Depois de um ano em coma após abordagem policial, morre filho de rapper em SP

    Eric Augusto Corbacho de Lima, filho de Eazy Jay, estava em coma desde agosto de 2016, quando foi detido por policiais civis. Apesar de marcas de tortura no corpo, Polícia Civil concluiu que não houve irregularidade dos agentes

    Eric Augusto, filho do rapper Eazy Jay. | Foto: Arquivo pessoal

    “Primeiro veio o atestado de óbito, depois o exame corpo de delito. Lá no início eu já pedia: ‘se fizerem o corpo de delito vão comprovar, com base nessas provas evidentes, o espancamento’. Aí já poderia estar fazendo algo, né? Mas primeiro veio o óbito, um ano depois. Meu filho lá, um ano vegetando, morrendo aos poucos”, desabafa, num misto de dor e revolta, o rapper paulista José Augusto de Lima Filho, conhecido como Eazy Jay, integrante do grupo Comando DMC.

    Seu filho, Eric Augusto Corbacho de Lima, de 26 anos, encontrava-se em coma desde 12 de agosto de 2016, um dia depois de ser detido por policiais civis na região central da cidade de São Paulo e levado para a carceragem provisória do 78º DP (Distrito Policial), no bairro Jardins. Sua luta pela vida, que durou 12 meses e sete dias, terminou no dia 17 de agosto último, uma quinta-feira.

    No atestado de óbito, “choque séptico, broncopneumonia e escaras profundas” são apontadas como a causa da morte, que se deu em um leito do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, no Carandiru, bairro da zona norte paulistana. 

    A versão da polícia é de que Eric havia tentado se enforcar no 78º DP, mas o pai identificou que o corpo de Eric apresentava fortes indícios de agressões, o que o levou a questionar tal versão assim que viu o filho inconsciente em uma maca do Hospital das Clínicas, no dia 18 de agosto do ano passado. Durante todo o período em que permaneceu internado na unidade, o jovem foi escoltado por policiais militares.

    Rapper paulista afirma que filho pode ter sido vítima de violência policial
    Governo de SP não revela nomes de policiais que detiveram filho de rapper

    Atestado de óbito de Eric Augusto. | Foto: Arquivo pessoal

    O caso

    Eric Augusto cumpria pena por furto havia cerca de três anos na Penitenciária de Presidente Prudente e, como benefício do regime semiaberto, devido ao bom comportamento no sistema prisional, esteve na casa da família nos dias que precederam o Dia dos Pais do ano passado, comemorado em 14 de agosto. Por volta das 20h do dia 11, uma quinta-feira, o jovem foi abordado pelos policiais na esquina das rua Consolação e Dr. Cesário Mota Junior.

    A família teve notícias somente na sexta-feira seguinte, dia 19, uma semana depois de ele ter dado entrada no Hospital das Clínicas. No telefonema, um investigador do 78º DP afirmou que Eric estava internado em estado grave após ter tentado se enforcar, e que seria necessário que o pai ou a mãe fosse ao Hospital das Clínicas assinar, com urgência, um termo de responsabilidade para que o jovem passasse por uma traqueostomia intervenção cirúrgica para a abertura de um orifício na traqueia e introdução de uma cânula para a passagem de ar.

    Ao chegar ao hospital, Eazy Jay encontrou o filho inconsciente e com marcas de agressões que o levaram a questionar a versão da polícia, de acordo com seu depoimento à Ponte à época. “A marca no pescoço dele era muito fina, como um fiozinho, já estava até cortando [a pele]. Não dava para acreditar que ele tinha tentado se enforcar com uma coisa tão fina, não tem lógica”, disse. Havia ainda ferimentos nos lábios, “como se ele tivesse levado um soco”, e “um inchaço” no alto da cabeça, como se ele tivesse levado “uma pancada”, de acordo com o rapper, que também estranhou o fato de os dois pés do filho estarem enfaixados e perguntou ao médico o motivo. “Eles responderam que era para ele não se machucar, e eu perguntei: ‘mas como uma pessoa que está internada e inconsciente vai se machucar’?”, questionou.

