‘Diferente dos EUA, no Brasil os brancos não oferecem seus corpos para a luta antirracista’

    Pesquisadora na Califórnia, brasileira Marina Reis afirma que comparação entre protestos é injusta: “não se pode falar em apatia dos negros; resistimos, sim”

    Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

    Ao contrário do discurso fácil que dominou o debate público sobre violência racista cometida por policiais desde que o assassinato brutal de George Floyd na cidade de Minneapolis deu início a uma onda de protestos pelos Estados Unidos, negras e negros brasileiros resistem, sim. E de maneira contundente. A diferença, no Brasil, são os brancos: aqui, ao contrário de lá, pessoas brancas não mostram disposição de oferecer os próprios corpos para a causa antirracista.

    A análise é da pesquisadora em Direito Marina de Oliveira Reis. Brasileira do Rio de Janeiro, ela se prepara iniciar o doutorado em Teoria Crítica da Raça na Universidade da Califórnia em Los Angeles, a prestigiada UCLA. Para ela, não é possível falar em apatia da população negra brasileira frente à violência de Estado, enquanto moradores de favelas, familiares de vítimas e outros coletivos vêm resistindo, protestando e exigindo providências e fim da violência continuamente.

    “Essas comparações ganham uma proporção tão grande e chegam ao limite de culpabilizar a população negra brasileira por não se articular”, analisa a pesquisadora. “Não é isso que acontece e não é de apatia que estamos falando.”

    A pesquisadora brasileira Marina Oliveira Reis | Foto: divulgação

    Em entrevista à Ponte, Marina traça um panorama da revolta que a morte de Floyd, assassinado aos 42 anos, provocou em Minneapolis e de como os protestos se espalharam pelo país. Avalia a letalidade da polícia no Brasil, compara os dois países e provoca: “Em que medida nossos aliados usam seus privilégios para avançar na causa antirracista e contra a brutalidade policial? Ou será que ser antirracista no Brasil é só um emblema, um selo?”.

    Confira a entrevista:

    Ponte – Você poderia contextualizar a morte de George Floyd e as consequências que ela provocou nos Estados Unidos?

    Marina Reis – Acredito que alcançou tamanha repercussão por alguns motivos. Primeiro, foram muitos casos similares este ano: Breonna Taylor, Ahmaud Arbery, Tony McDade e tantos outros. Além disso, são mortes que ocorrem em um momento sensível para a comunidade negra, em meio a uma pandemia que não tem cor, mas tem efeitos completamente desproporcionais. A violência institucional e o genocídio não dão trégua à população negra nem diante da Covid-19, o que escancara o quanto as vidas negras são descartáveis.

    Ponte – Por que a morte de Floyd despertou essas reações? A morte de Ahmady Armery também contribuiu para isso?

    Marina Reis – Tivemos o assassinato de Ahmady Armery em fevereiro, o de Breonna Taylor em março. Como a de Floyd, foram mortes em circunstâncias completamente injustificadas, sendo um evidente resultado do racismo, da brutalidade policial e dos ideais de supremacia branca. A morte de Floyd, portanto, acontece em um momento em que a tensão e a revolta em torno das mortes de pessoas negras pela polícia estão no ápice.

    Manifestantes negros cobram punição de seguranças do metrô de SP que agrediram imigrantes haitianos, em outubro de 2018 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Ponte – Qual é o perfil dos participantes dos protestos em Minneapolis?

    Marina Reis – É difícil responder a essa pergunta porque os protestos tomaram uma proporção muito grande, se alastrando por diversas cidades. Particularmente em Minneapolis, começaram no próprio bairro onde o episódio de brutalidade ocorreu, convocado pela comunidade negra, mas depois se espalhou e outros grupos se solidarizaram com a causa.

    Ponte – Os oito anos de governo Obama não foram capazes de diminuir a violência policial racista? Que legado trouxeram nesse campo?

    Marina Reis – O número de pessoas mortas pela polícia nos Estados Unidos anualmente se mantém praticamente o mesmo nas gestões de Obama e Trump. No governo Obama, o que nos mostra o Mapping Police Violence é que houve um esforço para desmilitarizar as polícias locais com redução da disponibilidade de armamento de guerra, como lançadores de granadas e veículos blindados. Mas isso não foi capaz de reduzir significativamente a brutalidade policial. É como no Brasil, em que corpos negros não deixaram de sucumbir mesmo nos governos ditos progressistas. Para mim, só reforça o fato de que o racismo está enraizado na polícia enquanto instituição. Enquanto não promovermos uma verdadeira mudança estrutural no modo em que essas instituições são pensadas, nada vai mudar esse quadro.

    Ponte – O governo de Donald Trump influi na violência policial racista?

    Marina Reis – O problema da brutalidade policial vai além do Trump. É preciso sempre relembrar que os Estados Unidos, assim como o Brasil, foi um país escravocrata e fundado com ideais de supremacia branca. Então, o que temos que refletir é como o racismo estrutura não só as relações interpessoais como também as próprias instituições. Como eu disse: o problema da brutalidade policial vai além do Trump. Assim como o Brasil os Estados Unidos foram um país escravocrata e fundado sobre ideais de supremacia branca. Então, o que temos que refletir é como o racismo estrutura não só as relações interpessoais como também as próprias instituições.

    Ponte – É correta a percepção de que as mortes de jovens negros pela polícia despertam mais reação nos EUA do que no Brasil? Por que?

