Com álibi ignorado pela Justiça, Felipe está preso com base em uma foto do Facebook

Entregador negro foi preso em fevereiro acusado de participar de um roubo ocorrido em novembro de 2021; ele e dois amigos foram alvos de um reconhecimento fotográfico. Especialista aponta falhas na investigação e falta de provas técnicas

Foto do entregador Felipe Cirilo da Silva que aparece na investigação da Polícia Civil foi retirada do Facebook. | Foto: Arquivo pessoal

Com o fim do expediente de trabalho, o entregador Felipe Cirilo da Silva, 22, morador da comunidade de Heliópolis, decidiu aproveitar a sexta-feira, no dia 4 fevereiro deste ano, para andar de moto com amigos na região do Ipiranga, zona sul da capital paulista. Porém, o momento de lazer do jovem foi interrompido por um enquadro de PMs da Força Tática, como conta seu pai, o promotor de vendas Fabio Cirilo da Silva: “na hora que ele falou o número do documento do RG dele, o policial foi conferindo: ‘sua mãe é tal, seu pai é tal, seu nome é esse. Então você está preso”.

O que constava nos registros era um mandado de prisão temporária contra Felipe por conta de um roubo ocorrido três meses antes, no 5 de novembro de 2021, no Sacomã. De acordo com o boletim de ocorrência registado no 26º DP (Sacomã) e assinado pelo delegado Joalbo Alencar Dores, a vítima de 70 anos relata ter sido abordada dentro do seu carro e ameaçada por quatro assaltantes, um deles armado, quando chegava em sua residência por volta das 17h. Além do veículo, que foi localizado no mesmo dia pela polícia, os criminosos levaram celular, cartões bancários e documentos pessoais da vítima.

A investigação da Polícia Civil, conduzida pelo 95º DP (Heliópolis) e assinada pela delegada Fabiana Rossi Valia, usou imagens de uma câmera de segurança localizada na rua da ocorrência para identificar os suspeitos do crime. No registro não é possível ver a ação criminosa, apenas o momento em que os quatro suspeitos passam a pé.

Fotos das imagens da câmera de segurança foram anexadas no processo, mas indicam ser do dia anterior ao roubo. | Foto: Reprodução

Em fotos retiradas do Facebook, a polícia identificou Felipe e outros dois amigos dele, Josuel Vitor Lima da Silva, 22, e Sandro dos Santos Rocha, 22, como sendo parte do grupo que aparece nas imagens. A partir disso, durante o auto de reconhecimento fotográfico realizado no dia 22 de novembro, a vítima do assalto apontou, “sem sombra de dúvidas”, Josuel como o suspeito que portava a arma, Felipe e Sandro como os outros dois assaltantes, e afirmou que uma menina, de cabelo curto e de boné, também acompanhava o trio.

Com base no reconhecimento, a polícia apresentou o pedido de prisão preventiva dos três amigos, pelo qual a promotora Ana Paola Ferrari Ambra se manifestou a favor. Em 17 de janeiro, a juíza Luciana Menezes Scorza, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), decretou a prisão temporária de Felipe, Josuel e Sandro.

“Invadiram o Facebook do meu filho e acharam os meninos lá, sendo que os três não têm nada a ver com o crime, eles não devem nada. Eles são amigos, trabalham e são todos meninos de bem”, fala indignado o pai de Felipe. O jovem segue preso há quase três meses no CDP (Centro de Detenção Provisória) Vila Independência. Josuel e Sandro souberam da acusação apenas quando o amigo deles foi detido e agora aguardam em liberdade uma decisão da Justiça sobre a apresentação de suas defesas.

Com o pedido de revogação da prisão preventiva negado pelo juiz Luis Gustavo Esteves Ferreira, do TJSP, e a denúncia oferecida pelo promotor Guilherme Peruchi, a defesa aguarda a audiência do caso, que está marcada para o próximo dia 31 de maio.

Álibi e característica físicas ignoradas

A família de Felipe alega que o jovem é vítima de uma prisão sem provas e uma investigação falha. Fabio conta que, naquele dia, seu filho entregou mercadorias no Roldão Atacadista, localizado na Av. Vila Ema, e que por volta das 16h saiu do trabalho e passou pelo Terminal Sacomã, onde guarda a bicicleta que usa como transporte no trajeto até sua casa, no mesmo momento em que o roubo ocorreu às 17h. A distância entre o local e o terminal é de pouco mais de 5 km, segundo o Google Maps.