    O rapper Eazy Jay faz oração diante do leito do filho, Eric Augusto, em agosto de 2016. Foto extraída de vídeo / Arquivo pessoal

    Certa vez, uma enfermeira retirou da cabeça de Eric uma faixa e Eazy Jay verificou que, onde antes havia o inchaço, havia duas marcas grandes que a enfermeira explicou que eram coágulos. “Ela tirou, virou a cabeça dele pra mim e apontou, sem olhar pra minha cara, alguma coisa na cabeça dele. Quando eu fui ver, eram dois coágulos enormes. Depois da pancada veio um calombo enorme e, depois, formaram-se coágulos”, conta. Ele perguntou se os coágulos decorriam de pancadas à enfermeira, que “saiu sem responder, talvez para não se comprometer”, segundo ele. “Mas eu senti que ela tirou aquela bandagem para eu ver, de alguma forma, foi o que me pareceu”, completa.

    Eazy Jay mostra marca na cabeça do filho, Eric Augusto. | Foto: Arquivo pessoal

    Eric foi escoltado por policiais militares fardados durante todo o tempo que passou hospitalizado. “Quando meu filho saiu da UTI do Hospital das Clínicas, indo pro leito comum, sempre tinha policiais rodeando-o. Um dia uma chefe de enfermagem do hospital falou pra mim: ‘eu vou tentar conseguir que você passe a noite com ele, porque sempre tem policiais aqui perto dele, então se você começar a ficar aqui a noite, eles vão começar a perceber isso e diminui a possibilidade de alguém vir terminar o trabalho’. Foram as palavras dela”, afirma Eazy Jay.

    Durante três noites, ele pôde dormir como acompanhante do filho. Saía para trabalhar de manhã, voltava na parte da tarde para ver como Eric estava e, depois do trabalho, à noite, retornava para passar a noite no hospital.

    Um inquérito foi aberto, naquele período, para apurar as circunstâncias em que Eric havia sido abordado pelos policiais civis e o que o havia levado ao coma. Questionada pela reportagem, em quatro e-mails, sobre o que as investigações concluíram e a violência que o levou ao coma e à morte, a SSP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) enviou, por meio de sua assessoria de imprensa terceirizada, a CDN Comunicações, a seguinte nota:

    “A Polícia Civil informa que o 78º DP (Jardins) instaurou inquérito para apurar as circunstâncias da tentativa de suicídio de Eric Augusto Corbacho de Lima, em 2016. Após a investigação do 78º DP e da Corregedoria, não foi constatada nenhuma irregularidade na conduta dos policiais que trabalhavam no plantão policial e na carceragem da delegacia. O exame necroscópico de Eric será anexado ao inquérito, que se encontra em análise na Vara do Júri”.

    Do Hospital das Clínicas ao hospital penitenciário

    Enquanto lidava com a dor de ver o filho em coma em decorrência de violência policial, o pai de Eric deparou-se com outro tipo de violência no próprio hospital. Ele relata que sentiu diferença na forma como seu filho foi tratado em alguns momentos pelo fato de ser detento. “Teve uma enfermeira que foi dar os medicamentos dele e conversava comigo em um tom muito irônico, dizendo ‘tão novo, né? Podia estar na escola, podia estar trabalhando, mas, não, preferiu isso’. Desse jeito”, conta Eazy Jay, que lembra ainda que ela chegou a fazer um comentário no sentido de legitimar o fato de o quadro de Eric ter decorrido de violência policial. “Ela dizia ‘meu irmão é policial, uma vez numa festa um amigo dele foi agredido e ele chamou os amigos dele, pegaram o cara que agrediu o amigo dele na festa e nunca mais ouviram falar do cara’. E ela me falou isso num tom de intimidação, muito irônico”.

    A mesma enfermeira, segundo ele, deixou de medicar seu filho no período em que ele começou a deixar de ter febre e demonstrava reagir aos estímulos de maneira mais marcante, encolhendo as pernas e contraindo os dedos das mãos.  “Ela não aplicou a medicação no acesso [venoso] do meu filho. Aplicou fora. Quando eu percebi que o braço dele estava todo molhado, comecei a prestar atenção nela. Disfarçadamente, ela foi até a pia, pegou um papel-toalha e começou a secar em volta da mão dele. Aí eu pensei ‘se ela aplicou errado a medicação, colocou fora sem querer, ela vai refazer’. Fiquei olhando, pra ver se ela ia refazer, mas ela não refez. Nesse mesmo tempo, ela colocou uma seringa que estava na bandeja de medicação dele em cima de um outro móvel. Quando ela virou as costas, fui lá ver e estava escrito ‘Eric Augusto – Dipirona’. Então ela não aplicou a Dipirona nele”, conta o pai.

