Chicha, fundadora das Avós da Praça de Maio, na Argentina, morreu sem reencontrar neta

    Criadora do grupo, que luta pela busca e memória de desaparecidos durante a ditadura militar, faleceu vítima de AVC 42 anos após tropas matarem sua nora e sequestrarem a neta

    Fachada do memorial criado por Chicha | Foto: Olavo Barros/Ponte Jornalismo

    “Obrigado, Chicha, por fazer tanto! Seguiremos procurando por Clara Anahí. Assinado, nós, o povo”. A frase estava em um papel sulfite tão azul quanto o céu de uma terça-feira fria na cidade de La Plata, na província de Buenos Aires, capital da Argentina. Feita com caneta hidrocor, a mensagem era mais do que um agradecimento. Tratava-se de uma promessa para a continuidade de uma luta que dura mais de 40 anos. Maria Isabel Chorobik de Mariani, a Chicha Mariani, fundadora do grupo Avós da Praça de Maio (Abuelas de Plaza de Mayo), morreu aos 94 anos no domingo (19/8), ainda esperando respostas sobre o desaparecimento da neta, Clara Anahí, ocorrido na ditadura militar local.

    O cartaz pregado na grade do casarão na Rua 30, número 1136, tinha ao seu lado flores em homenagem à Chicha, nome que é sinônimo de luta. Exatamente nesta casa, na quarta-feira 24 de novembro de 1976, as tropas do regime militar argentino, comandadas pelo Coronel Ramón Camps e pelo Comissário Miguel Osvaldo Etchecolatz, assassinaram à queima-roupa Diana Teruggi, a nora de Chicha, e sequestraram a pequena Clara Anahí. O filho de Chicha, Daniel Mariani, também foco da operação, mas que tinha saído um pouco antes para trabalhar, viria a ser encontrado e assassinado pelo regime no ano seguinte.

    Para Chicha, a partir daquele momento, encontrar a neta passou a ser a grande razão de sua vida. Ela e outras mulheres se uniram para buscar seus netos e filhos desaparecidos na ditadura argentina. Histórias como a de Chicha se repetiram durante o período do regime, de 1966 até 1973. Enquanto os militares empunhavam pistolas e metralhadoras, as abuelas (avós) se uniram e tinham como arma a saudade, o luto e, principalmente, suas vozes.

    Foram 42 anos buscando respostas e procurando Clara Inahí. Não deu tempo de Chicha encontrá-las. Aos 94 anos, a ativista morreu sem conseguir saber do paradeiro da neta. Nas paredes da antiga casa da Rua 30, as marcas dos tiros disparados naquela quarta-feira de primavera resistiram ao tempo. Assim como as lembranças de Anahí enquanto a avó lutou.

    Nas paredes estão marcas da violência da ditadura que o tempo não pôde apagar | Foto: Olavo Barros/Ponte Jornalismo

    Vítima de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) no último dia 7 de agosto, Chica permanece na memória argentina como símbolo da justiça que nunca veio e da luta que, mesmo depois da morte, nunca termina: foi velada e enterrada em La Plata, sem nunca encontrar sua neta. Mas, também, sob aplausos e a promessa de militantes ali presentes: “Nós vamos encontrá-la!”.

    Desde o dia em não pode mais saber de sua neta até seu último dia de vida, Chicha construiu uma história de luta e resistência: quando decidiu fundas e presidir o grupo Avós da Praça de Maio, a mulher se torno uma das primeiras pessoas a causar desconforto ao regime militar argentino. A associação de senhoras passou a protestar continuamente na Praça de Maio, onde está localizado a sede do poder executivo nacional, e exigir o direito de reencontrar seus netos e netas desaparecidos.

    Alegando conflitos de ordem pessoal, Chicha deixa a organização em 1989 para em seguida fundar a Associação Clara Anahí, com sede localizada na casa da rua 30, onde tudo começou. Hoje, o local funciona como um museu, com visitas exclusivamente aos sábados, que reivindica memória, verdade e justiça por todas e todos aqueles que sofreram com o terrorismo de Estado.

    Lápides de Diana Teruggi, nora de Chicha e Clara Anahí, desaparecida aos 3 meses | Foto: Olavo Barros/Ponte Jornalismo

    Em artigo publicado no jornal Página12, a organização de Direitos Humanos [email protected] La Plata destaca que “a militância de Chicha e das outras avós não têm precedentes em nível mundial”, que “iniciaram um caminho que […] derivou no descobrimento do DNA como informação genética que permite estabelecer vínculos filiatórios na ausência de uma geração, que ficou conhecido como índice de “Abuelidad”, e a criação do Banco Nacional de Dados Genéticos, colocando a ciência a serviço do esclarecimento dos crimes contra a humanidade”.

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