“Vocês vão conhecer a Polícia Militar”, disse PM que agrediu estudante

    Em depoimento à Ponte, estudantes de jornalismo contam como PMs invadiram sua casa e espancaram seus colegas em 15/5, em Bauru (SP), e refletem sobre consequências de uma agressão policial sobre jovens brancos de classe média: “Não foi necessário morrer para provocar mobilização”

    Agredito pela PM, Adauto precisou de cirurgia para reconstrução do supercílio direito

    Adriana Kimura e Michael Barbosa, especial para a Ponte Jornalismo

    No domingo de 15 de maio, os moradores da república Risca Faca, moradia coletiva de 12 estudantes de jornalismo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), na cidade de Bauru, interior de São Paulo, resolveram reinaugurar a churrasqueira da casa, fora de uso há pelo menos três anos. O boca-a-boca entre os amigos se espalhou até o churrasco reunir 29 pessoas. Com os celulares conectados à caixa de som, tocaram uma trilha sonora que, ao longo da tarde e da noite, foi do novo álbum do Red Hot Chilli Peppers ao último hit da dupla Fernando & Sorocaba.

    Por volta das 22h30, o vizinho tocou a campainha pedindo educadamente para que os estudantes abaixassem o volume do som, o que foi feito com prontidão. Antes que se pudesse avaliar o efeito da visita, cerca de 20 minutos mais tarde, a Polícia Militar chegou à casa, sendo recebida por Adauto Nogueira, 22, morador da república há pouco mais de um ano. “Os policiais não me pediram meu RG […] Perguntei qual era a denúncia: perturbação do sossego”.

    A notícia da chegada da polícia, que se espalhou rapidamente pela casa, levou ao desligamento total e imediato da música, enquanto, conforme relata Adauto, um dos oficiais colocou os pés dentro da residência, ao que o estudante respondeu argumentando: “Eu desligo o som, mas vocês não podem entrar na minha casa sem mandado!”.

    Uma das estudantes espancadas pelos policiais

    Nesse ponto, iniciam-se as contradições entre o que contam os estudantes e a versão oficial da Polícia Militar. Adauto e mais dois rapazes contam que a afirmação do primeiro levou à revolta do oficial, que teria questionado o estudante e lhe dado voz de prisão, dizendo “Você, moleque, quer saber mais das leis do que eu?”. Adauto teria recuado dizendo que ia procurar seus documentos. Um estudante que acompanhava o diálogo relata que segurava um copo de cerveja e que Adauto teria esbarrado nele quando o policial o atingiu com um pontapé.

    Já na versão policial foi Adauto que, deliberadamente, arremessou um copo de cerveja contra o PM. Mais participantes do churrasco chegaram à frente da casa e vários deles afirmam ter ouvido o policial gritar “Eu quero aquele moleque!, vocês vão conhecer a Polícia Militar do Estado de São Paulo”.

    Alguns dos policiais entraram na casa e desferiram golpes a cassetetes, balas de borracha, socos e pontapés. Tauã Miranda, 23, um dos moradores da Risca Faca que acabou detido naquela noite, conta que, após ser advertido por chamar um dos policiais de “cara”, respondeu chamando-o pela patente de cabo e pelo nome que constava da tarjeta de identificação: “Me desculpe, mas você entendeu que não pode entrar na nossa casa?”. Daí resultou sua voz de prisão, seguida de uma mata-leão com o cassetete e uma sessão de espancamento do outro lado da rua, atrás de um automóvel.

    Conforme se observa no vídeo gravado durante a ocorrência, já no interior da residência, invadida por quatro policias, ao menos três disparos de bala de borracha foram efetuados, acertando a canela de Daniel Linhares, 22, também morador da casa, e dois pontos diferentes da perna de Flávia Simão, 21, amiga dos moradores — ela também recebeu golpes de cassetete pelo corpo. Ainda foram feridos Ana Bettarello, 21, por golpe na cabeça, e Michael Barbosa, 22, morador da casa, com múltiplas escoriações pelo corpo e na cabeça, além de ferimento no nariz. Adauto, que recebeu diversos golpes por parte dos policiais, passou por uma cirurgia para a reconstrução do supercílio direito.

    A Polícia agride, a mídia corrobora

    Antes mesmo que os estudantes envolvidos no referido episódio fossem liberados pelo delegado da Polícia Civil, na madrugada de domingo para segunda, já circulava a notícia veiculada pelo Jornal da Cidade, que pautaria a linha de frente de toda a cobertura feita sobre o caso, bem como a opinião pública, que teria acesso a outra forma de abordagem somente na tarde de segunda-feira.

    Além de ter sido veiculada sem que se fizesse contato com os estudantes agredidos pela Polícia Militar, a notícia decorre de uma estratégia antiga do jornalismo de cidades: a da apuração norteada pelo Boletim de Ocorrência, pela versão do delegado, pelo oficialismo da fonte. Nesse âmbito, a imprensa local atuou no sentido de legitimar as instâncias públicas em suas funções: a notícia pioneira na cobertura do fato informa que a situação foi controlada pela Polícia, em favor do estabelecimento da ordem e da segurança dos cidadãos.

