Cracolândia tem queda de 80% em usuários. Tráfico no local ainda é problema

    Ele tem nome de ex-presidente, mas um abismo separa a vida dos dois. Fernando Henrique, de 25 anos, vivia há pelo menos dois na Cracolândia e fazia parte do programa da prefeitura De Braços Abertos.

    Por Maitê Berna, especial para a Ponte

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    Cracolândia. Foto: Rafael Bonifácio /Ponte Jornalismo

    Aos 25 anos, com passagem na cadeia por tráfico de drogas, Fernando Henrique não hesitou em dizer a frase quando questionado sobre seu nome inteiro: “E pobre lá tem sobrenome?”. Natural de Piracicaba, interior de São Paulo, órfão de pai e mãe, viveu a infância na Casa do Bom Menino. Um pouco envergonhado, chegou a fazer piada com o xará que foi presidente do Brasil por dois mandatos: “Nunca tinha me ligado. Será que rola de me apresentar pra ele? Vai que, né…”, riu.

    Fernando Henrique fumou maconha pela primeira vez “lá pelos 13 anos”. A cocaína chegou alguns anos depois. Ele vendia droga em Piracicaba em pequenas quantidades, apenas para sustentar a dependência. Decidiu ir para a cidade grande tentar a vida quando atingiu a maioridade, porque, para ele, Piracicaba era pequena demais: “Todo mundo falava de São Paulo. Eu tinha amigos que tinham ido e se dado bem. Fui tentar, mas fui sem nada. Cheguei e nem tinha pra onde ir”.

    Os primeiros dias na capital foram na praça da Sé: “Usava albergue para tomar banho, comia por ali mesmo, porque tem um monte de gente que dá comida, não é difícil”. Fernando Henrique se perde ao tentar explicar como conseguiu a casa e o primeiro emprego, mas afirma que teve trabalhos formais em dois locais: em uma loja de autopeças e como atendente em lojas de moda masculina. Mas não abandonou o bico de venda de drogas. “O grande problema é que é um negócio muito lucrativo. No final das contas, o que repassava só pra tirar um pro meu consumo acabava dando três, quatro vezes o que eu demorava o mês inteiro trabalhando o dia inteiro para levantar”.

    Não seria difícil trocar a carteira assinada pelo tráfico de drogas, que renderia a Fernando Henrique uma boa grana. Mas nem precisou: ele foi demitido porque se envolveu em um roubo no local onde trabalhava. Chegou a ser preso, mas foi liberado porque não tinha antecedentes. Foi nessa época que ele entrou definitivamente para o tráfico. Aos 21, foi preso e ficou aí quase dois anos detido.

    Interior hotel cracolândia
    Interior de hotel descredenciado. Foto: Rafael Bonifácio /Ponte Jornalismo

    Quando saiu, a Cracolândia o recebeu de braços abertos: “Foi a primeira vez que fumei e, na moral, não queria outra coisa da vida. Imagina uma droga bem mais barata do que a cocaína, que te deixa doidão e ainda por cima não dá fome”. Ele virou um dos 1500 dependentes químicos que compõem o cenário decadente da Cracolândia, fazendo uso diário da droga nas ruas da Luz.

    O programa De Braços Abertos da Prefeitura de São Paulo, voltado para pessoas exatamente com o perfil de Fernando Henrique, está completando um ano neste mês e, de acordo com o balanço oficial, reduziu o tráfico de drogas pela metade e o número de usuários no “fluxo”, como se chama a concentração dos usuários, caiu de 1.500 para 300.

    Atualmente os braços do programa atendem 453 pessoas, sendo que 22 estão no chamado “processo de autonomia”, ou seja, estão saindo da Cracolândia. Pelo menos 100 estão morando nos hotéis e recebendo assistência médica e psicológica, mas não são remunerados. Os outros 331 participantes estão trabalhando na varrição de ruas e limpeza de praças. Fernando Henrique era um deles. O índice de recaída é de 30%. Ele também faz parte dessa estatística.

    De acordo com a coordenadora de assistência social do De Braços Abertos, Zelia Maria Pagliardi, o conceito de redução de danos, que norteou o programa desde o início, não vai mudar: “Não vamos alterar em nada o programa, vamos continuar fazendo o que está sendo feito. Estamos com capacidade para atender 550 pessoas, já há uma fila de espera e estamos selecionando novos participantes. Também está em fase de estudos uma expansão do programa para outros bairros. As entrevistas começaram na Vila Mariana, Capela do Socorro, Brasilândia, Vila Leopoldina e Cidade Tiradentes”, explicou Zelia.

