Depoimento | PM me insultou por eu defender moradores de rua

    Advogada, que atua na defesa voluntária da população de rua, conta que foi ‘desqualificada como mulher e profissional’ por policial após questionar abordagem ilegal

    Juliana Hashimoto foi obrigada a encostar na parede e ficar com as mãos para trás revista a moradores de rua em São Paulo I Foto: Arquivo Ponte

    Sou Juliana Costa Hashimoto Bertin e há três anos atuo voluntariamente como advogada para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo ao lado de seu vigário episcopal, padre Julio Lancellotti, em defesa dos grupos urbanos vulnerados, em especial dos que estão em situação de rua.

    Na manhã de hoje, 24 de março, padre Julio, dois colaboradores e eu saímos da Paróquia São Miguel Arcanjo [na Mooca, zona leste de São Paulo] para levarmos doações de materiais de limpeza e de mantimentos ao Arsenal da Esperança.

    Ao chegarmos, por volta das 10h10, presenciamos uma abordagem da Polícia Militar a cinco ou seis rapazes em situação de rua. Chamou-nos a atenção que o segundo sargento Ferreira Silva determinava aos rapazes que fornecessem as senhas dos aparelhos de celular, prática que, sem mandado judicial, é vedada pelo inciso X do art. 5o. da Constituição Federal.

    Questionados pelos policiais sobre o que observávamos, respondi que considerava abusiva a violação da privacidade dos rapazes, o que irritou o segundo sargento Ferreira Silva, que passou a me insultar, além de determinar que eu me enfileirasse junto dos rapazes abordados, pois a abordagem passaria a se estender a mim. Não opus resistência e acatei a todas as ordens, apesar de abusivas.

    Sargento Ferreira, que segura um fuzil, posou para foto após abusos: “Pode fotografar todo mundo, não temos medo de você” I Foto: Arquivo Ponte

    O segundo sargento passou a fazer insinuações de cunho sexual, de que eu teria envolvimento com os rapazes, além de dizer que estávamos ali apenas para atrapalhar e, em suas palavras, estávamos “com muito mimimi”.

    O tempo todo com o dedo em riste em minha direção e se aproximando fisicamente para me intimidar com a metralhadora, dizia que eu não sabia de nada e que eu não era melhor do que nenhum dos rapazes que estavam sendo abordados.

    O segundo sargento pediu meu documento e entreguei minha carteira da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]. Visivelmente irritado por descobrir que eu era advogada, perguntou se eu só tinha OAB para apresentar, questionando sobre o porquê de eu apresentar a OAB e não a CNH [Carteira Nacional de Habilitação]. Respondi que não carrego CNH quando não estou dirigindo e ele retrucou: “Nem para ter CNH serve.”

    Após saber que eu era advogada, o segundo sargento passou a me desqualificar como profissional repetindo incontáveis vezes: “Você é muito fraquinha, você é muito fraca, ó”, gesticulando com a mão em sinal de diminuição; “Você não sabe de nada, eu tenho que te ensinar umas coisas, você tem que aprender muita coisa ainda”.

    Padre Julio pedia que o sargento não se excedesse, mas ele repetia “Ela não é melhor do que ninguém aqui”.

    O sargento Ferreira Silva falou sem parar durante toda a abordagem, dirigindo-se a mim por todo o tempo com comentários que visavam desqualificar-me como mulher e como profissional. Foram muitas as ofensas proferidas, não sendo possível listar todas.

    Durante a abordagem, os quatro policiais presentes reviraram os pertences na barraca dos rapazes, violaram seus aparelhos de celular, suas carteiras, questionaram um a um sobre condenações criminais e tempo de cumprimento das penas. Todos os rapazes forneceram as senhas de seus celulares, seus documentos, colaboraram, ainda que indevidamente, com a apresentação de pertences e todos tivemos os nomes e antecedentes consultados pelo sistema da Prodesp [Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo].

    Terminada a abordagem e verificado que nenhum dos celulares consultados era fruto de roubo ou de furto e que não havia conteúdo que vinculasse os rapazes a qualquer atividade criminosa, fomos liberados, mas o segundo sargento ainda se virou para mim para repetir: “E, olha, você é muito fraquinha, viu?”.

    Autores da abordagem estavam na viatura E-07117, pertencente ao 7º Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia) I Foto: Arquivo Ponte

    Conforme fotografias, o prefixo da viatura do 7º Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia) é E-07117.

    Ao perceberem que eu fotografava a viatura para anotar seu prefixo, eles se perfilaram e o segundo sargento Ferreira Silva ainda falou: “Pode fotografar todo mundo, não temos medo de você”.

    Procurada, a Secretaria da Segurança Pública da gestão João Doria (PSDB) afirmou que “a Polícia Militar não localizou denúncias com as características mencionadas pela reportagem”. A pasta ainda disse que “as vítimas podem comparecer à Corregedoria da instituição para formalizar o registro para devida apuração de eventuais desvios na atuação dos PMs”. Procurado por meio da assessoria de imprensa da SSP, o sargento Ferreira não aceitou dar entrevista.

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