‘Com um braço ele segurava a minha filha e com outro me agredia’

    Vítima de tentativa de feminicídio, Layana conta como é viver no Piauí, estado brasileiro que mais mata mulheres em razão do gênero; em uma das agressões, ela estava grávida e perdeu o bebê

    Protesto organizado no último dia 6, por coletivos de mulheres em Teresina, contra o feminicídio | Foto: divulgação/Frente Popular de Mulheres contra o Feminicídio

    “Com um braço ele segurava minha filha dormindo e com o outro braço ele me agredia.” É dessa forma que a dona de casa Maria Layana Araújo Pereira, 30 anos, lembra de sua última noite de Natal, em Boa Hora, no Piauí, com o ex-companheiro José de Oliveira. Depois de anos de relacionamento abusivo, baseado em dor física e psicológica, segundo Layana, ela conseguiu sobreviver a uma tentativa de feminicídio e decidiu expor sua história, porque sente medo que o ex-companheiro volte a procurá-la. De acordo com o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017, o Piauí é o estado com maior taxa de feminicídios do país: 57,4%. A taxa brasileira é de 11,4%.

    A vítima conheceu o agressor em 2012 e conta que o relacionamento sempre foi abusivo. “Qualquer coisa ele me batia”, afirma. E uma das agressões, Layana estava grávida de sete meses, quando decidiu colocar fim na relação que era marcada por idas e vindas, muita cobrança e infidelidade. “Eu disse que não queria mais aquela situação. Ele começou a me agredir. Ele me deu um empurrão e caí de costas. Uma semana depois, a bebê parou de mexer”, conta. Layana teve que parir a criança já morta. “Ele desapareceu. Nem no velório da menina ele apareceu”, desabafa.

    Foi com um par de sapatos embrulhado para presente que José, depois de trinta dias, tentou se reaproximar e convenceu Layana que estava arrependido e que iria mudar. “E eu, abestada, caí na dele”, lamenta a mulher, que afirma ter mais de 20 boletins de ocorrência contra o homem. “Ele fazia minha cabeça, me ameaçava e eu voltava”, diz. Após o retorno, ela engravidou mais uma vez. A filha, hoje, tem dois anos e sete meses.

    E foi segurando essa criança que José bateu em Layana pela última vez, na véspera de Natal. “Eu saí pra comprar roupa nova para menina, pra mim, pra ele. Tiramos foto antes de sair. Estava todo mundo de boa”, relata. O casal e a filha foram até a casa de um amigo dele e as agressões começaram lá mesmo, quando a vítima questionou sobre uma mulher sobre a qual ele falava com as amigas, mas que ela não conhecia: “Eu perguntei quem era e ele não respondeu. Na terceira vez que eu perguntei, ele só virou e me deu o primeiro tapa e eu caí da cadeira”, afirma.

    Até ter coragem de denunciar, Layana conviveu com vergonha e medo| Foto: arquivo pessoal

    Segundo ela, os amigos pediram para ele parar com as agressões para que não fosse preso. O casal, então, foi embora. No caminho, Layana conta que ele dirigia o carro “como um doido” e que ela chorava muito. Ao chegar na casa, ela conta que as agressões continuaram a ponto de ela desmaiar. A mulher também afirma que só recobrou a consciência depois de o marido jogar água no rosto dela. “Foi então que ele amarrou uma corda no meu pescoço e dizia que eu não ia virar 2018. Mas acho que ele não teve coragem de me matar na frente da criança”, conta, emocionada.

    Depois da série de agressões, a vítima conta que ficou durante dois dias em cárcere privado dentro do quarto da filha. A salvação só veio quando o ex-companheiro saiu para trabalhar e Layana conseguiu ir até o carro para pegar o celular dela. Com o aparelho em mãos, ela procurou na busca da internet por uma advogada,  que acionou ajuda por meio de um aplicativo chamado Salve Maria. “Em menos de 40 minutos, a polícia estava em casa”, afirma a vítima.