    Marina Reis – É necessário primeiro contextualizar qual grupo e qual reação estamos falando e comparando. Isso porque muitas vezes usam o movimento negro norte-americano e, mais especificamente, o Black Lives Matter, para traçar uma comparação com o Brasil e concluir que negras e negros no Brasil não se revoltam como nos Estados Unidos. Essas comparações ganham uma proporção tão grande e chegam ao limite de culpabilizar a população negra brasileira por não se articular. Na minha opinião, não é isso que acontece e não é de apatia que estamos falando.

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    No Rio de Janeiro, por exemplo, de onde venho: moradores e integrantes do movimento negro com frequência paralisam a avenida Brasil em protesto contra mortes de responsabilidade da polícia. Temos incessantes mobilizações do movimento de familiares contra violência do Estado no Rio de Janeiro. Não podemos falar de uma apatia. Resistimos, sim, de forma incansável.

    Em 13 de junho de 2016, manifestantes negros foram se opor a protesto de brancos que comemoravam morte de menino de 10 anos suspeito de um roubo no Morumbi, bairro rico de SP | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Por outro lado, acredito que há uma reação em maior escala nos Estados Unidos. Os protestos aqui prosseguem em meio a uma pandemia. Mas é necessário se perguntar em que medida a própria letalidade da polícia brasileira limita nossas possibilidades de reação mais contundentes? Historicamente, a polícia brasileira é vista como uma das mais letais do mundo. É possível para o movimento negro no Brasil reagir da mesma forma que nos Estados Unidos? Resistimos das formas que são possíveis. Também adicionaria a reflexão sobre como, historicamente, o mito da democracia racial funciona como grande desarticulador das nossas lógicas de solidariedade enquanto povo negro no Brasil.

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    O que me chama bastante atenção, e acho que devemos pontuar isso cada vez mais, é a apatia dos que se dizem aliados na causa racial no Brasil. Falo isso pensando justamente na imagem que se tornou viral, a de pessoas brancas que formam um escudo humano para proteger manifestantes negros da violência policial durante um protesto contra a morte de George Floyd.

    Não vou nem me aprofundar sobre as dimensões simbólicas e concretas que essa imagem veicula: ter um corpo branco é ter um escudo, uma barreira física de proteção contra a violência. Em que medida nossos aliados usam seus privilégios para avançar na causa antirracista e contra a brutalidade policial? Ou será que ser antirracista no Brasil é só um emblema, um selo da Fundação Palmares? Essa, sim, é a reação que ocorre mais nos EUA do que no Brasil.

    Ponte – O que mudou desde o “eu não consigo respirar” de Eric Garner, homem negro estrangulado por um policial branco em 2014 em Nova York, e a mesma frase dita por George Floyd? Medidas foram adotadas?

    Marina Reis – Ao contrário do Brasil, a polícia aqui é majoritariamente branca. Mas mesmo em cidades onde a força policial é negra, como Baltimore, por exemplo, não necessariamente há menos brutalidade policial. Algumas mudanças foram feitas, mas nenhuma capaz de produzir um impacto significativo na diminuição do número de pessoas mortas pela polícia ou que promovesse uma maior responsabilização dos policiais envolvidos nesses casos. A sensação aqui é que o padrão segue o mesmo: há uma investigação, mas não raro os resultados são inconclusivos e nenhum policial é responsabilizado. As mudanças, portanto, são pontuais. Por exemplo, tem se investido muito em equipar os policiais com câmeras corporais, o que teoricamente registraria suas ações e evitaria abuso. Uma outra discussão bastante forte aqui é sobre em que medida diversificar racialmente a força policial seria uma alternativa para diminuir esses números.

    Ponte – A frase “eu não consigo respirar” tornou-se um grito de guerra para o movimento Black Lives Matter e chama atenção para a recorrência de assassinatos de afro-americanos pela polícia usando força letal injustificada. Aqui no Brasil os movimentos negros têm denunciado historicamente essas mortes. Há paralelos entre esses movimentos? Se sim, quais?

    Marina Reis – Essa frase virou um mote nos Estados Unidos porque ecoa a constante brutalidade policial em relação à população negra. “Eu não consigo respirar” foram as últimas palavras repetidas incessantes 11 vezes por Eric Garner antes de ser morto por estrangulamento. “Por favor, pare, eu não consigo respirar” foi o pedido de socorro de George Floyd. Provavelmente, essa frase foi repetida tantas e tantas vezes por homens e mulheres negras que morreram nas mãos da polícia, sem vídeos que viralizaram. Me recordo que o mote do movimento negro brasileiro se tornou a frase “Por que o senhor atirou em mim?”, por terem sido as últimas palavras do jovem Douglas Rodrigues, 17 anos, morto com um tiro por um policial na zona norte da cidade de São Paulo.

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    Além das circunstâncias brutais em que são ditas, o que revolta é a sua (re)produção incessante. Ou seja, não é possível falar que a violência policial nos Estados Unidos, e menos ainda no Brasil, representam episódios pontuais. Ao contrário, a sua reprodução em larga escala evidencia um processo histórico de genocídio negro que é facilitado e produzido pelo próprio Estado.

    Na Marcha da Consciência Negra em 2017, na avenida Paulista, manifestantes lembram casos de negros vítimas de racismo do sistema, entre eles, Rafael Braga, único preso das manifestações de 2013, e Luana Barbosa, mulher negra lésbica espancada até a morte pela polícia | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Com isso eu quero evidenciar que tanto nos Estados Unidos como no Brasil, somos fruto de um violento processo de diáspora e, assim, nossas lutas são bastante similares. Guardadas as devidas proporções, as tecnologias de subordinação racial a partir da violência e genocídio são muito parecidas, então é natural que nos revoltemos e resistamos de maneira similar. Por isso, há uma ligação entre o Black Lives Matter (BLM) e o movimento negro brasileiro.

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