde estava internado, transformou-se em ponto de peregrinação de diverso manifestantes, que foram até o local depositar velas e flores e protestar contra a violência policial. O presidente Duque determinou “a investigação urgente deste caso para esclarecer rapidamente o ocorrido e determinar responsabilidades”, sem mencionar mudanças nos procedimentos da polícia.

    Nas redes, a irmã de Dilan, Denis Cruz, mandou um recado na terça (26/11). “O que nossas gerações querem é paz, sem mais ataques a nós mesmos, sem mais violência, sem mais crueldade, sem mais abusos com o outro, porque em algum momento seremos nós mesmos “, disse.

    Após a grave geral do dia 20, os manifestantes voltaram para as ruas da Colômbia todos os dias, embora em menor número. O presidente Ivan Duque iniciou um processo de “conversação nacional” com diversas organizações responsáveis pela greve geral e anunciou até o início da construção de um metrô em Bogotá. Até agora, o diálogo parece não ter avançado muito e uma nova greve geral acontece nesta quarta-feira (27/11).

    As críticas à violência policial se espalham pelas ruas | Foto: Fausto Salvadori/Ponte

    Acompanhando o noticiário da Colômbia agora à distância, e remexendo nos papéis, livros e pacotes de café que trouxe da viagem, reencontro uma edição do jornal El Espectador com um artigo que me chamou a atenção. Escrito pelo antropólogo Weildler Guerra Curvelo, o texto busca refletir sobre a violência e as mentiras usadas pelos governos latino-americanos para combater seus protestos de rua resgatando, para isso, a história da campanha de Canudos, o vilarejo no interior da Bahia habitado por Antônio Conselheiro e seus jagunços, que, em 1897, foram massacrados até o último homem, mulher e criança pelas forças do Exército. Tudo por causa de políticos e jornalistas que acusaram o pobre vilarejo de “encabeçar uma conspiração restauradora da monarquia com ramificações internacionais, uma espécie de Foro de São Paulo de sua época”, como escreve Curvelo. Trazendo para aqui e agora, o antropólogo conclui: “Não haverá democracias plenas na América do Sul se nossos governos virem em cada estudante um jagunço, em cada dirigente de oposição um Conselheiro e em cada país uma Canudos”.

    O repórter viajou para a Cômbia a convite do Centro de Estudos sobre Segurança e Drogas (Cesed), da Faculdade de Economia da Universidade dos Andes, e da Open Society Foundations, para participar do evento “Como reduzir os homicídios na América Latina?”

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