Depois de 4 anos, cinco acusados de assassinar travesti vão a júri popular

    Laura Vermont foi agredida e morta em junho de 2015, na zona leste de São Paulo; Zilda, mãe da vítima, recebe a Ponte em sua casa e fala sobre a ansiedade pelo julgamento marcado para esta terça-feira (7/5): ‘Eu espero em Deus que os assassinos paguem’

    Zilda Laurentino, mãe de Laura Vermont, ao lado das fotografias da filha | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    No domingo de Páscoa (21/4), em que Corinthians e São Paulo disputavam a taça do campeonato paulista de 2019, depois de muitos anos, uma família corintiana se reunia como fazia antes de uma tragédia marcar a vida de todos para sempre. Todos os filhos e netos estavam reunidos com Zilda Laurentino e Jackson de Araújo. Menos a filha caçula, Laura Vermont.

    Há quase quatro anos, a filha mais nova do casal saiu para uma festa com amigos e nunca mais voltou – ela foi brutalmente assassinada na avenida Nordestina, Vila Nova Curuçá, extremo leste de São Paulo, há poucos metros da casa onde a família vivia. Laura Vermont tinha 18 anos quando foi espancada e baleada. Naquele 20 de junho de 2015, foram seus pais, Zilda e Jackson, que tiveram que socorrê-la às pressas, mas a jovem já chegou ao hospital sem vida.

    “Esse dia… é como se eu vivesse ele agora. Estávamos em casa e a Laura disse que ia sair, que iria para uma festa, mas que depois iria dar um descanso, não sairia mais para festas. Quando foi 2 ou 3 da manhã, nosso vizinho, que trabalha no posto de gasolina, ligou em casa, porque todo mundo conhecia ela no bairro. O vizinho perguntou se ela estava em casa e falamos que não, nisso fomos para lá”, conta a mãe.

    A Ponte obteve com exclusividade, na época, imagens de câmeras de segurança que mostravam a sequência de agressões contra Laura e, em seguida, um vídeo curto que mostra a vítima já ensanguentada pedindo socorro.

    Na próxima terça-feira (7/5), os civis acusados de espancar e assassinar Laura serão julgados por um júri popular composto por 7 pessoas. Van Basten Bizarrias de Deus, Jefferson Rodrigues Paulo, Iago Bizarrias de Deus, Wilson de Jesus Marcolino e Bruno Rodrigues de Oliveira são os acusados de espancar e matar a jovem.

    Em 2015, dois policiais militares que chegaram a ser presos por atirar e mentir sobre a morte de Laura, mas foram liberados 4 dias depois. A última audiência sobre o caso foi em 27 de março de 2017.

    “Eu tinha medo da Laura no centro da cidade, nunca perto de casa. Nós pegamos a Laura com vida, nós pegamos. Mas no meio disso aí, ninguém quis socorrer. Os policiais não quiseram socorrer, falando que tinham chamado a ambulância, mas fomos nós que a socorremos. Colocamos ela no meu carro e fomos pro hospital. Só que uma hora dessas você fica tão atordoado que não sabe o que fazer”, conta dona Zilda.

    Segundo ela, os policiais pediram que ela seguisse o carro deles até um hospital em Itaquera, outro bairro da zona leste, mas não era o hospital mais próximo. “Quando chegamos no hospital, o médico estava dormindo. Veio com muita má vontade atender minha filha. Foi quando o médico pediu pra gente sair da sala e ir abrir a ficha, ficando dois policiais com ele. Nem deu tempo de abrir a ficha que os policiais chegaram avisando que ela havia morrido. Eles não fizeram nada com ela. Negaram socorro pra minha filha também. Eu não esperava um descaso desse. E veio porque minha filha era travesti. O preconceito é demais”, critica.

    Família de Laura reunida no domingo de páscoa | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    “A casa está cheia hoje por um acaso, mas nem sempre é assim. Quando a Laura tava aqui, era festas e mais festas. Depois que ela foi, os amigos do bairro foram embora para longe. O bairro perdeu o sentido. A minha vida não é mais a mesma, de jeito nenhum”, confessa dona Zilda, com a voz cheia de emoção ao lado das duas filhas, seis netos e outros familiares.

    O que um dia foi alegria, hoje é saudade e um vazio impreenchível. “Você não tem ideia de como que era, era só alegria, não tinha momento ruim pra ela não. Como que se diz… era tudo por um flash. Festas e mais festas. Nos finais de semana, minha casa vivia lotada. Vinha todos os amigos pra cá e se enfiavam lá no quarto dela. Bebiam, comiam, fumavam. Muita alegria. Se a gente fosse pra praia, ia a renca toda. A Laura era muito família, muito família mesmo”, relembra a mãe de Laura.

