Delegado anula flagrante de tráfico de drogas após desconfiar de versões de PMs em SP

Desencontro em depoimentos fez delegado pedir alvará de soltura para presos e enviar ofício para Corregedoria. “Policiais cometeram crime de falso testemunho e de fraude processual”, sugere tenente-coronel da reserva da PM

Fachada do 101º DP, em São Paulo | Foto: Google Street View / Reprodução

O delegado Luciano Samara Tuma Giaretta, do 101º DP, no Jd. das Imbuias, na região sul da cidade de São Paulo, ordenou a soltura de cinco homens suspeitos de tráfico de drogas, após verificar a possibilidade de falso testemunho dos policiais em um processo viciado e repleto de contradições. Além disso, o delegado solicita a apuração de uma possível ocorrência de abuso de autoridade.

A operação policial levou ao menos três policiais a uma viela da Rua Álvares Correia, na zona sul de São Paulo, e terminou com o cancelamento dos indiciamentos dos investigados e com o encaminhamento de um ofício para Corregedoria da Polícia Militar investigar possíveis irregularidades cometidas por policiais militares.

A ação ocorreu no dia 12 de fevereiro, quando os policiais militares Ricardo Borges Fernandes, Ivan Cesar Sestari e Luan Rodrigues da Silva chegaram a uma viela da Rua Álvares Correia sob a suspeita de tráfico de drogas e chegaram à delegacia com ao menos três viaturas da Polícia Militar conduzindo diversas pessoas supostamente todas envolvidas na prática do tráfico de entorpecentes.

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Segundo o boletim de ocorrência registrado na delegacia, o delegado questionou o número excessivo de pessoas e foi informado que alguns deles estavam ali apenas para averiguação. As contradições nos depoimentos começaram então a surgir, quando o delegado fez as oitivas com os policiais.

O primeiro, Fernandes, afirmou que, ao realizar uma operação policial, por volta das 8h da manhã, ele e seu parceiro Luan entraram na viela da Rua Álvares Correia, onde encontraram quatro pessoas que tentaram fugir. Com isso, um deles conseguiu fugir, indo em direção da equipe, os outros três, fugiram em direção contrária à equipe.

Durante a fuga, ainda segundo Fernandes, o policial e Luan presenciaram os suspeitos S. e E. arremessando drogas para os telhados das casas. Ao chegar no final da viela, os três fugitivos viram a equipe do PM Luan, que conseguiu deter imediatamente Rogério. Após a detenção do terceiro suspeito R., S. foi detido por outro policial, o PM Sestari, enquanto Fernandes deteve outra pessoa, E.

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Em seu depoimento, Fernandes afirmou que havia encontrado as drogas que teriam sido arremessadas por E. e S. em uma residência, e confirmou que houve pessoas conduzidas e não apresentadas ao delegado por ordem do seu superior hierárquico, o Subtenente PM Oliveira.

A segunda versão é do policial militar Sestari, contradizendo o primeiro soldado, que afirmou que sua função era ser motorista de viatura e que foi o PM Fernandes quem avistou apenas duas pessoas em “atitude suspeita” ao final de uma escadaria.

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Ele ainda apontou que não presenciou o que ocorreu no interior da viela, pois estava estacionando a viatura. Não presenciou S. arremessando entorpecentes, bem como não soube da localização das drogas, que foram colocadas em sua viatura posteriormente.

Na terceira versão, o PM Luan contou que ao chegar no local visualizou S. e E. parados próximos a um ponto de drogas, que na presença da viatura correram para o interior da viela, em fuga. Ele diz que não presenciou S. ou E. arremessando nada sobre os telhados e ao contrário de Fernandes, alegou que não houveram pessoas conduzidas que não foram apresentadas ao delegado, ou liberadas no local.

Segundo o boletim de ocorrência, um dos homens afirmou “categoricamente que no momento de sua detenção foi espancado” e que o policial que o deteve e os policiais que o agrediram não se apresentaram naquele DP.

