Conselho denuncia mais de dez ilegalidades cometidas pela PM de SP em protesto

    Fotojornalista da Ponte ferido com bala de borracha participou de reunião: ‘Não sou o primeiro nem serei o último a ser agredido pelo Estado’

    Ato do último dia 16 ficou marcado por forte repressão policial contra manifestantes e imprensa | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    O Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) formalizou um ofício ao defensor público-geral do Estado de São Paulo, Davi Eduardo Depiné Filho, além de emitir uma nota pública, apontando mais de dez ilegalidades e arbitrariedades na atuação da Polícia Militar no protesto contra o aumento da tarifa do transporte público em SP, ocorrido na última quarta-feira (16/1).

    Na ocasião, o fotojornalista da Ponte Daniel Arroyo levou um tiro de bala de borracha perto do joelho direito e teve pedido de ajuda negado pela corporação. Foi o segundo ato organizado pelo MPL (Movimento Passe Livre) depois que a passagem do ônibus e do metrô aumentou de R$ 4 para R$ 4,30.

    Na quinta-feira (17/1), provocado por um pedido de entrevista feito pela Ponte, o governador João Doria disse, em nota enviada pela assessoria de imprensa do Palácio do Governo, que apoia a liberdade de imprensa e vai aguardar o fim da apuração para saber o que aconteceu.

    O Condepe também informou as ilegalidades ao Ministério Público, a Secretaria de Segurança Pública e à Ouvidoria das polícias. O presidente do conselho, Dimitri Sales, assinalou que o cenário político atual é preocupante para os direitos humanos e, no final do ano passado, foi criada uma Comissão Especial de Violência Política dentro do órgão que visa justamente observar essas violações, denunciar e cobrar os responsáveis.

    “A manifestação é um direito constitucional e fundamental, assim como o direito do exercício da liberdade de imprensa”, afirmou Sales. Para o conselheiro, nos dois atos as violações aconteceram, mas no segundo, as ilegalidades cometidas pelo Estado superaram qualquer expectativa mais pessimista. “Não cabe a nenhuma força pública estabelecer condições para o exercício a liberdade de expressão e livre manifestação. Na primeira manifestação, a gente já tinha identificado a tentativa de impor o trajeto que os manifestantes deveria tomar. Foi também uma atitude irrazoável impedir que o ato seguisse até ao local de encerramento, previso para ser na Praça do Ciclista”, analisou.

    “Na manifestação de quarta-feira, foram muitos os atos de ilegalidades e arbitrariedades. Ficou bastante evidenciado o uso indevido de armamentos menos letais, a falta de identificação dos policiais. Muitos estavam sem os distintivos que os identificam, que é preciso ter o nome e a patente. No lugar, por alguma razão desconhecida até agora por esse conselho, os distintivos estavam com códigos impossíveis de serem identificados de maneira rápida. Isso constitui um dever do policial e um direito do cidadão, já que os PMs são efetivos funcionários públicos. Em uma democracia, o poder militar se submete ao poder civil, que é a sociedade. Ao final do ato, havia uma quantidade completamente desproporcional de policiais frente a um número bem menor de manifestantes. E o que vimos na sequência foi uma tentativa de emboscada, uma caçada aos manifestantes que desceram para a avenida Amaral Gurgel e ali foram abordados”, continuou Sales.

    Policiais do Caep, o Grupo de Ações Especiais da PM, estavam com identificação sem nome e mascarados, impossibilitando a identificação | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Além das três ilegalidades acima citadas, o presidente do Condepe citou outras, como o lançamento de bombas pelas costas de um grupo de manifestantes que estava sentado aguardando o início da passeata, o ataque à imprensa e as circunstâncias das prisões, bem como o uso de algemas verificado em alguns casos e sem qualquer justificativa.

    “Já na dispersão, na Praça Roosevelt, houve novamente excesso da polícia, que estava em quantidade muito superior aos manifestantes e passava a impressão de um cerco a qualquer momento. Algumas pessoas desceram até a avenida Amaral Gurgel e o que se viu foi uma verdadeira caçada a esses manifestantes. Muitos tiveram os documentos de identidade fotografados e mulheres estavam sendo revistadas por policiais homens, o que não é permitido” explicou Sales, que destacou a presença de um ônibus descaracterizado próximo do local onde o protesto terminaria.

    “O veículo não estava transportando PMs e não sabemos dizer qual a finalidade daqueles ônibus. Além disso, policiais pegaram as mochilas dos detidos, colocaram na viatura e elas só foram devolvidas na delegacia”, relatou.

    Em uma das mochilas havia um coquetel molotov. “O fato foi negado pelo dono da mochila e na sequência os policiais militares usaram o celular pessoal deles para tirar fotos dos jovens detidos já no 2º DP. Não sabemos a destinação daquelas imagens. Eles já estavam sob poder da autoridade policial civil, ou seja, o delegado”, declarou.