“O documento do bicicletário, que a gente pegou no Terminal Sacomã, mostra a hora que ele pagou para pegar a bicicleta, mas o promotor falou que o documento está ilegível. Mas o controle de entrada e saída do bicicletário funciona assim: entrada de entrada da bicicleta 06h20 e tempo de duração 10 horas e 34 minutos. Esses dois dados estão visíveis. Então significa que às 16h54 ele foi lá e pagou para retirar a bicicleta”, comenta.

Além do álibi de Felipe, o promotor de vendas aponta que seu filho não é a pessoa de camiseta vermelha que aparece nas imagens da câmera de segurança. As características físicas mais divergentes são as tatuagens que Felipe possui na mão e no braço, ao contrário do rapaz considerado suspeito pela polícia.

Documento mostra horário em que Felipe retirou sua bicicleta | Foto: Reprodução

A gravação também mostra uma divergência com os fatos relatos no boletim de ocorrência e que não é esclarecida durante as investigações. As imagens são do dia 4 de novembro de 2021, dia anterior ao registro do roubo. “Meu filho está sendo forjado. O juiz e o promotor não podem ficar na síntese de que a vítima reconheceu meu filho. Já foi mandado as fotos e percebe-se que não é o meu filho. Não tem o porquê ficar nessa síntese”, lamenta.

Segundo Fabio, Felipe tem um filho pequeno, mora com a esposa e é responsável por boa parte do sustento da família. “Quando vou visitá-lo, ele fala que está confiando em mim. E eu falei que estou fazendo tudo na medida do possível porque não entendi o porquê de ele estar preso, as coisas não se encaixam. É um negócio fora do normal”. A defesa de Felipe solicitou acesso às imagens da câmera de segurança do Terminal Sacomã para a SPtrans e anexou ao processo o controle de ponto realizado via WhatsApp, em que o jovem enviava fotos da fachada do local que estivesse para seus supervisores.

Felipe possui tatuagens no braço e na mão esquerda, ao contrário do rapaz de camiseta vermelha das filmagens. | Foto: arquivo pessoal

Nesse período, tanto Sandro e Josuel vivem incertezas com a acusação e reiteraram à reportagem que não são as pessoas que aparecem nas filmagens. “No dia desse ocorrido, eu estava trabalhando, mas passei mal no serviço e fui para casa. Quando eu fiquei melhor, eu fui tomar vacina da Covid-19, até tenho aqui o comprovante, e depois fui ao dentista”, relata Sandro, que trabalha como ajudante geral.

Ausência de provas técnicas

O advogado André Alcântara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, analisou o processo a pedido da Ponte e critica a atuação da polícia no caso. “A política de metas da segurança pública faz com que a polícia seja uma grande violadora de direitos. Eles mesmos produzem a demanda deles para justificar a própria ação. Esse é um caso típico de que vale-tudo para cumprir a meta, sem nenhum controle. O Judiciário e o Ministério Público entendem que é um método investigativo prender pessoas”, aponta.

Segundo ele, a justificativa da prisão preventiva de Felipe é genérica, apontando para a gravidade do crime e para a produção de provas, e até mesmo subjetiva. Em relação às filmagens apresentadas, que basearam o reconhecimento, o advogado explica que não houve uma comparação técnica entre elas e as fotografias dos três amigos.

 “Não se fala também como se chegou a eles, qual o método investigativo. E pode ver que o Felipe e o suspeito da filmagem possuem tonalidades de cor de pele diferentes. Então não se faz uma análise técnica disso, um comparativo das expressões faciais, é com base em achismo, não tem justificativa racional para isso”, destaca.

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A falta de descrição das características dos assaltantes pela vítima no auto de reconhecimento e a ausência de depoimento de Felipe também são apontadas por André. “Não é um trabalho inteligente que a polícia faz, é um trabalho de violação, de força, de opressão. O que a gente vive no Brasil é realmente um faz de conta, é uma grande arbitrariedade”, avalia.

Outro lado

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP), do governo Rodrigo Garcia (PSDB), para questionar sobre os apontamentos feitos em relação à investigação da Polícia Civil, o motivo da divergência nas datas da filmagem e do roubo, e os procedimentos adotados no reconhecimento de Felipe, Sandro e Josuel. Até o momento, não obtivemos resposta.

Questionados sobre as provas utilizadas para justificar a denúncia e a decretação de prisão preventiva de Felipe, o Ministério Público (MP) e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) também não retornaram o contato.

A reportagem também tentou entrar em contato com a vítima do roubo, mas não obteve retorno.

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