Desamparadas pela prefeitura, famílias correm risco de despejo em Santos (SP)

    Prédio da antiga Casa de Saúde Anchieta foi abandonado e leiloado pelo Judiciário com os moradores dentro. Empresa que arrematou imóvel entrou com ação de desocupação; “dinheiro a gente corre atrás, nós queremos moradia”


    Moradores da Ocupação Anchieta, na Vila Matias, centro de Santos, cidade do litoral paulista, convivem com a incerteza e sob condições precárias há quase 20 anos. O local, onde funcionou a antiga Casa de Saúde Anchieta, que se tornou símbolo da luta antimanicomial no país, hoje abriga 69 famílias e é alvo de um processo judicial de desocupação movido pela PJGC e Bragil Empreendimentos e Participações, que arrematou o prédio em um leilão da Justiça Trabalhista por conta das dívidas dos antigos proprietários.

    Desde que foi abandonado no fim da década de 1990, mais de 200 pessoas em situação de vulnerabilidade, sem emprego fixo em sua maioria, ocuparam o espaço que se encontra atualmente com graves problemas de infraestrutura, infiltração de água e corre o risco de desmoronamento. “Eu vim de São Paulo para cá para tentar uma vida melhor. Lá em São Paulo pagava aluguel, mas para pagar o aluguel passava muita dificuldade, às vezes não tinha nem o que comer”, relata Patricia Maria, que é mãe e vive na ocupação há 13 anos.

    Ela lamenta a falta de amparo e a ameaça de despejo diante da pandemia de Covid-19 que impôs ainda mais dificuldades às pessoas da ocupação. “A gente não tem como pagar um aluguel. A gente vai para onde?”, questiona. Durante este período, a prefeitura não incluiu os moradores em programas habitacionais e apenas prestou apoio com assistência social. Um pedido de reconhecimento de usucapião dos moradores tramita na Justiça e é acompanhado pelo Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado, segundo a advogada Gabriela Ortega, do Núcleo de Direitos Humanos José Martí, que representa as famílias.

    Ela, o advogado da empresa Kleber Costa, moradores e o diretor de habitação da Cohab Santista Sandoval do Nascimento Soares, participaram de uma audiência pública no dia 03/11, organizada pela vereadora Telma de Souza (PT), para discutir o futuro da ocupação e o direito à moradia. Na ocasião, o advogado da empresa informou que a proposta de indenização aos moradores é de três mil reais pelo acordo, mais sete mil na desocupação, além de uma espécie de “auxílio aluguel” em 36 parcelas de 500 reais.

    No entanto, os moradores cobram uma medida mais concreta do poder público e defendem outra proposta dos empreendedores para que seja concedido ao menos um dos lotes do terreno ou a construção de um novo imóvel para serem realocados. “Não é dinheiro. Dinheiro a gente corre atrás, nós queremos moradia, um endereço que nós podemos falar ‘aqui é meu canto’”, pontua Vander do Surdo, residente no Anchieta.

    A prefeitura diz que espera uma decisão judicial para poder realizar alguma medida em acordo com o proprietário do prédio. Para a advogada Gabriela Ortega, ocorre “uma disputa política e uma gentrificação a olhos vistos”, ou seja, a expulsão dos moradores de baixa renda para acomodar novos empreendimentos e áreas nobres. Neste mês, o STF (Supremo Tribunal Federal) confirmou uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso que estabeleceu a suspensão de despejos até março de 2022 por conta da pandemia.  

    Memória da luta antimanicomial

    A ação de desocupação ameaça não só as dezenas de famílias como também a memória e a história da cidade. Antes de se tornar moradia, o imóvel abrigou a Casa de Saúde Anchieta, popularmente conhecida como a “Casa dos Horrores”, um hospital psiquiátrico fundado em 1951 e denunciado por maus-tratos e diversas violações dos direitos humanos. As pessoas internadas sofriam com as condições degradantes do local superlotado, eram torturadas e ameaçadas.

    Em 1989, diante das denúncias e do registro de mortes, a vereadora Telma de Souza, então prefeita de Santos, determinou a intervenção no Anchieta, que durou 5 anos. Na época, a ação marcou o avanço do movimento pela reforma psiquiátrica, que exigia o fim dos manicômios e defendia os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. O hospital foi fechado em 1994 e os pacientes foram encaminhados para unidades de tratamentos terapêuticos do município.

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    A preservação do prédio, de acordo com a arquiteta Thais Slwczuk, é possível tanto para moradia quanto para se tornar um espaço útil e público à população. “A ideia é a gente ter um espaço permeável, onde a população pertença a esse espaço também. A gente pode verticalizar com qualidade”, defende.

    O que diz a Seds

    A Ponte entrou em contatou com a Secretaria de Desenvolvimento Social (Seds), que faz a gestão do Sistema Único de Assistência Social, do Governo de Santos para saber se o órgão está prestando algum tipo de apoio às famílias que correm risco de despejo e se há algum plano para realocá-las. Até o momento, não recebemos resposta.

    ERRATA: Uma versão anterior da reportagem dizia que o leilão do imóvel foi feito pela prefeitura. A informação foi atualizada às 12h39 pois o leilão foi intermediado pelo Judiciário.

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