Além disso, o carcereiro de plantão avisou ao delegado que o homem agredido sequer conseguiria assinar os documentos, dizendo que não conseguia movimentar o braço direito por estar machucado. Apesar disso, os policiais omitiram o estado do homem lesionado no momento do registro da ocorrência.

Testemunhas também confirmaram a agressão. Porém o delegado diz que ouviu o depoimento delas de “maneira descompromissada”, alegando que teriam “relacionamento afetivo com pessoas consideradas suspeitas pelos PMs”.

Detido ‘esquecido’ pelos policiais

Após o depoimento de Luan, o delegado narra uma absoluta incoerência encontrada nas narrativas. Os policiais esqueceram de citar a participação de um outro homem, chamado M., conduzido à delegacia, sob a acusação de envolvimento no mesmo flagrante de tráfico.

Surpreendido, M. alegou em seu depoimento que ele seria conduzido ao distrito para averiguação, pois seu documento não estaria constando no sistema da polícia. Além disso, M. informou que os policiais que realizaram sua detenção não eram os mesmos que apresentaram a ocorrência.

Diante disso, o delegado afirmou no boletim de ocorrência que “a divergência de número de pessoas suspeitas em fuga, a ausência de pessoas, com exceção do policial condutor [Fernandes] que presenciaram o arremesso dos entorpecentes, a divergência de quantas pessoas correram e onde foram detidas, acabam por gerar tremenda insegurança em avalizar a operação realizada pela Polícia Militar”.

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Para o delegado, “não há segurança em deixar detido quaisquer deles sem incorrer em uma bem provável prática de injustiça”. Por fim, pede no boletim de ocorrência o cancelamento dos indiciamentos das pessoas apresentadas pelos PMs, assim como a expedição do alvará de soltura para todos, além de solicitar o encaminhamento do caso para a Corregedoria da PM paulista.

Na visão de Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM paulista, mestre em direitos humanos e doutor em psicologia pela Universidade de São Paulo, o delegado Luciano Samara Tuma Giaretta, do 101º DP, está certo. “O delegado agiu da maneira mais correta possível. Ele acertou ao não confirmar a prisão em flagrante delito porque ficou evidente que algo estava errado e que a versão dos policiais não se sustentava, não era verdadeira”.

Adilson complementa apontando que, na sua perspectiva, os policiais poderiam até ser presos. “Em relação aos policiais eu entendo que eles cometeram crime de falso testemunho e de fraude processual. Óbvio que essa ocorrência foi montada para tentar incriminar as pessoas que foram apresentadas na delegacia. E a versão contraditória dos policiais demonstra isso. Eu entendo que os policiais militares poderiam ter sido presos em flagrante delito e até mesmo por abuso de autoridade. Há denúncias de lesões corporais graves em relação a uma das pessoas detidas”.

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Para a advogada criminalista Fernanda Peron, integrante da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, “a presunção de veracidade da palavra dos policiais é relativa, e cabe ao delegado realizar essa avaliação, e não apenas chancelar a versão dos policiais, ignorando o que dizem os suspeitos e seus advogados”.

Para ela, a versão inicialmente apresentada pelo advogado de defesa, trazida por familiares, acabou se mostrando verdadeira e o caso ressalta como procedimentos irregulares são uma comuns. “Embora a postura do delegado nesse caso seja incomum, e por isso ainda mais louvável, quem convive com o cotidiano da violência policial sabe que prisões forjadas não são raridade. Injustiças como essa são convalidadas todos os dias em delegacias e fóruns, podendo levar a condenações criminais injustas e a vidas inocentes destruídas”.

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Fernanda ainda aponta como a situação relatada evidencia “a necessidade de que todas as autoridades policiais e judiciais exerçam com rigor suas funções de controle externo da legalidade das ações das polícias”.

A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública, atendida pela terceirizada Inpress, e a assessoria da Polícia Militar para questionar o caso e aguarda retorno.

ATUALIZAÇÃO: esta reportagem foi modificada às 17h26 do dia 22/2/2021 para esclarecer pontos e expressões usadas no texto.

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