Brasil considera negros ‘indesejáveis’ e os executa com apoio da Justiça, denuncia CIDH

    Após 23 anos, Comissão Interamericana de Direitos Humanos volta a realizar diagnóstico a respeito de avanços e retrocessos do país; para entidade, violações a grupos vulneráveis se mantêm à medida que crimes cometidos, sobretudo pelo Estado, não são punidos

    Movimentos negros ocupam Avenida Paulista em ato ’80 tiros em nós’, no dia 14/4/2019, em repúdio à morte do músico Evaldo Rosa, no Rio | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    A CIDH (Comissão Interamericana de Direitos de Humanos), órgão vinculado à OEA (Organização dos Estados Americanos), lançou na última sexta-feira (5/3) relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. O documento abrange visita realizada pela entidade em novembro de 2018, abarcando todos os avanços e retrocessos desde que realizou o primeiro diagnóstico do tema no país, em 1997.

    A Comissão afirma que o Brasil tem “sistema democrático e um Estado de Direito com sólidas instituições democráticas e de direitos humanos”, mas que vem sofrendo “preocupantes retrocessos em algumas políticas que podem resultar em impactos negativos sobre os direitos humanos de sua população”. O documento traça 83 recomendações para melhorar esse cenário.

    Dentre diversos pontos abordados no documento, que tem 207 páginas, a impunidade de crimes cometidos, especialmente, pelas forças de segurança do Estado é um dos destaques do relatório ao abarcar a manutenção da desigualdade sofrida, sobretudo, por jovens negros pobres e periféricos, cuja população é a principal vítima de letalidade policial e tem presença expressiva no sistema carcerário brasileiro. A Comissão argumenta que há um “racismo institucional” presente desde no perfil a ser abordado e alvejado pela polícia, passando pelo encarceramento e aplicação de penas duras à população negra, além de uma legitimação de violações praticadas por agentes da segurança pública quando o Estado não investiga com rigor e não faz reparações às vítimas.

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    A entidade evidencia casos como a morte de 26 pessoas provocadas por agentes policiais na Favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, entre 1995 e 1996; os Crimes de Maio, ocorridos em 2006 quando 564 pessoas foram mortas em ações policiais que buscavam revidar ataques do PCC e que não houve responsabilização quase 15 anos depois; a Chacina do Cabula, como ficou conhecida a ação policial que vitimou 12 jovens em Salvador, na Bahia, em 2015; o massacre nas favelas de Coroa, Fallet-Fogueteiro e dos Prazeres, em que 15 pessoas foram mortas em ação do Bope, a tropa de elite da PM fluminense, em 2018; o massacre de Paraisópolis, em que nove jovens morreram após repressão da PM paulista a um baile funk, em 2019; a morte do músico Evaldo Rosa dos Santos que teve o carro alvejado por 83 disparos feitos pelo destacamento do Exército em Guadalupe, no Rio de Janeiro, também em 2019, dentre outros.

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    A CIDH também realizou visitas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho e na a Cadeia Pública Jorge Santana, ambas do Complexo de Bangu, no Rio de Janeiro. A entidade identificou superlotação, pequeno número de agentes penitenciários, negligência de cuidados médicos por falta de medicamentos e de profissionais, falta de iluminação e ventilação. Também são destacadas outras denúncias, de demais presídios, sobre agressões e tumultos provocados por tropas com treinamento militar, os chamados GIR (Grupo de Intervenção Rápida) e GIT (Grupo de Inteligência Tática), e revistas vexatórias.

    “Tal característica indica a existência de um sistema estruturado de violência e execução de pessoas ‘indesejadas’ na sociedade brasileira, que ademais seguem protegidas por um sistema de justiça que somente atua para encarcerar aqueles que pertencem a esses grupos mais expostos à vulnerabilidade”, critica a Comissão.

    Além disso, a entidade alerta sobre conflitos no campo e disputas em solos indígenas com ação de grileiros, por conta de revisão das políticas indigenistas, ambientais e de armas no país. Um dos casos citados é a Chacina do Pau D’Arco, no Pará, em 2017, quando 10 trabalhadores rurais foram mortos por policiais e seguranças privados na desocupação da Fazenda Santa Lúcia e o Massacre de Caarapó, quando fazendeiros e pistoleiros invadiram a aldeia de mesmo nome no Mato Grosso do Sul, em que diversos indígenas ficaram feridos e mortos, incluindo uma criança de 12 anos, em 2016.