    O assessor técnico da área de saúde mental e combate a drogas da secretaria municipal da saúde, Odimar Reis, explica que a ideia de criar vínculo é o mais importante no processo de recuperação do usuário de droga: “Quem faz uso recreativo não cai em um local como esse. A Cracolândia é formada por pessoas que usam a droga para aliviar as dores psíquicas, como se fosse para preencher buracos na alma”, define. Odimar explica que a maioria dos adeptos do programa sofre de algum dano psíquico, como depressão ou bipolaridade, causado pelo uso continuado do crack. Além disso, não são raros os casos de tuberculose, porque é uma doença típica de população de rua com baixa imunidade.

    Há um ano, quando o De Braços Abertos começou, uma pesquisa entre os usuários apontou o que eles consideravam prioridade naquele momento: tratamento odontológico, moradia e emprego foram os mais citados. Por essa razão, o programa nunca teve e nem vai ter a pretensão de acabar com a Cracolândia, mas sim dar opções para que quem quiser tentar sair da dependência.

    Como era o caso de Fernando Henrique, considerado exemplar no programa. Ele havia conseguido vaga em um quarto com outros três rapazes no Hotel Lucas, um dos sete credenciados atualmente. Cada um dos hotéis credenciados recebe mensalmente R$ 18 mil para cuidar da manutenção do prédio. No início do programa eram 9 estabelecimentos. Dois foram descredenciados pela Ong ADESAF há 90 dias, porque estavam com problemas de encanamento e manutenção, e foram considerados impróprios para continuarem no programa. Aliás, a ADESAF assumiu o operacional do De Braços Abertos em setembro, depois que a Brasil Gigante perdeu a parceria, por não atender as demandas do programa. A prefeitura de São Paulo não informou o quanto foi gasto no programa até agora e nem a previsão de aporte para a continuação dele neste ano.

    Essa, aliás, é uma das críticas que o padre Julio Lancellotti, que tem um longo histórico de luta pelo direito da população de rua, faz em relação ao De Braços Abertos. Além disso, para ele, os números apresentados pela prefeitura são pequenos considerando que o programa está em vigor há um ano. “A prefeitura faz uma avaliação triunfalista e acaba minimizando um problema complexo, que precisa ser atacado em muitas frentes. Do jeito que foi concebido, com uma visão neoliberal, acaba trabalhando o que está mais aparente e não o que é arranjo político e social e que sustenta toda essa questão. Por causa disso, o programa, que é um modelo único, acabou ficando impositivo e segue uma lógica funcionalista, ou seja: damos emprego e moradia e está tudo resolvido. Só que não está”.

    Para Lancellotti, casos como o de Fernando Henrique acontecem justamente porque o Programa De Braços Abertos não cuida da causa, mas dos efeitos. “Eu tenho estado lá, atuando junto à missão Belém, e sei que tem matriculados no programa, que estão alocados nos hotéis e ficam vários dias na rua. A gente sabe que a questão do tráfico naquela região passa pelo crime organizado que tem participação de agentes do Estado. E de novo voltamos à questão da falta de combate à causa. Os hotéis usados para abrigar os participantes do programa, alguns em péssimas condições, faziam parte da lógica do tráfico da região”.

    Em dezembro, Fernando Henrique estava feliz porque estava entre os 16 contratados pela empresa de limpeza Guima e, desde então, conseguiu reduzir a menos da metade o uso de pedra. Segundo ele, o trabalho estava deixando-o cansado: “Não tá sobrando muito tempo pra ir lá (no fluxo) usar. Eu entro no trabalho às 8h, mas acordo mais cedo, porque tem o horário do café da manhã. Aí eu saio depois das 15h e quando eu chego quero dormir. No final das contas, sobra mesmo só à noite”, explica Fernando Henrique. Ele chegou a usar 30 pedras por dia. A média quando entrou no programa era 20. Agora usa entre 3 e 5: “Se eu beber, acabo fumando mais”.

    Cada um dos 16 participantes contratado pela Guima recebe R$ 820 por mês, divididos em parcelas pagas toda sexta-feira, além de vale refeição de R$ 9,10 por dia, cesta básica no valor de R$ 81,33 e Vale Transporte. Ainda assim, quase R$ 400 da renda de Fernando Henrique ainda são comprometidos com o uso de crack. Às sextas-feiras, que é o dia de pagamento, a pedra chega a custar R$ 15. Nos demais dias tem ficado em torno de R$ 10. “Quero diminuir cada vez mais para começar a conseguir juntar dinheiro. O único problema é que ainda não sei como vou fazer, porque aqui no quarto é difícil ter alguma coisa. O pessoal, quando está na fissura, rouba mesmo. Você viu os extintores? E o hotel que tá tudo escuro aqui no meu andar… vale tudo para trocar por umas pedrinhas”.

    Cabe a cada participante do programa administrar a relação entre a dependência e o dinheiro ganho com o trabalho. Era o que Fernando Henrique estava fazendo havia cinco meses. A última vez que conversamos, ele contou que tinha se apaixonado por uma moça que ainda estava no fluxo direto: “Estou tentando uma vaga pra ela no programa”. Mas há dez dias ele foi preso, acusado de tráfico de crack. Não deu tempo.

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