    Layana, alguns dias depois das agressões | Foto: arquivo pessoal

    Mesmo sobrevivendo à tentativa de feminicídio, Layana diz que ainda vive com medo e, embora punido dentro das leis previstas, para ela, o fato de ele estar solto, gera muita insegurança. “O clima é de terror. Eu me sinto ameaçada”, desabafa. Depois de ser preso em flagrante, José ficou em prisão provisória por cinco meses, aguardando julgamento. ‘Zé Nezinho’, como é conhecido, foi condenado a 6 meses em regime semi-aberto por lesão corporal em violência doméstica (artigo 129, inciso 9º, do Código Penal). Contudo, a juíza Patrícia Luz Cavalcante, da Vara Única da Comarca de Barras, ponderou que, como ele já havia cumprido grande parte da pena, ele poderia ir diretamente para o regime aberto e arbitrou o pagamento de multa de R$ 5 mil em favor da ex-mulher, como forma de reparação por danos morais.

    A vítima afirma que o dinheiro não cobre o valor das cirurgias que ela precisa fazer para tratar as fraturas que teve em decorrência da violência: desvio de septo e fratura no seio maxilar direito, abaixo do olho. Segundo a vítima, tornar o caso público foi uma decisão que foi feita para sua proteção. Além disso, ela afirma que quer mostrar que, depois de muito tempo, entendeu que ela não é a culpada das agressões: “O problema não estava em mim. Estava nele”, finaliza.

    A Ponte entrou em contato com o Tribunal de Justiça do Piauí e com o delegado responsável pelo caso, mas não obteve resposta até o momento. Também questionamos o advogado que fez a defesa de José sobre a possibilidade de recorrer da condenação, mas ele afirmou que José não é mais seu cliente.

    Salve as muitas ‘Marias’

    Criado em 2016, a pedido da Secretaria da Segurança do Piauí, o aplicativo “Salve Maria”, usado por Layana para escapar do seu algoz, funciona com apenas três botões. Um deles é o de pânico. O programador Carlos Augusto Jr. e um dos criadores do app explica que esse botão envia uma mensagem para o Copom da Polícia Militar, passando a geolocalização da pessoa em situação de violência. Então, uma viatura é enviada ao local. “Ele é usado em casos de urgência”.

    Em entrevista à Ponte, Carlos conta que a Agência de Tecnologia da Informação do Piauí, da qual faz parte, foi procurada pelo governo há dois anos, para que fosse pensada uma solução tecnológica para combater o feminicídio, quando os índices já geravam preocupação.

    O segundo botão é o de denúncia e pode ser usado por pessoas que acompanham uma situação de violência doméstica. Ele pode ser acionado por um parente, um vizinho ou qualquer pessoa que tenha presenciado algo preocupante. Depois de acionar o botão, a testemunha pode informar o endereço de onde estão acontecendo as agressões, passar o nome do suspeito e da vítima e arquivos de áudio e vídeo que possam servir como provas. Assim, é aberto um inquérito policial para apurar a denúncia que é sempre feita anonimamente. O terceiro e último botão é para que o usuário tenha informações gerais sobre o aplicativo, que pode ser baixado em qualquer celular gratuitamente.

    A ‘culpa’ por ser mulher

    De acordo com dados do Ministério da Segurança, o Brasil ocupa o quinto lugar mundial de feminicídio. O Piauí é o estado que mais mata mulheres. Por conta disso, mulheres piauienses se reuniram e criaram a Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio para denunciar e combater os números alarmantes. Segundo a militante Maria Madalena Nunes, diretora do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Piauí, “as mulheres estão sendo assassinadas por qualquer motivo, pelo simples fato de ser mulher.”

    Protesto realizado em Teresina para denunciar o feminicídio no estado | divulgação/Frente Popular de Mulheres contra o Feminicídio

    No dia 6 de junho, por volta das 16h, cerca de 300 pessoas, a maioria mulheres, se reuniram no centro de Teresina para protestar por essas vidas perdidas por causa do machismo. Só na semana do dia 20 de maio, foram assassinadas cinco mulheres na região. A partir disso, a reação foi imediata. “Tudo foi organizado de forma voluntária, unificando vários movimentos sociais e mobilizando mulheres de várias partes e diversas organizações, na perspectiva de consolidar e ampliar a Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio”, conta Maria.

    Segundo a representante, o primeiro objetivo é organizar pessoas para resistir contra a violência no estado. A partir dessa organização, elas querem exigir do poder público as devidas providências para barrar o que chamou de “terror” sofrido pelas mulheres. “Os governos são tão responsáveis por esta situação quanto os assassinos”, afirma.

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