    O trabalho efetuado pelo Jornal da Cidade faz parte de uma rotina de trabalho que classifica os atores sociais envolvidos nos fatos noticiados, de maneira a compactuar com a criminalização e a exclusão de determinadas parcelas da sociedade; antes os cidadãos das periferias, negros, baderneiros, drogados… e, desta vez, os jovens que “perturbam a vizinhança, desacatam a PM e são detidos em Bauru” — conforme título da primeira versão da notícia.

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    À parte os deslizes da imprensa local, os acontecimentos de domingo retrasado repercutiram o país inteiro. Passadas algumas horas, jornalistas de múltiplas emissoras, veículos impressos e até radialistas entraram em contato com os envolvidos. Depoimentos via redes sociais, dados os relacionamentos dos estudantes, viralizaram rapidamente até chegar aos ouvidos de gente importante, gente com voz. Menos de 48 horas após a ocorrência, membros da Força Tática, da própria Polícia Militar, já haviam se prontificado a ouvir a república Risca Faca. Não foi necessário morrer — como provavelmente o seria em se tratando de sujeitos periféricos — para provocar mobilização de deputados, representantes de órgãos públicos ligados aos Direitos Humanos, além da (branda) nota oficial divulgada pela Universidade Estadual Paulista em defesa dos direitos dos estudantes.

    A problematização que se segue é a do alarde diante do que aconteceu, não como fato isolado, mas em detrimento de inúmeros outros casos em que a invisibilidade dos envolvidos rapidamente apaga as notícias de assassinatos e torturas a que o povo negro, periférico, criminalizado é submetido diariamente.

    Em 2015, 1591 pessoas foram assassinadas na cidade de São Paulo, sendo que 412 dessas mortes foram realizadas pela polícia, ou 26%, e registradas nos boletins de ocorrência como mortes decorrentes de “confrontos”. Em 2005, as mortes executadas pela polícia respondiam por 5% dos homicídios. Do total de homicídios cometidos pela polícia em 2015, 72% das vítimas eram pardas ou negras, conforme levantamento feito pelo SPTV, da Rede Globo.

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    O caso da Risca Faca é, ao mesmo tempo, com o devido paradoxo, a regra e a exceção. Por um lado, a violência, o desrespeito à inviolabilidade do domicílio e o abuso de autoridade não são nada mais que o modus operandi comum à Polícia Militar do Estado de São Paulo. Por outro, existe, claro, a consciência de que a violência policial não faz parte do cotidiano do típico universitário das instituições públicas de ensino — um sujeito tipicamente branco e de classe média. Igualmente, a consciência de que, muitas vezes, na periferia, as balas não são de borracha e o caminho da viatura não é para o hospital ou para a delegacia, mas para uma vala clandestina.

    Em outro sentido, o caso bauruense — do descontrole policial à cobertura midiática — não constitui, de forma geral, grande novidade, mas leva a um questionamento sobre a própria repressão à classe estudantil. Secundaristas e universitários vivem uma escalada repressiva, principalmente em protestos, manifestações e ocupações de toda a sorte.

    Já no âmbito da sociedade civil, especialmente em cidades interioranas, com todo o seu provincianismo, a estigmatização dos estudantes, no modo de viver e nas convicções, que frequentemente se chocam com os valores mais conservadores, tão enraizados no interior paulista, é cada vez mais agressiva. Tudo isso se converte em uma repressão que tem como garantia catalizadora as forças da Polícia Militar. Muito mais lá do que cá, a Polícia Militar do Estado de São Paulo se configura e se consolida como a primeira instância do Estado — amparada pelo Governo Estadual e pela Secretaria de Segurança Pública — a perseguir, mentir, reprimir e, enfim, julgar, condenar e executar a pena.

    Outro lado

    Em 17/5, a assessoria de imprensa da Polícia Militar emitiu a seguinte nota sobre a agressão aos estudantes.

    A PM esclarece que foi chamada para atender um chamado de perturbação de sossego público. No local, os policiais solicitaram aos estudantes, que realizavam uma festa no local, que baixassem o volume do som. Contudo, algumas pessoas passaram a ofender e agredir os policiais. Por isso, foi necessária a intervenção policial, com reforço de viaturas. Durante a ação, um homem tentou retirar de um PM uma arma carregada elastômero, que realizou o disparo para evitar a ação. Os policiais encaminharam quatro pessoas para a Central de Polícia Judiciária. Cabe salientar que a PM instaurou Inquérito Policial Militar para apurar o caso. Qualquer irregularidade na conduta dos policiais será devidamente punida. A Polícia Civil informa que foi registrado um Termo Circunstanciado que apura abuso de autoridade, lesão corporal, perturbação de sossego e desacato. A investigação está em andamento e foi requisitado exame de corpo de delito de todos os envolvidos.

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