‘Rap é mais que música’: Dexter fala com jovens de abrigos sobre sua vida

    Escolhido pela Corregedoria do TJ para falar sobre autonomia e a importância de fazer as escolhas certas na vida, Rapper usa seu lugar de fala como negro e periférico para dialogar com molecada em situação de vulnerabilidade

    Rapper Dexter chamou a galera pra perto no fim do evento | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Liliane dos Santos queria ir para o abrigo onde mora no Belém, zona leste de São Paulo, depois de estudar. Não pôde, pois aconteceria um debate para jovens. “Achei que seria mó chato, queria dormir”, conta a adolescente de 14 anos. Quem a convenceu a ficar foi Natália Moreira da Silva, 29, sua professora e educadora social. A atitude de Natália fez Liliane comemorar ao fim do encontro de mais de 300 adolescentes com o rapper Dexter na Obra Social Dom Bosco, em Itaquera, também na ZL paulistana. “Foi muito eu, ele fala de coisas da minha vida, do que teve que passar. Mostra muito a nossa realidade, é um incentivo”, explica.

    Dexter chegou às 14h26 para trocar uma ideia com a garotada. Para ele, não é uma palestra. “Precisa ter música, é minha… Como se diz, não exigência, é meu pedido. Sem música, não adianta nada eu falar pra molecada”, explica. O pedido partiu da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo. A intenção: divulgar o projeto Trampo Justo, para incentivar os garotos e garotas a terem uma vida dentro das regras e mostrar a realidade de alguém que, assim como eles, nasceu nas quebradas e seguiu sua caminhada. Com desvios, acertos, erros e, sobretudo, experiência. E a vivência, seja no rap, nas ruas ou atrás das grades, partiu de Dexter pros demais com leveza.

    ‘Troca de ideia’, como ele define, teve música e agradecimento de fãs mais antigos | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    A timidez estava na vantagem no começo. O juiz Iberê Dias de Castro, 42 anos, titular da Vara da Infância de Guarulhos, mas temporariamente na Corregedoria do TJ, explicou rapidamente o que aconteceria ali – a conversa e divulgação do programa Trampo Justo – e agradeceu os organizadores. Sabia que o recado a ser dado não era com ele, era com Dexter. “Sou um branco de classe média, é claro que vão me ouvir e pensar: ‘Você falar pra gente acreditar é fácil, agora vem viver o que a gente vive pra ver como é’. São garotos em situação de risco, seja físico ou intelectual, meu lugar de fala é outro. Por isso chamamos o Dexter, uma referência pra eles e muitas outras pessoas”, explica.

    Logo outro tom de voz assumiu o som. Outra voz, outra mensagem. “Acreditei na proposta que está nas esquinas, em todas elas. Parecia a solução mais rápida, mas você aprende logo que não é. O rap me mostrou isso. Aos 17 anos, ele salvou minha vida. Passei 13 anos e 3 meses lá no exílio (como ele se refere aos período no sistema prisional), estou aqui pra plantar uma semente no coração de cada um: respeitem vocês próprios. Vocês são donos de suas caminhadas, não sejam homens na estrada”, disparou. A mensagem não tão curta, mas certeira, era o protesto para o que ele mesmo havia dito: a música. Começou a tocar “Homem na Estrada”, do grupo Racionais MC’s e escrita por Mano Brown.

    O dançarino Alex, conhecido como B.Box Alex, se apresentou ao lado de uma de suas referências na vida | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Naquela hora, a garotada sentiu que não seria mais um encontro chato, como pensou Liliane antes de entrar na quadra. A maior parte se soltou, cantou junto a letra escrita para escancarar problemas sociais vividos nos anos 1990 e ainda atuais. Outros ainda seguiam ressabiados. Fim da música, Dexter então partiu pro debate: “Quem quer fazer pergunta?”. Duas educadoras pediram o microfone. Uma perguntou sobre o grupo 508 E, fundado dentro do sistema prisional. “No segundo semestre desse ano teremos seis shows, primeira mão aqui. Não é uma volta, mas estaremos juntos”, revelou o rapper.

    A segunda era Natália. Ela não queria perguntar. Em vez disso, preferiu agradecer. “Obrigado, Dexter. Você, os Racionais… O Rap me salvou, eu, mulher negra. Gratidão, amo você”. Dexter agradeceu. “São mensagens assim que nos fazem acreditar a seguir fazendo o que fazemos. O Rap é mais do que cantar, mais do que música, é o que fizemos aqui hoje, é uma cultura. O rap precisa ter uma mensagem por trás das letras, é sua essência acima de tudo. Hoje tem uns grupos que pregam a ostentação, nada contra, mas não é a minha. Eu, com 45 anos, não posso cantar certas coisas. Se faço, mostro pras pessoas que não tenho mais preocupação com nada. Aí, acabou. Melhor parar do que fazer merda. Pra mim, mano. Minha visão”, explica.