    Carolina Gerassi, advogada de acusação, em entrevista à Ponte, fala sobre a expectativa para o júri depois de tanto tempo. “São 5 corréus que estão sendo acusados de provocar a morte da Laura por espancamento, um deles inclusive usou um pedaço de madeira. Depois de 4 anos de investigação e processo, finalmente chegou o dia da sessão de julgamento em que as provas são ser analisadas e os debates entre defesa e acusação vão ser apreciados por jurados, que darão o veredito. E aí, a depender do veredito, se for a condenação por homicídio doloso qualificado, o juiz vai fixar as penas, mas com base na decisão dos jurados”, explica Gerassi.

    Para a família de Laura, a ansiedade por um desfecho é grande. “Eu não tô nem conseguindo dormir direito. Esse júri está sendo muito esperado. Eu espero em Deus que os assassinos paguem, porque estão todos na rua. Todos na rua. Eu tô vivendo a base de remédio. A minha sorte é o serviço que eu trabalho, se eu não trabalhasse eu não sei o que seria de mim não. Teria que solicitar que algum médico viesse aqui me socorrer. Fico até tremendo”, desabafou Zilda.

    Jackson, pai de Laura, ao lado de sua esposa Zilda e a neta mais nova do casal, Juju | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    A irmã mais velha de Laura, Rejane Laurentino de Araújo, 37 anos, relembra com saudade da caçula para quem “passava muitos panos”, já que era 14 anos mais velha do que Vermont. “Ela era terrível. A infância dela era comigo em casa. A gente era muito grudada, mas ela era terrível, aprontava muito. Quando eu arrumava um namorado e ficava no portão, ela jogava água nele. Eu tinha que levar ela nos lugares, se não levava ela ficava chorando. Então eu sempre tinha que levar junto comigo. A gente sempre estava juntas, brigávamos, mas nessas brincadeirinhas. Eu sempre tava junto pra levar pra escola, éramos muito unidas. Foi passando o tempo, eu casei e ela ficava pra cá e pra lá, queria me contar as coisas, sair escondida e eu passava um pano. Mas era muito gostoso”, conta Rejane.

    Laura morreu 20 dias depois do nascimento da sua sobrinha mais nova, que hoje está prestes a completar 4 anos da idade. Mesmo sem conviver com a tia, Juju fica repetindo que tem saudades. “Ela fica falando que sente saudade da tia Laura, fica brigando falando que a tia é só dela. Ela fala ‘minha tia tá lá no céu, posso ir lá falar com ela um pouco?’. Meus pais compram as coisas pra ela e ela fala que foi a tia Laura que deu. Parece que eu que tô mandando ela falar isso, mas é dela. Ela faz caras e bocas, até na pirraça ela é igual a Laura. Acho que na gravidez fiquei muito perto e ela puxou todinha a minha irmã. Geniosa igual a Laura”.

    A transição de Laura

    “Foi um negócio tão rápido”. É assim que Zilda define a transição da filha mais nova. Aos 16 anos, a jovem decidiu que, a partir daquele momento, gostaria de ser chamada como Laura Vermont, com ênfase na fonética da letra T. A mãe, de início, não gostou do nome e brincou com a filha, “Laura é nome de velho”, que prontamente defendeu a escolha: era outra forma de falar o Laurentino, sobrenome da família.

    Desde pequena, conta Rejane, a irmã já mostrava indícios da sua identidade de gênero. “Era algo muito espontâneo, o jeito de falar. Desde quando nasceu, a gente saia pra comprar as coisas, minha mãe comprava um sapato masculino e ela chorava, falando que queria o de florzinha. Sempre preferiu boneca, nunca gostou de carrinho. Ela sempre teve mais amigas meninas. Então não tem como falar que foi embalo, era algo dela mesmo. Laura sempre gostou muito de mexer em cabelo, de maquiar as primas. Ela só ficava na rodinha com as meninas”.

    Zilda relembra com emoção quando Laura contou que era uma travesti ao pai. “Uma época ela cortou o cabelo, metade tinha cabelo, metade não. Um dia o cabelo era de uma cor e no outro dia era de outra cor. Ela foi mudando tão rápido, tão rápido, que ela chegou pra mim, já se trajava normal, mas não na frente do pai, ai ela não usava vestido, mas a mesma roupa que eu usava ela usava também. Foi quando ela pegou e falou: ‘Mãe, hoje eu vou falar pro meu pai que eu quero me vestir diferente, porque a senhora tá em todas comigo, agora quero ver meu pai’. Aí, ela chamou pai e falou: ‘ô pai, tenho um negócio pra te falar. Não tô gostando desse meu traje não’. Em seguida o pai falou que gostava do traje dele e perguntou como ela gostava do dela. Nisso ela entrou pro quarto, se arrumou toda, colocou um batom vermelho, chegou na sala e perguntou o que o pai achou. Meu marido perguntou se ela se sentia bem daquela forma, ela respondeu que sim e ele apenas pediu que ela tomasse cuidado na rua”, conta a mãe.

