Com datas erradas, polícia prendeu dois jovens ’em flagrante’ dois dias depois de crime. Agora foram soltos

    Denunciados por roubo a uma farmácia em São Paulo, Fagner e Valdeir ficaram 50 dias presos. Juiz aponta contradições nas provas e diz que prisão “não se justifica”

    Familiares de Fagner e Valdeir reuniram-se em um protesto no Cambuci, centro da cidade de São Paulo no dia 3 de março | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo.

    Depois de 50 dias presos, Fagner Jorge Gonçalves, 29 anos, e Valdeir Cardoso do Amaral, 28 anos, tiveram sua liberdade garantinda nesta quinta-feira (18/3), pelo juiz Guilherme Augusto de Oliveira Barna, da 1ª Vara Criminal do Foro Central Criminal Barra Funda. A previsão é que ambos sejam liberados do Centro de Detenção Provisória (CDP) Chácara Belém II, localizado no Tatuapé na tarde desta sexta-feira (19/3). 

    Os dois lutavam pela liberdade desde o dia 28 de janeiro de 2021, quando foram presos aos serem apontados como os responsáveis pelo roubo a uma farmácia em São Paulo em 25 de janeiro. 

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    O juiz de primeiro grau considerou a prisão de ambos desnecessária, uma vez que houve contradição nas provas apresentadas no inquérito policial. “Com efeito, no presente momento processual se há dúvida, resultante de contradição entre provas pré-constituídas, não se justifica a decretação ou subsistência de prisão preventiva”, diz o juiz na decisão emitida nesta quinta-feira (18/3). 

    O caso apresenta incoerências, incluindo a data do crime registrada no boletim de ocorrência. O documento feito pelo delegado Marco Antônio Duarte, do 8º DP (Brás), aponta que o roubo aconteceu no dia 27 de janeiro, quando na verdade ocorreu na madrugada do dia 25 para o 26. Na hora do crime Fagner estava em casa, como mostraram as câmeras de segurança de seu condomínio. 

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    Além disso, o carro em que os dois estavam quando foram abordados pela polícia não foi encontrado nas imagens das câmeras de segurança da farmácia e tampouco sua placa foi comprovada durante a investigação.

    A defesa pediu em ofícios ao Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Copom) e ao Batalhão da Polícia Militar as filmagens das câmeras dos policiais e os relatórios que mostram a presença do veículo na hora do crime, mas até o momento o órgão não cumpriu o pedido.

    O reconhecimento feito pelas vítimas também contrariou o que ordena o artigo 266 do Código de Processo Penal (CPP). Além disso, os assaltantes utilizavam bonés e máscaras no momento do crime.

    O advogado Vinícius Jonathan Caetano criticou o reconhecimento em entrevista à Ponte. “O reconhecimento feito pelo delegado não respeitou o artigo 226 do Código de Processo Penal, que fala que o acusado deve ser colocado em conjunto com mais pessoas para que a vítima faça o reconhecimento. Neste caso, ele simplesmente pegou os dois réus, colocou na parede e falou que eram eles, ou seja, os acusados não foram colocados com mais pessoas para que o reconhecimento deles pudesse ser feito corretamente. Esse reconhecimento foi induzido pela polícia”.

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    Na decisão o juiz também lembrou que a regra na ordem jurídica é a liberdade e que por isso a prisão em regime fechado deve ser utilizada em último caso. “Urge consignar que a prisão preventiva é uma medida excepcional, de natureza cautelar, que autoriza o Estado, observadas as balizas legais e demonstrada a absoluta necessidade, restringir a liberdade do cidadão antes de eventual condenação com trânsito em julgado”.

    A decisão veio após um novo pedido de habeas corpus feito pelos advogados Vinícius Jonathan Caetano e Sheyla da Cruz Silva. A defesa havia solicitado a reconsideração da prisão dos acusados no final de fevereiro, mas, sem resposta, decidiram ingressar com novo HC junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, alertando sobre a morosidade da 1ª Vara Criminal do Foro Central Criminal Barra Funda. Com isso, o juiz de primeira instância concedeu o alvará de soltura. 

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    Vinicius explica que o juiz se baseou sobretudo nas falhas do inquérito policial. “Com o argumento de que os erros e as falhas apontadas no inquérito policial, tendo em vista as imagens das câmeras, tornava duvidosa a autoria do crime sobre os acusados. Em especial as imagens que mostram o Fagner dentro do condomínio”. 

    Ainda assim, ele lembra que o processo não acabou. “Sabiamente o juiz decidiu pela liberdade com a imposição de medidas restritivas até que venha a audiência de julgamento em que vai se decidir pela absolvição ou pela condenação dos nossos clientes”.

    A advogada Sheyla reitera que existem ilegalidades na prisão, incluindo o flagrante inexistente. “A defesa vem de forma insistente apontar as ilegalidades praticadas no ato da prisão em flagrante, lembrando que, tecnicamente, jamais houve flagrante. Foram pelo menos quatro tentativas por parte da defesa em solicitar imagens que pudessem comprovar a inocência dos réus bem como a ilegalidade da prisão. Contudo, somente após incessante insistência dos defensores e mediante instauração de incidente de antecipação de provas foi que o juiz de primeira instância deferiu a juntada das imagens que mostraram o momento da prisão dos acusados”.

    Ela ainda lembra que o Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Copom) não encaminhou os documentos solicitados. “Já o Copom da Polícia Militar do Estado de São Paulo recebeu intimação judicial quanto às supostas provas, conforme narrou o inquérito policial, porém até o presente momento não cumpriu a referida intimação nem tampouco a respondeu”.

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    Na visão da advogada, o Ministério Público não cumpriu seu papel de fiscal da lei. “Ressalto que o próprio MP exerce também a função de Fiscal da Lei, mas sustentando uma ação penal vinda de um inquérito policial cheio de vícios e indícios de abuso de autoridade, falsidade ideológica e falso testemunho”.

    Fagner e Valdeir deverão comparecer à Justiça mensalmente a fim de informar e justificar suas atividades, responder todos os atos processuais, não sair da cidade sem avisar o juiz e permanecer em casa no período noturno das 22 às 6 horas da manhã.

    “O relaxamento da prisão foi deferido, mas a decisão do magistrado não deixa de tolher dos acusados os direitos de liberdade que lhes concedem a constituição federal”, finaliza a advogada.

    Outro lado

    Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, por meio da assessoria de imprensa terceirizada InPress, não respondeu porque os documentos solicitados pela defesa ao Copom não foram enviados ao poder judiciário. A pasta também não respondeu se o delegado gostaria de se manifestar acerca das supostas provas.

    Em nota, o Ministério Público informou que “irá se manifestar nos autos da ação penal, oportunamente”.

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