Direitos em Cena | As múltiplas faces de Jair Rodrigues

Cinebiografia detalha a trajetória artística de um dos grandes nomes da canção negra brasileira

Esse era um autêntico showman. Não bastava apenas cantar. Tudo nele era intenso: a voz, o corpo, a entrega e, principalmente, o sorriso. Gesticulava o tempo inteiro e podia até plantar bananeira em pleno palco. Os espectadores iam ao delírio. Como intérprete, nunca se limitou a um único gênero. Era de uma versatilidade intensa: samba, canção de protesto, música religiosa, sertaneja, seresta e ainda é considerado um dos percussores do rap. A trajetória deste ícone da canção negra brasileira está no documentário de longa-metragem Jair Rodrigues: Deixa Que Digam, do cineasta, dramaturgo e professor paulista Rubens Rewald. “O Jair militava contra o racismo nas entrelinhas. Isso está nas letras bem como em toda a postura profissional dele”, resume o diretor.

Rubens Rewald aproximou-se de Jair Rodrigues quando foi realizar seu segundo longa-metragem de ficção, Super Nada (2012). O cantor foi chamado para dar vida a Zeca, um comediante decadente que sofria de alcoolismo. Era um papel complicado. Rewald admite que ainda era um realizador um tanto desconhecido e inseguro. Acabou teimando que Jair Rodrigues poderia dar vida para Zeca. Mas não tinha grande esperanças que ele entrando naquele projeto. “Jair já era uma estrela consagrada da música brasileira, mas ele acabou topando. Achei essa postura dele de correr risco e procurar um desafio artístico algo muito positivo.”

O realizador ficou impressionado com a dedicação e a entrega daquele cantor tão experiente em uma produção com um orçamento controlado. “A ideia original era que o personagem dele fosse um pouco sombrio, diabólico. Mas ele fez algo muito diferente, trouxe piadas e foi mudando tudo”, diz Rewald, rindo. A participação de Jair em Super Nada chamou a atenção: ele recebeu o prêmio especial do júri no Festival do Rio pela sua participação. “Ali eu percebi que ele era realmente um grande artista e com uma sensibilidade aberta para qualquer linguagem”, analisa o diretor.

Com o lançamento do DVD de Super Nada, Jair Rodrigues começou a cobrar Rewald para fazer um documentário sobre ele. O realizador ficou entusiasmado e achou que era importante trazer todo aquele personagem para um longa-metragem. Rewald nunca tinha dirigido documentários, seria sua primeira investida no gênero. Os dois se encontraram e ficaram de iniciar o projeto. Passaram-se duas semanas e Jair Rodrigues morreu subitamente, em maio de 2014. “Engavetei o projeto e achei que não iria mais pra frente”, confessa. Depois, o realizador percebeu que o artista queria muito que aquele trabalho fosse feito. “Senti que era um chamado”. Rubens Rewald reuniu-se com a família do cantor, eles toparam e assim começou a nascer o documentário.

Ao fazer um longa-metragem sobre Jair Rodrigues, o cineasta deparou-se com uma dificuldade inusitada: o excesso de material. Isso porque a trajetória do personagem confunde-se com a própria trajetória da televisão brasileira. “Muita coisa se perdeu em incêndios da TV Record, da Tupi e da própria Globo. Mas ainda existe muito material do Jair. Foi difícil fazer a seleção do que realmente era mais representativo”. A ideia original do diretor era fazer um documentário musical que não ficasse maçante ou monótono. “Eu queria fazer um filme divertido, alegre, afetuoso. Um filme que ficasse com a cara do Jair Rodrigues. Esse foi um dos nossos maiores desafios”, enumera.

Além das imagens de arquivo, a película é recheada com depoimentos de críticos musicais, músicos, familiares, amigos e historiadores. Mas uma opção inovadora da narrativa é o filho do cantor, Jair Mello de Oliveira, interpretando o próprio pai. Inicialmente, a ideia era chamar algum ator profissional para fazer depoimentos ficcionais do artista. Mas o intérprete para aquilo estava debaixo dos olhos de Rewald. “Bom cantor e muito parecido com o pai. No início, parecia algo um pouco forçado, mas a gente teve todo um processo de ensaio com o Jairzinho e isso até está no filme. Eu particularmente gosto muito dessa solução”.

Transbordam nas imagens a grande versatilidade do cantor. “Essa era uma questão fundamental no filme”, reitera o diretor. Jair Rodrigues aparece bastante jovem defendendo “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, marco da canção de protesto que venceu o Festival da Música Popular Brasileira em 1966. Vivia-se o início da Ditadura Militar (1964-85), tendo Jair vencido o festival juntamente com Nara Leão que defendia “A Banda”, de Chico Buarque. Théo de Barros admite no documentário que achava Jair Rodrigues um tanto inadequado para aquela música mais engajada. Mas o cantor deu conta do recado. Além desse marco, o artista também esteve associado à música sertaneja quando gravou o sucesso “Sua Majestade, o Sabiá” da então iniciante Roberta Miranda. Ela deu um depoimento emocionado ao filme.