    Fã declarada, Natália dividiu um dueto com Dexter: ‘Salvou minha vida’ | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    As músicas seguiram. O ídolo cantava e via Natália, a fã salva pelo rap, acompanhar cada trecho. Estava claro o que tinha de fazer: colou do lado e meteu um dueto. “Nunca imaginei viver um dia isso, nem em show dele eu tinha ido na vida. Ainda não entendi o que rolou [risos]”, tentou explicar a educadora, que sabe na pele como uma mensagem bem direcionada ajuda na construção do ser. “O rap transmite a nossa realidade, a realidade desses jovens. É muito importante fazer um encontro como esse, tinha que ser constante. Os moleques precisam ter voz, e vêem voz em um cara como o Dexter, uma referência de superação”, sustenta.

    Os versos tiveram participação especial quando “jogaram” Alex Paulo Geraldo da Silva, 37 anos, pra frente do público. O educador social é mais conhecido como B.Boy Alex, o dançarino. Ali, teve a oportunidade de transformar a caminhada certo pelo certo em conquista. “É gratificante, acompanho o Dexter desde a adolescência lá em [Cidade] Tiradentes, minha quebrada. Sou de periferia também, sei que na rua tem de tudo. Minha mãe é mãe solo, tem três filhos. Preferi estudar, trabalhar e dançar. Danço desde os 12 anos e agora tive essa gratificação”, conta, com sorriso largo.

    Músico formou uma fila e tirou foto com a molecada | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Liliane, a jovem que queria dormir em vez de ver uma palestra chata, já estava em pé, à frente da primeira fila de cadeiras. Dançava, cantava e curtia o som das batidas. Em um espaço para perguntas, soltou o verbo pra Dexter. Era sobre a época de “exílio”, de como ele resistiu. “No primeiro mês, vi jovens da mesma cor, mesma idade que eu morrer por uma palavra mal dita pro outro, por uma pedra de crack, uma carreira de farinha [cocaína]. O que vi é que lá é um 4º mundo dentro do 3º mundo que é o Brasil, embora existisse muita humanidade entre os presos, os irmãos. Percebi que o crime só daria o que eu tava vendo ali na minha frente. Entendi que o rap salva, o crime destrói”, respondeu claro, em poucas ideias. Poucas, mas cristalinas.

    Mais do que falar sobre superação, sobre a caminhada vivida pelo rapper e como ele conseguiu construir a referência que é hoje, o encontro queria além. Ao mostrar alguém com a estrada do músico, pretende plantar na cabeça da molecada que eles podem, sim, ser autônomos. “Os adolescentes de abrigos estão em situação vulnerável, pode ser por pais com alcoolismo, por não terem mais os responsáveis, por famílias desestruturadas… Nenhum deles aqui cometeu qualquer ato infracional, são vulneráveis por outras questões”, explica o juiz Iberê, como prefere ser chamado.

    Dexter cantou músicas próprias e dos Racionais MC’s. ‘Ia cantar MV Bill e Thaíde, mas o tempo voou’, conta | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    “E, quando completam 18 anos, são obrigados por lei a deixarem os abrigos. Os de até três anos conseguem ser adotados, os mais velhos de 7, 10 para cima, não. Precisamos conscientizar que eles conseguiram essa autonomia, que vale a pena seguir uma oportunidade de emprego, rara no país hoje, ainda mais para jovens na situação deles. Segundo Iberê, cerca de 1,7 mil crianças e adolescentes estão em abrigos no estado de São Paulo. Anualmente há a saída de 300 por terem alcançado os 18 anos, por isso ressalta a importância de empresas apoiarem o projeto Trampo Justo, citando entre os parceiros o Magazine Luiza e a universidade Uninove.

    Empresas que tiverem interesse em disponibilizar vagas para jovens aprendizes ou trabalhos para maiores de 16 anos, o contato para oficializar o interesse em ceder as vagas é [email protected].

    Músico e o Iberê Dias discursam para a galera | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo
    Dexter canta rodeado pelos jovens, todos já envolvidos pelas batidas da música | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    1 Comentário
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários
    trackback

    […] Leia também: ‘Rap é mais que música’: Dexter fala com jovens de abrigos sobre sua vida […]

    mais lidas