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    “Ademais, a Comissão recebeu com preocupação a informação de que o Estado estaria promovendo a legalização de milícias e, de certa forma, armando-as em territórios rurais, além de estar facilitando a aplicação da excludente de ilicitude das forças militares na atuação voltada à reintegração de posse”, argumentou.

    Crimes de ódio e liberdade de expressão

    A CIDH também destacou perseguição e assassinatos contra defensores e defensoras de direitos humanos e pessoas com cargos eletivos no país, demonstrando preocupação que a investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, permanece parado na esfera estadual. A entidade também cita perseguição ao ex-deputado federal Jean Wyllys que renunciou ao seu mandato após sofrer ameaças no ano seguinte. “Esses casos explicitam a múltipla vulnerabilidade dos defensores dos direitos humanos das pessoas LGBTI e afrodescendentes que, devido à combinação de fatores relacionados à percepção de sua orientação sexual e identidade de gênero, a sua origem étnico-racial, somado às agendas de luta por eles avançadas, os expõe a uma maior probabilidade de sofrer atos de violência”, critica a Comissão.

    A Comissão aponta também enfatizou sobre que 1644 pessoas LGBT+ foram mortas no Brasil em ataques motivados por ódio, entre 2014 e 2019, de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia. A entidade frisa que esses dados, normalmente coletados por organizações da sociedade civil, “permanecem invisíveis nas políticas oficiais de coleta de dados” e “colocam o Estado brasileiro como um dos que apresentam as maiores taxas de assassinato e agressão com base em orientação sexual e identidade de gênero”, sobretudo as pessoas transexuais.

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    Apesar de ver com bons olhos a criminalização da LGBTfobia, após decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2019, e que houve aumento expressivo de candidaturas trans, cerca de 53, nas eleições de 2018, a entidade enfatiza a necessidade do Estado proteger e investigar com rigor “a possibilidade de que atos violentos foram cometidos devido à orientação sexual, assim como a identidade e/ou expressão de gênero da vítima”.

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    O relatório evidencia que a campanha eleitoral de 2018 proporcionou um aumento de ameaças e violência não apenas a essa população, mas também a jornalistas, sendo que “137 desses casos, com 75 agressões virtuais e 62 agressões físicas, que teriam recaído especialmente sobre comunicadoras mulheres”. A CIDH pontuou a importância de investigação desses casos, incluindo a de mortes de jornalistas, e de redes que promovem notícias falsas. “O desmonte de tais estruturas parece fundamental não apenas para que se resguarde a qualidade da democracia no país, como também para que se protejam os direitos humanos das vítimas dos referidos ataques, incluindo profissionais de jornalismo”.

    Atrelado a esse ponto, a Comissão constatou que o direito à liberdade de expressão tem sido cada vez mais violado. “A CIDH tem verificado que esta situação se agravou nos últimos anos, especialmente desde 2013, com um aumento preocupante do número de restrições ao exercício dos direitos humanos no contexto dos vários protestos sociais e manifestações que ocorrem em todo o país”, aponta.

    A entidade destacou casos como o do fotógrafo Sérgio Silva, que ficou chego de um olho ao ter sido atingido por uma bala de borracha em atos contra o aumento da passagem do transporte público, em 2013; a condenação do catador de latinhas Rafael Braga, que foi preso por portar uma garrafa de água sanitária e outra de detergente naquele mesmo ano sem nem mesmo estar participando dos atos no Rio de Janeiro; a condenação de 23 ativistas no âmbito dos protestos contra a Copa de 2014 – que acabou anulada em 2019, entre outros.

    Além disso, a CIDH critica o uso do aparato estatal para criminalizar manifestantes, jornalistas e movimentos sociais por meio de processos judiciais, como a prisão e denúncia de “extorsão” contra diversas lideranças, como a ativista e escritora Preta Ferreira, que atua no movimento por moradia; e em 2018, quando protestos intitulados “antifascistas” foram proibidos pela Justiça Eleitoral e polícia e fiscais eleitorais foram às universidades arrancar cartazes sob a alegação de propaganda eleitoral irregular.

    “A Comissão enfatiza que o uso do direito penal desproporcionalmente para proteger de forma privilegiada a honra de funcionários ou pessoas públicas, mesmo nos casos em que uma condenação penal não ocorre, tem efeitos de silenciamento do exercício jornalístico e dos que queiram participar do debate público; além de afetar a responsabilidade dos funcionários e o próprio funcionamento do Estado”, condenou a CIDH.

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