    Os únicos três participantes da manifestação presos passaram por audiência de custódia ainda na quinta-feira e foram liberados provisoriamente mediante pagamento de fiança – dois pagaram um salário mínimo cada e o terceiro um terço de salário mínimo – e vão responder por posse de acessório de uso proibido ou restrito.

    Daniel Arroyo foi convidado pelo Condepe para relatar a violência que sofreu da Polícia Militar enquanto trabalhava | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    O fotojornalista da Ponte Daniel Arroyo adotou um tom crítico à atuação da polícia e contou alguns detalhes do que conseguiu registrar quando ainda não tinha sido baleado. “Já cobri muitas manifestações, não tenho nem como contar, mas certamente mais de 30, e com certeza eu não fui o primeiro e não serei o último a ser ferido pela Polícia Militar”, afirmou, em referência ao ferimento do também fotojornalista da Ponte Sérgio Silva, atingido no olho por uma bala de borracha que o deixou cego, em junho de 2013, e Deborah Fabbri, atingida em 2016 por estilhaços de bomba de gás, também durante um protesto.

    “A PM de São Paulo tem uma forma diferenciada de tratar o MPL [Movimento Passe Livre]. São atos em que a polícia fica mais próxima dos manifestantes de maneira geral. E essa proximidade, por causa da conduta repressiva e de não diálogo, é sempre complicada para os manifestantes. Os mediadores [PMs Mediadores, prática inaugurada pela corporação este ano e que buscariam ser o canal de diálogo entre forças de segurança e os manifestantes], por exemplo, precisam entender que tipo de tropa está na rua. O mediador não tem poder sobre a ação, ele precisa consultar o comandante, aí fica aquela coisa de leva e trás, e a imprensa fica sem saber o que está acontecendo ou o que está sendo negociado.O que ficou claro é que os mediadores não conhecem a tropa. Eles mediam uma coisa e a tropa faz outra”, criticou Arroyo.

    As representantes do MPL presentes na reunião na sede do Condepe concordaram. “Isso é uma farsa, uma tentativa da polícia de mostrar como aqueles que estão a favor da democracia e abertos ao diálogo. Eles não são aqueles que decidem sobre a operação, não estão no comando e o que vimos é que a atuação deles serve muito mais para atrasar, enrolar os manifestantes do que para de fato negociar”, declarou Gabriela Dantas, do MPL, que também destacou que pelo menos uma manifestante mulher foi revistada por um policial homem.

    “Há diferença de tratamento da polícia quando o protesto traz pautas mais de direita e como consequência pessoas mais ricas, com mais dinheiro.  Então tem um recorte classista e racista também essa ação repressiva, essa abordagem. E isso acontece todo dia na periferia, mas ganha visibilidade em manifestação porque é no centro, é na Avenida Paulista”, criticou Dantas.

    Para Daniel Arroyo, há uma escalada de violência nos atos, que começa com tentativas por parte da polícia de impedir a saída dos manifestantes, como aconteceu na última quarta-feira, detenções e revistas feitas fora do olho da imprensa até investida com bombas e tiros de bala de borracha. “As abordagens não são exatamente uma novidade, mas são muito violentas. Eu já escutei de policiais ‘ah, eu vou pinçar esse aqui’. Eu já presenciei membro do Caep procurando a partir da imagem do celular dele se determinada pessoa estava ali. Normalmente não fica clara a acusação, a pessoa é levada e não sabe para onde e nem o motivo. Quando há revista, eles fazem em um lugar onde a imprensa não tem acesso. Existe um cerco muito bem feito da PM. Eu já cansei de tentar fazer imagem e a polícia se colocar na minha frente. Se existe uma preocupação em não se mostrar o que está acontecendo então existe alguma coisa errada”, destacou.

    O fotojornalista destacou, para além da falta de identificação na farda, as máscaras usadas pelo Caep. “Já ouvi dizer que depois de um ato do ano passado onde houve, de fato, lançamento de coquetel molotov na polícia, os agentes passaram a usar a balaclava como proteção. Mas se é proteção, por que nem todos usam máscara? Eu não consigo identificar o PM que atirou em mim porque ele estava sem o nome e de máscara. Isso precisa ser respondido pelo Estado: por que o padrão de identificação muda em protesto? Ou ainda, se existe um equipamento de segurança, por que só alguns usam?”, provocou.

    Sofia Sales, também integrante do MPL, afirmou que a primeira violência é o aumento da tarifa, que torna a cidade inviável para muitos. “Afasta as pessoas da cidade que nós mesmo construímos. Na última quarta-feira, houve violência covarde contra a manifestação, o ato foi reprimido à queima-roupa, pelas costas, em um grupo que estava sentado e levou estilhaço de bomba e bala de borracha, sobrando até para a imprensa, como podemos ver aqui com a presença do Daniel. Também notamos a presença de policiais infiltrados como se fossem manifestantes. Mesmo assim, não vamos desistir e já temos data para outro protesto”, disse.

    A nova manifestação do MPL está marcada para a próxima terça-feira (22/1) com concentração na Praça da Sé, no centro de SP, às 17h.

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