Natural da pequena Igarapava, interior de São Paulo, Jair Rodrigues mudou-se ainda criança para Nova Europa, outra cidade do interior paulista, a 317 quilômetros da capital. Foi ali que começou a cantar no coral da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, aprendeu as primeiras letras e cantava o hino nacional no grupo escolar da cidade incentivado por uma professora. Depois, foi engraxate, mecânico, servente de pedreiro e alfaiate.

Ralou em programas de calouros, até tornar-se crooner, cantor de boates da noite em São Paulo. Parece que foi lá que ele aprendeu a cantar canções de diversos gêneros como a bossa nova, o samba-canção de dor de cotovelo, o forró, o jazz, os afro-sambas, as serestas e, principalmente o samba, gênero ao qual Jair Rodrigues esteve mais associado, revelando e dando voz a muitos compositores negros do Rio de Janeiro que nunca tinham sido gravados em disco. “Ele deu oportunidades para muitos compositores do morro que não tinham acesso à grande mídia. Foi um ato pioneiro dele”, defende Rewald.

A figura de Jair Rodrigues carregava um caráter apolítico que é abordado no filme. Ao longo da sua trajetória, o artista foi muito atacado por manter uma postura um tanto distante de assuntos polêmicos como o racismo e a ditadura. “Tudo isso está sendo reavaliado. Então, eu acho que era importante discutir isso no longa-metragem”, explica Rewald. O pesquisadore professor de cultura negra Salloma Salomão e o artista Rappin`Hood explicam no documentário que o ativismo de Jair não estava no discurso, mas em sua obra.

Cena do documentário Jair Rodrigues: Deixa que Digam | Foto: Divulgação

“Era uma militância nas entrelinhas. Não só na música dele, bem como em toda sua postura profissional. Mas era daquele jeito alegre e ele foi o primeiro apresentador negro da TV brasileira. Isso não é pouco”, ressalta Rubens Rewald. Pesquisador detalhista, Salloma Salomão explica que a obra de Jair está repleta de citações às religiões afro-brasileiras e exaltação do negro. Mas não é algo especialmente engajado. “Ele tinha uma persona e uma postura muito alegre nas entrevistas. Isso pode ter confundido um pouco as pessoas que cobravam um artista mais panfletário”, opina o realizador.

Ao longo dos 96 minutos de Jair Rodrigues: Deixa Que Digam conhecemos mais profundamente esse artista afetuoso, carinhoso e muito brincalhão que não parava quieto nunca. “Menos quando passava o Chaves. Aí ele ficava quieto”, explica a esposa, rindo, num dos momentos mais engraçados da narrativa. Rubens Rewald explica que os documentários musicais acabam sendo mais caros que os filmes não ficcionais de outros gêneros. “Acaba sendo um produto caro porque você precisa comprar tanto os direitos de imagens das emissoras de televisão bem como os direitos das canções: direitos patrimoniais, direitos autorais”.

Lógico que em um filme sobre uma persona como Jair Rodrigues não poderia faltar seus grandes sucessos como “Disparada”, “Festa Para um Rei Negro”, “Orgulho de Um Sambista”, “Sua Majestade, o Sabiá”, “Deixa Isso Pra Lá” e tantas outras. “Essa seleção foi muito baseada nos grandes hits dele, mas também no meu gosto pessoal, das músicas que eu gosto dele”, entrega o diretor, rindo.

Jair Rodrigues: Deixa Que Digam é o segundo longa-metragem de Rubens Rewald lançado em 2023. O primeiro foi Segundo Tempo, drama ficcional rodada no Brasil e Alemanha. Ele explica que as condições adversas da pandemia e a paralisação da Ancine (Agência Nacional de Cinema) durante o governo Bolsonaro acabaram colaborando para ele lançar os dois filmes quase simultaneamente. “São dois projetos completamente diferentes”, explica. “Mas eu acho que foi uma experiência muito boa passar os dois filmes no mesmo ano. Isso deu muita visibilidade para a minha obra e os dois tiveram uma ótima recepção.”

Ajude a Ponte!

Rubens Rewald está buscando captação para um projeto de ficção chamado Família e uma série de televisão chamada A Mesa. “Estou feliz com os resultados que esse filme está tendo. Jair Rodrigues: Deixa Que Digam teve uma ótima acolhida da mídia e de público. Na primeira semana de exibição, foi o segundo filme brasileiro mais visto. Isso não é pouca coisa para um documentário”.

Jair Rodrigues: Deixa Que Digam
Direção: Rubens Rewald
Brasil, 2020
Duração: 96 minutos
Nos cinemas

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude
Inscrever-se
Notifique me de
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários

mais lidas

0
Deixe seu comentáriox