Com chefe de polícia ameaçando jornalistas e internet desligada, Uganda reelege presidente pela 7ª vez

    Há 36 anos no poder, Yoweri Museveni usou táticas como prisão de adversários, violência policial e até assassinato para garantir reeleição; principal opositor, o cantor de reggae Bobi Wine, está em prisão domiciliar

    Ilustração de 2016 sobre a condução das eleições em Uganda

    Na última quinta-feira (14/1), os cidadãos de Uganda foram às urnas para escolher entre dez candidatos a presidência do país da África Oriental. Os principais eram Yoweri Museveni, de 76 anos, presidente do país há 36 anos, e o parlamentar, cantor e ativista, Robert Kyagulanyi Ssentamu, conhecido como Bobi Wine, de 38 anos.

    Segundo o portal de notícias African Report, quase 18 milhões de eleitores eram esperados para comparecer às urnas. Dois terços dos registrados têm menos de 30 anos e nunca conheceram outro governo que não o de Museveni.

    Apesar das acusações de violência e fraude, no sábado (16/1), a Comissão Eleitoral de Uganda anunciou a reeleição de Museveni, que se completar o novo mandato vai completar 40 anos no poder. Os resultados apresentados pelo diretor da Comissão Eleitoral Simon Byakabama apontam que, como o esperado, o atual presidente teve 59% dos votos (5.85 milhões) enquanto Wine obteve 35% (3.4 milhões).

    Ao portal de notícias alemão DW, Charity Kalebbo Ahimbisibwe, chefe da Coalizão de Cidadãos para a Democracia Eleitoral no Uganda, afirmou que não acredita que as eleições gerais de 2021 foram livres, justas e confiáveis. Há suspeitas ainda que, além da violência e organização precária das seções, dois milhões de ugandeses não teneham tido a chance de se registar para a votação e outros sete milhões deixaram de comparecer às urnas por medo.

    No vídeo, o chefe da eleição eleitoral pergunta se a informação que eles está lendo “está correta”.

    Violência

    Logo no início da campanha eleitoral, vários candidatos da oposição, entre eles Bobi Wine, que despontou como principal opositor de Museveni, foram detidos diversas vezes e impedidos de fazer campanha a pretexto de restrições impostas às concentrações populares no processo de combate à pandemia do novo coronavírus.

    No início de janeiro, Inspetor Geral da Polícia, Martin Okoth Ochola, defendeu o uso de violência contra jornalistas que fazem a cobertura eleitoral, uma prática que vinha sendo denunciada há algumas semanas. O argumento não poderia ser mais “superprotetor”: “Não é que estejamos visando a mídia, não, estamos tentando proteger suas vidas, estamos lhe dizendo que é perigoso lá, para vocês. Vocês estão insistindo que devem ir onde há perigo. Sim, nós os espancaremos para seu próprio bem. Para ajudá-los a entender que não devem ir lá”, Ochola disse em rede nacional, de acordo com o Africa News.

    A reação da população as prisões, sobretudo as de Wine, gerou conflitos com a polícia que acabaram com mais de 50 mortos, de acordo com a DW. Em dezembro, a equipe de coordenação do opositor foi presa, solta sob fiança e presa novamente. Um dos guarda-costas de Wine foi a última vítima fatal da violência policial, semanas antes da eleição.

    Houve ainda um último golpe na campanha de Bobi Wine: a “prisão domiciliar” a que foi forçado. Oficiais armados cercaram a casa dele na última sexta (15/1). O candidato e a família estão incomunicáveis e o suprimento de comida é escasso. No dia da eleição, Bobi votou sob forte esquema de segurança ao lado da esposa, Barbie Kyagulanyi.

    Em vídeo a esposa e o filho de Wine sofrem violência de militares

    “Ninguém pode entrar ou sair da casa. Jornalistas, locais e estrangeiros, foram impedidos de falar comigo aqui em casa”, disse Bobi à BBC. “Não se pode falar. As pessoas temem falar contigo porque podem falar quando os espiões estão por perto. Eles vêm e batem em você. As pessoas estão assustadas “, afirmou.

    À imprensa, Museveni afirmou que aceitaria os resultados “se não forem cometidos erros”. Como se pode imaginar, ele aceitou sua própria vitória enquanto Wine acusa as eleições de serem fraudulentas e que está reunindo provas.

    De acordo com o portal Voa News, a sede da Plataforma de Unidade Nacional, partido de Bobi Wine, foi invadida na manhã desta segunda-feira (18/01) por policiais. O fato ocorre um dia depois de Wine desafiar sua perda nas eleições presidenciais da semana passada.

    Ainda seguindo o portal, um porta-voz da polícia disse que os escritórios do partido foram isolados por razões de segurança, mas não disse se as tropas realmente entraram no prédio.

    O legislador Francis Zaake, um apoiador do Wine, que no passado foi preso e supostamente torturado pelas forças de segurança, teve acesso no sábado, apenas para ser detido no bloqueio da estrada. Ele foi então tirado de seu carro e espancado antes de ser jogado em uma van da polícia.

    Blecaute da Internet

    Durante a campanha eleitoral, o Facebook deletou uma rede de contas, algumas ligadas a oficiais do governo, sob a acusação de manipular a opinião pública. A chefe de comunicação do Facebook na África Subsaariana, Kezia Anim-Addo contou à Agência France-Presse, que essas contas estavam conectadas ao Ministério das Comunicações e eram falsas ou duplicadas servindo para disseminação de conteúdo para aumentar a popularidade do candidato a reeleição.