    Laura era a única filha biológica de Jackson.  A morte dela, mexeu com ele de uma maneira que, ainda hoje, quatro anos depois, o pai não consegue falar da falta que a filha faz em sua vida. “Eu vou te falar uma coisa, o que me conforta é os vídeos dela que eu olho. Mas o pai não consegue ver vídeo nenhum. Ele não consegue falar com ninguém. Parece aqueles bichos intocáveis. Pode ver, estamos aqui e ele está lá pra fora. Se ele sentar aqui, não vai conseguir abrir a boca pra falar nada. Até hoje ele é assim”, explica Zilda.

    Homenagens e apoios depois do crime

    O assassinato de Laura Vermont marcou a zona leste. Meses depois do crime, um espaço que cuida da demanda da população LGBT+ foi criado na mesma avenida em que a jovem travesti foi espancada e morta. A mãe de Laura conta como foi receber a notícia da abertura do espaço.

    “Foi muito bom, muito bom mesmo. Lá eu sinto a presença da Laura, em cada cantinho que eu entro lá. Tem meninas que eu vejo a Laura nelas”, se emociona ao lembrar da homenagem. “Pouco depois, fui na Parada LGBT da Paulista e encontrei uma trans chamada Natasha e ela parecia muito a Laura, alta, loira e fiquei sem acreditar. Na hora do tumulto, não peguei o telefone, não peguei nada. Ai coloquei no Facebook, fiquei perguntando quem conhecia e mandei as fotos. Foi quando ela entrou em contato comigo. E hoje a gente sempre conversa. Ela é outra Laura sofredora”, continua Zilda.

    Os apoios e demonstrações de afeto, relata Zilda, que agora também usa o nome Vermont, é o que a tem mantido de pé depois de perder a filha. “Sabe que isso é o que me dá fortaleza? É o que me fortalece. Por que você vai, as pessoas te abraçam e falam ‘graças a sua filha eu estou aqui’. É muito emocionante, é o que está me mantendo. Eu não sei, se não fosse esses apoios, essas pessoas que me procuram e dizem que graças a Laura estão aqui, estão bem. Se não fosse isso eu não sei o que seria de mim não, é o que me mantem em pé. Uma coisa eu tenho certeza, a minha filha não está aqui, mas o espírito dela está aqui comigo e as cartas que ela me manda é pra mim lutar, não por ela, mas pelas outras que estão aqui, porque ela tá bem. Então esse tem sido o objetivo, procurar ser forte. Não é fácil, não tá sendo fácil, cada dia é mais um dia”, conta com emoção.

    Dias depois da morte da filha, Zilda foi procurar uma maneira de seguir de pé. “Menos de um mês depois que a Laura partiu, eu fui pra Lorena (SP). Eu não sabia dessas coisas, um dia vi na televisão passando, peguei o endereço e o telefone, e fomos pra Lorena as 3 da manhã”, conta.

    O motivo da viagem era um local que prometida entregar cartas psicografadas de entes queridos depois da morte. Sem pensar duas vezes, Zilda foi ao encontro dessa esperada carta. “Recebi a primeira carta com 15 dias. Todo mundo me deu os parabéns, porque tinha gente que já frequentava lá há 8 anos e nunca tinha recebido uma carta, falaram que eu fui abençoada. De lá pra cá, onde eu sei que tem eu vou atrás. Já fui até pra Indaiatuba (SP) de excursão. Nessas excursões eu fiz amigas, todas perderam os filhos”.

    De lá para cá, não importa onde, mas mãe de Laura sempre vai ao encontro de outra palavra de conforto. Em suas cartas, a jovem costuma pedir que a mãe continue se arrumando como sempre fez e que não sinta raiva de quem tirou a sua vida, pois ela está melhor onde está agora. “O amor que importa. Eu fui amada, eu fui aceita. Infelizmente marginais movidos pelo ódio tiraram a minha vida, mas não podem calar a voz de quem ama, pois continuarei existindo. Sua filha, Laura Vermont”, dizia uma das cartas.

    Para Rejane, Laura virou uma semente que deu frutos. “Ela vivia a vida dela intensamente, soube aproveitar cada segundo. Falava que quando fizesse 18 anos seria famosa, aparecia em todos os lugares. De uma forma trágica, foi o que aconteceu. Ela mudou a realidade da zona leste, as pessoas começaram a se assumir, andam de mãos dadas, se beijam na rua. Vizinhos se revelarem depois dela”, relembra a irmã.

    Outro lado

    A reportagem entrou em contato com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, responsável pela defesa dos réus, que informou, em nota, que “está fazendo a defesa técnica dos réus e se pronunciará apenas nos autos”.

    ERRATA (26/09/2019 às 11h) – A reportagem foi modificada para corrigir informações incorretas sobre os suspeitos do crime.

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