    Ele relatou à chefe de enfermagem o que tinha visto. Quando voltou no dia seguinte, uma sexta-feira, para passar a noite com o filho, orientaram-no, na portaria do hospital, a ir ao posto policial que fica ao lado da estação de metrô Clínicas. “Quando cheguei lá, falei que estava indo passar a noite com o Eric Augusto, que me autorizaram. Um policial, de maneira muito ignorante, falou ‘ninguém fica com ele lá não, quem fica com ele é a polícia’. Desse jeito. Aí eu voltei pro hospital e consegui entrar. Só que na outra noite eu já não me deixaram mais entrar. A própria chefe de enfermagem falou que eles suspenderam porque o Eric estava preso e não era pra ficar lá. Ponto. Só que sabe quando você percebe que a pessoa teve que cumprir ordens? Não era algo que ela estava interditando. Ela foi orientada ou ordenada a não deixar mais que eu passasse a noite com o meu filho”, afirma.

    Eric Augusto na tarde de 23/08/2016. | Foto: Arquivo pessoal

    Um ou dois dias depois, uma irmã de Eazy Jay e a namorada de Eric foram ao hospital visitá-lo e encontraram três policiais militares ao redor da maca do jovem. No dia seguinte, ao chegar, o rapper conta que encontrou o corpo do filho extremamente vermelho. “O corpo do meu filho estava da cor de um tomate, por completo. No rosto e no peitoral dele tinham umas partes roxas”, recorda.

    Era início de setembro. “A médica falou que era uma alergia por conta de um antibiótico, mas como ele foi ter essa alergia naquele dia se ele já estava sendo tratado com esse antibiótico antes? Aí fica a dúvida. Eu relaciono essa infecção que ele teve com a visita dos policiais, porque é muita coincidência, foi muito esquisito. Desde esse dia, o Eric só piorou”, questiona.

    O jovem chegou a voltar para a UTI depois da “suposta reação alérgica”, segundo o pai. O mês de setembro passou em meio a internações e transferências de leitos. “Ele desenvolveu uma pneumonia, com mais agravantes. Ele voltou pro leito onde ele estava, só que foi pro isolamento. Ele ainda respondia, ainda mexia os dedos”, conta Eazy Jay. “Uns três ou quatro dias depois que ele foi pro leito isolado, me chamaram e falaram que iam transferi-lo pro hospital penitenciário. Foi quando eu fiquei em desespero e fiz um vídeo falando sobre isso, desesperado, para que ele não fosse para um hospital penitenciário”, afirma.

    No vídeo, gravado no mesmo dia, 3 de outubro, e postado em sua rede social, o rapper pede ao governador Geraldo Alckimin (PSDB) para tomar providências: “Veja o que a polícia do Estado de São Paulo fez com o meu filho no dia 11/08/2016, governador, a sua polícia. O meu filho está em estado vegetativo porque a polícia o capturou e o torturou, e nós temos as marcas da tortura”, diz Jay na gravação.

    Eric Augusto foi transferido na madrugada seguinte, na manhãzinha do dia 4 de outubro de 2016, para o Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, no Carandiru, onde permaneceu até a sua morte, no dia 17 último. “Não me avisaram nada. Simplesmente o transferiram. Eu não sabia onde ele estava, eu que saí procurando”, conta o pai.

    Eric Augusto no vídeo gravado por Eazy Jay antes de sua transferência para o hospital penitenciário. | Foto: Reprodução vídeo / Facebook

    “Eles estavam cuidando para que ele morresse, não para que ele vivesse”, diz rapper

    Se, enquanto estava no Hospital das Clínicas, Eazy Jay conseguia se comunicar com o filho, que lhe respondia piscando os olhos duas vezes para sinalizar que estava entendendo o que o pai lhe dizia, no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, Eazy Jay afirma que, logo na primeira visita, encontrou Eric em um quadro visivelmente pior do que nos dias anteriores.