    Museveni reagiu acusando a plataforma de “arrogância” e deu ordens para seu bloqueio bem como de outras redes sociais e sites. “Se você quer se opor ao Movimento de Resistência Nacional, então você não pode operar em Uganda. Não podemos tolerar esse tipo de arrogância de alguém que queira decidir por nós quem é bom e quem é ruim”.

    De acordo com a rede de notícias CNN, começou com o Facebook e outras redes sociais, depois a internet de todo território foi desconectada na quarta-feira (13/01). De acordo com o monitor de liberdade na internet Netblocks, o apagão já impactou a economia ugandense em US$ 9 milhões. Nem mesmo servidores VPN, capazes de driblar os bloqueios, funcionaram durante o período.

    Organizações de imprensa expressaram preocupação com a censura aos meios de comunicação e ao acesso a informação. Em uma coletiva, a Comissão Eleitoral foi questionada sobre como seria a transmissão dos resultados eleitorais. De acordo com o jornalista Mujuni Raymond, a resposta foi curta e nebulosa: “Não se preocupem, nós não estamos usando internet local”. Após cinco dias sem sinal em todo o país, e após garantir a vitória, o governo desbloqueou o acesso à rede neste domingo (17/1).

    Os candidatos

    No poder desde 1986, Yoweri Museveni é do partido Movimento de Resistência Nacional. Longe de querer deixar o poder, em abril de 2019, ele alterou a constituição do país de modo a banir o limite de idade para ser presidente. Segundo o African Report, ele é tido como “libertador e o pacificador” do país depois de anos de violentas lutas políticas para estabelecer um estado pós-independente. Vale lembrar que Uganda pertenceu à coroa britânica até 1962.

    Por conta disso, ele conta com grande apoio nas áreas rurais, sobretudo entre a geração mais velha que o associa com a estabilidade que trouxe após os conflitos sangrentos antes de 1986. Além disso, grandes investimentos em infraestrutura e combate à Covid-19 são percebidos por parte da população como exemplos de sucesso.

    Somado a isso, ao longo das décadas, ele contou com apoio das forças armadas e de alianças com os Estados Unidos e outras potências mundiais. Segundo a CNN, no entanto, conforme o país se tornou uma das economias mais fortes da África Subsaariana, a habilidade do governo Museveni em responder as demandas de uma população cada vez mais educada e conectada vem minguando. Isso ficou ainda mais claro nestas eleições, pois o African Report aponta que ele teve o menor número de votos desde meados dos anos 90.

    Representando essa nova geração, a estrela do reggae Bobi Wine, da Plataforma de Unidade Nacional, é conhecido entre seus apoiadores como o “presidente do gueto”.  Desde 2017, Wine ocupa uma cadeira como deputado por Kyadondo do Leste no parlamento do país, onde é um ferrenho crítico da corrupção. No ano seguinte a sua posse foi preso e condenado por traição. De acordo com o portal americano Foreign Policy, Bobi teria sido torturado por membros do Exército do país durante sua custódia.

    Ao se lançar como candidato em 2020, ele contava com grande apoio da juventude do país, onde a média de idade da população é de 16 anos. Essa nova geração vinha apostando numa campanha de sensibilização digital, utilizando as redes sociais para cativar mais apoiadores jovens.

    Segundo relato do Voa News, um funcionário do partido de Wine disse que tem provas de “enchimento de cédulas e outras formas de negligência eleitoral” e que o partido “tomaria todas as medidas que a lei permite para contestar esta fraude”.

    Reação Internacional

    As reações da comunidade internacional vieram das mais distintas maneiras. A United Nations Watch, organização não governamental cuja missão declarada é “monitorar o desempenho das ONU segundo os parâmetros de sua própria Carta”, parabenizou ironicamente Museveni pela vitória “após assassinar, prender e silenciar oponentes, fechar a internet e cometer fraude generalizada aos eleitores”.

    Até então aliados de Uganda, os EUA, por meio da porta-voz do Departamento de Estado, Morgan Ortagu,  pediram “investigações independentes, credíveis, imparciais e completas sobre esses relatórios e que os responsáveis sejam responsabilizados” após de relatos “muitos relatos confiáveis de violência por parte das forças de segurança durante o período pré-eleitoral e irregularidades eleitorais durante as urnas”.  

    Já o governo do Reino Unido, ex-metrópole de Uganda, “saúda a passagem relativamente calma das eleições em Uganda e observa a reeleição de S.E. Yoweri Museveni como Presidente”.  Pontuando as preocupações acerca do pleito, o ministro britânico para a África,  James Duddridge, destacou que é “é importante que estas preocupações sejam levantadas, investigadas e resolvidas de forma pacífica, legal e constitucional”.

    A diretora regional adjunta da Anistia Internacional para a África Oriental, Sarah Jackson, expressou preocupação com “a retórica ameaçadora dos altos funcionários do governo, o uso da violência e uma crescente repressão contra a oposição política, defensores dos direitos humanos, ativistas, jornalistas e atores da sociedade civil, é alarmante que as autoridades ugandenses tenham suspendido as redes de mídia social, incluindo Twitter, Facebook e WhatsApp e restringido o direito das pessoas à liberdade de expressão e acesso à informação”.

    Até o momento, a União Africana, organização que promove a integração entre os países do continente africano nos mais diferentes aspectos, não se manifestou sobre os acontecimentos em Uganda.

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