    “Meu filho já estava em outra condição. Estava muito piorado, estava muito ruim, mas muito ruim em relação ao dia em que eu fiz o vídeo. Aí o médico, Dr. Paulo, falou que ele chegou lá muito mal, com umas escaras terríveis e tudo mais, e não sabia até quando ele resistiria”, recorda o pai.

    Eric já não respondia mais aos estímulos. “Só teve mais uma vez em que ele piscou os olhos”, lembra. E também chegou a contrair as pernas algumas vezes, quando o pai lhe fez cócegas nos pés. “No mais, só houve piora. Ele perdeu muito peso, muito rápido. Foi impressionante, porque o Eric era um menino forte. Era magro, mas tinha músculos. E perdeu tudo muito rápido”, diz.

    Eric Augusto. | Foto: Arquivo familiar

    O rapper conta ainda que chegou a ouvir de uma médica do hospital penitenciário a confirmação de que o que havia levado Eric àquela situação tinha sido um espancamento. “No primeiro contato que eu tive com essa médica, ela me perguntou o que eu achava daquilo. Perguntei ‘como assim o que eu acho?’. Ela falou ‘o que você acha que houve?’. Eu respondi ‘eu tenho as provas, em fotos, de que o meu filho foi espancado por policiais, porém até hoje ninguém esclareceu nada’. E aí ela disse, muito irônica ‘é isso mesmo, você está certo, mas como você vai provar isso? Porque eu estou te falando isso mas não iria, jamais, num tribunal, depor em seu favor, dizendo que isso é verdade. Então você não tem como provar’. Ela falou exatamente desse jeito”, recorda, com tristeza.

    Eazy Jay acredita que houve “um investimento para que seu filho não voltasse”, já que, assim, ele poderia depor sobre o que havia acontecido. “Se ele voltasse, ele ia reconhecer os policiais, a situação seria revelada. Então foram matando ele aos poucos, não investiram na melhora do Eric. Se precaveram para que ele não melhorasse”, afirma.

    Ele conta que se sentia profundamente incomodado com a ideia de que seu filho pudesse ouvir o que os médicos diziam sobre seu estado, alegando que não havia como evitar sua morte. “A covardia é bruta, constante, e se prolongou até o último momento da vida do meu filho. Pois todos eles, médicos e enfermeiros, falavam que ele estava ouvindo tudo. Ou seja, então ele estava sendo torturado a cada momento”, diz o pai.

    “A cada dia fico mais triste, mais indignado, e convicto de que não investiram no meu filho para ele voltar e, sim, contribuíram para ele ir de vez. É a lógica da conduta deles. Eles estavam cuidando para que ele morresse, não para que ele vivesse. Essa é a real. Como abriram a cabeça dele, não me deixaram vê-lo naquele momento, que falaram que tinha dado o óbito, e eu não conseguia sentir que  meu filho tinha ido. Se não deixaram eu vê-lo, eu deduzi que, de repente, eles pararam de investir ali e deixaram ele ir. Pararam de cuidar, ele não aguentou, é isso que eu penso. É difícil demais”, encerra o rapper, que pretendia gravar uma música com o filho quando ele se recuperasse e concluísse sua pena, que estava chegando ao fim quando tudo aconteceu.

    A Ponte enviou e-mails para as assessorias de imprensa do Hospital das Clínicas e da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária), para questionar as duas instituições sobre o período de internação de Eric Augusto nas duas unidades hospitalares, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

    Ao Hospital das Clínicas, foram enviadas as seguintes perguntas:

    1. Como ele foi diagnosticado ao chegar? O que o relatório aponta como causa do coma do paciente?
    1. Qual era exatamente seu quadro quando ele foi transferido para o hospital penitenciário?

    À SAP, sobre o período que Eric Augusto passou no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, foram enviados os seguintes questionamentos:

    1. Antes de chegar ao hospital penitenciário, Eric Augusto encontrava-se internado no Hospital das Clínicas. Qual o quadro clínico dele ao chegar ao hospital penitenciário, no dia 4 de outubro de 2016?
    1. Ele chegou a estar consciente durante o período que passou internado na unidade? Ele seria capaz, por exemplo, de compreender algo simples que ouvisse?
    1. Qual foi exatamente a causa da morte do paciente?
    1. Quem era o profissional responsável pela equipe que atuou no tratamento dele?

     

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas