Do racismo à prisão: refugiada Falilatou quer provar inocência e trazer filho ao Brasil

Cumprindo medidas cautelares, a vendedora ambulante Falilatou Estelle Sarouna ficou presa por meses em um processo cuja única prova apresentada contra ela era uma assinatura em letra cursiva, apesar de ser analfabeta

Era uma quarta-feira fria e ensolarada quando a ambulante togolesa Falilatou Estelle Sarouna, 40 anos, recebeu sorridente a equipe da Ponte em sua casa, um pequeno apartamento de dois cômodos localizado no Brás, região central da cidade de São Paulo. Receptiva e alegre, Fali, como é chamada pelos amigos e conhecidos, contou à reportagem em meio a lágrimas e risadas detalhes da sua vida no Togo e no Brasil, onde passou seis meses presa injustamente após ser acusada de participar de uma quadrilha internacional de crimes de extorsão, mesmo sem saber ler e escrever. 

O apartamento ainda bagunçado da mudança recém acabada retratava um pouco da confusão que a vida da togolesa se tornou nos últimos meses. Depois de conseguir um pouco de estabilidade em São Paulo após enfrentar dificuldades como o desemprego, a violência policial, o racismo e a distância do filho, que não vive com ela desde 2014, Falilatou teve que encarar a vida no cárcere. 

Apesar disso, Fali segue confiante de que dias melhores virão, quer provar sua inocência e trazer seu filho de 12 anos à São Paulo. “Quero que meu filho estude tudo o que ele quiser, para ele não sofrer como eu sofri, por isso vim pra cá, é por causa do meu filho que estou aqui. Quero trazer meu filho pra cá, estou pedindo ajuda porque não posso sair”, conta. 

Falilatou na saída da prisão | Foto: Arquivo Pessoal

Falilatou deixou seu filho no Togo sob os cuidados de uma prima. Os motivos que a levaram tomar essa decisão e vir para o Brasil vão desde a pobreza até a situação política do país quando o deixou em agosto de 2014. Sua infância não foi fácil: aos oito anos Fali já trabalhava para ajudar a mãe a levar comida para casa. Aos 12 ela foi abandonada pela mãe, que decidiu ir para Gana com alguns dos seus filhos para viver com o pai de Fali, com quem ela mesma nunca chegou a morar. Terceira filha mais velha de um total de 8 irmãos, Fali, a única mulher tinha que trabalhar para alimentar os outros dois irmãos que ficaram com ela no Togo. 

Durante a entrevista, a refugiada lembrava da infância no Togo com os olhos marejados. “Eu fiquei com a minha mãe no Togo, a comida nunca dava para gente, vendíamos comida e outras coisas, minha mãe preparava comida, eu ajudava ela a cozinhar, levava na minha cabeça para ir vender na rua. Com uns 7, 8 anos eu já começava a ajudar a minha mãe. Vivíamos em uma casa simples, um quartinho para nós três, só os homens estudavam, eu não estudei, nunca entrei em uma escola.”

Com muita tristeza, Fali contou como foi viver sem a mãe na infância. “Quando o meu pai veio buscar a minha mãe, ele levou ela para Gana, então eu tive que me virar sozinha pra comer, eu trabalhava, ajudava em bar, lavava louça, para levar comida para os meus irmãos que estavam em casa. Então ela levou os meus irmãos pequenos e deixou eu com meus outros irmãos, um mais velho e um mais novo, tive que trabalhar e cuidar dos dois. Ela não ia ter como sustentar todos.” 

Com o abandono da mãe, Fali e os irmãos ficaram na mesma casa com a avó, que os maltratava, segundo ela. “Tivemos que morar na rua, a nossa avó, mãe do meu pai, era muito chata, às vezes ela botava a gente para fora de casa e dormíamos na rua. Às vezes ficávamos duas semanas, um mês. A gente entrava, tomava banho rápido para ela não ver, pegávamos água na garrafinha e saíamos de novo, ela não queria que a gente dormisse lá.” 

Até os 15 anos Fali trabalhou como faxineira em casas de famílias no Togo, mas o salário não era suficiente e ela passava fome no trabalho. “Quando eu ficava cansada, se me maltratavam eu fugia. Eles não me davam comida, eu trabalhei muito, acordava muito cedo, dormia tarde. Minha vida foi um sofrimento, acordava às duas da manhã para trabalhar, fazia faxina, comida, ia na feira, comprava as coisas, lavava roupas, fazia tudo. Eu ficava muito tempo sem comer, se eu não passasse fome eu ficava por um ano trabalhando na casa, mas se eu passasse eu ficava de três a cinco meses e fugia.” 

Aos 16 anos, Falilatou reencontrou sua mãe, mas as condições de vida não mudaram. “Quando ela voltou ficamos juntas, eu trabalhava e ela pegava o dinheiro que eu trabalhava”, lembra aos prantos. “Eu trabalhava em uma casa e falava para ela que estava sofrendo, mas ela falava: ‘Fica forte, você vai aprender muita coisa’. Ela pegava o dinheiro e ia embora. É minha mãe, eu não posso julgar ela, então eu a perdoei.”

Na adolescência ela conta que não tinha amigos e momentos de lazer, a vida era completamente direcionada ao trabalho como vendedora de roupas. “Depois comecei a vender roupas, eu comprava e vendia. Pouco a pouco o lucro foi subindo, vendia em feiras e dava o dinheiro para ela [mãe].”

Diante disso, aos 20 anos Fali resolveu sair de casa. “Quando eu comecei a ganhar meu dinheiro eu não queria mais que a minha mãe pegasse, então peguei um quartinho, alugado, conseguia pagar o aluguel e levar comida pra ela.” 

Aos 22 anos, a togolesa perdeu um filho. Anos depois, em 2005, quando já tinha 26 anos, a vida de Fali passou a ser impactada pela situação política do país. Com a entrada do presidente Faure Gnassingbé, que assumiu o poder após a morte de seu pai, Gnassingbé Eyadéma, uma série de protestos começaram no país. 

Os manifestantes da oposição exigiram que o governo togolês estabelecesse limites de mandato presidencial e reivindicaram a renúncia de Gnassingbé. Naquela época Fali chegou a namorar com um homem que teve que fugir para o Brasil por conta de perseguições políticas, ali começava seu primeiro contato com o novo país.

A situação política do Togo continuou tensa. Nas eleições presidenciais de 2010 e de 2015,  os partidos de oposição também contestaram os resultados e novos protestos ocorreram. Segundo a Anistia Internacional, 25 pessoas foram mortas em protestos desde as últimas eleições, em 2015. A partir de agosto de 2017, a oposição realizou protestos contra o governo novamente. Em 2020 a dinastia familiar seguiu, Gnassingbé foi eleito pela quarta vez e opositores denunciaram uma suposta fraude eleitoral. 

Fali lembra que a situação socioeconômica do país era crítica quando ela resolveu vir para o Brasil. Fora isso ela já tinha um filho, nascido em 2009. “Tem o problema político, o presidente é o mesmo, tinha eleição mas sempre ele que ganha. O pai do meu ex-namorado morreu por se manifestar, meu ex- namorado fugiu e veio para o Brasil. Depois tive outro filho que hoje tem 12 anos, eu fiquei muito doente na gravidez, quando ele percebeu que ia ser cirurgia, ele não tinha dinheiro pra pagar e foi embora.” 

Chegada ao Brasil

Diante dessas dificuldades, Fali resolveu vir para São Paulo, onde ela já conhecia seu ex-namorado e o missionário e padre Mossi Kuami Anoumou, um primo de segundo grau que também já vivia há anos em SP. “Eu queria sair de lá, para procurar uma vida melhor para mim e para o meu filho, não tinha venda, tudo estava caro. Esse meu ex disse que aqui era bom, eu queria trazer o meu filho, mas ele falou para eu deixar ele lá, para que eu procurasse algum lugar aqui antes. Não ia deixar meu filho sofrer igual eu sofri, não estudei, não queria que ele fosse igual a mim. Ele tinha quatro anos quando o deixei.” 

Chegando em São Paulo em agosto de 2014, Fali se deparou com uma realidade difícil, mas foi apoiada por muitas pessoas. O ex-marido a levou na Casa do Imigrante, localizada no centro de SP para que ela regularizasse sua documentação como refugiada, onde permaneceu por um mês. “Eles me deram um lugar, me acolheram bem, foi muito bom, tinha comida, café da manhã, mas para quem não tem filho tem que sair, 11 horas da manhã, eu ficava porque ajudava a lavar a louça, cozinhar, até fazer meu documento para começar a trabalhar”, lembra.

Ao sair da Casa do Imigrante, Fali foi viver no centro de São Paulo e começou a trabalhar na Galeria Presidente, conhecida como Galeria do Reggae, como trancista em um salão de beleza especializado em cabelo afro. “Depois fui pra República, trabalhar na galeria, ajudava a desmanchar, a pentear o cabelo, porque quando eu cheguei meu documento de refúgio saiu depois de três meses, eu não tinha como ter carteira de trabalho”. Neste trabalho, Fali conheceu Chantal Dagan, a quem hoje considera uma irmã. 

Falilatou na saída da cadeia junto a representantes de movimentos que promoveram a campanha “Liberdade para Falilatou” | Foto: Arquivo Pessoal

A língua, segundo ela, foi uma das principais barreiras sociais no Brasil, uma vez que seu idioma natural é o francês.,Fali também não aprendeu a ler e a escrever, um desafio a mais em um novo lugar. “Falo francês, eu nem sabia falar bom dia. Ele [ex-namorado] me ensinava algumas coisas. Foi Deus que me ajudou, porque quero ficar aqui no Brasil, então preciso aprender, me forcei a aprender a falar.”

O racismo e o desrespeito foram outras adversidades encontradas por Fali em SP. “O Brasil tem muito racismo, é muita acusação, quando você fala com seu sotaque, no metrô, no trem todo mundo já fica te olhando, acham que a gente não merece estar aqui. Eu trabalho no Brás, sou camelô, a pessoa pisa na mercadoria de propósito, falam para a gente voltar para o nosso país: ‘Vai embora’, é sempre assim”, denuncia. “Togo é um país pequenininho, a gente se encontra na rua, damos bom dia, aqui ninguém dá e se você dá, pensam que você é louca.”

Para conseguir sustento, Fali trabalhou por pouco tempo em uma lanchonete da rede McDonalds, único trabalho formal que teve no país desde que chegou. “Quando eu saí de lá, eu precisava pagar aluguel, para isso fazia amendoim doce e salgado, banana chips, levava na lan house de uma amiga, fiquei assim uns três meses.”

Foi então que ela resolveu ir para a área de venda de roupas, com a ajuda da amiga Chantal. Como ambulante trabalhava sob sol e chuva, das 10h às 19h. “Quando eu queria vender roupa ela me deu 200 dólares para eu começar a vender”. Em 2015 Fali foi morar no Brás, onde alugava quartos. “Vendia roupa, camiseta, calça, bermuda. Várias vezes perdi minha mercadoria, não conseguia recuperar, e tinha que começar de novo.” 

A polícia pegou diversas vezes seus produtos, conta em tom de raiva. “Eles entram no nosso guarda volume, falam para a gente ir junto no posto policial, contam a mercadoria na nossa frente, lacram, pegam nosso nome, RG, se tem nota fiscal a gente retira na prefeitura. Pegam tudo, mesmo a gente não estando na rua.”

Uma vez ela conta que se humilhou para os policiais liberarem sua mercadoria, depois que fazia menos de uma semana que ela havia comprado. “Ele falou que era pirata, rasgou, levou tudo e a gente para delegacia. Lá eu pedi perdão, pedi por favor, chorei muito e eles liberaram. Me joguei no chão, falei que se eles iam levar tinham que me matar, que eu ia dormir lá, que tinham que me dar um trabalho para eu pagar o brasileiro que peguei dinheiro emprestado. Me deitei no chão, fiquei chorando, até eles pensarem e me liberarem”, lembra da cena desesperadora aos risos.

A prisão: “Fiquei seis meses doente lá dentro”

Era por volta das 6h40, da manhã, do dia 15 de dezembro de 2020 quando Falilatou estava voltando de uma compra de mercadorias quando notou que seu celular estava repleto de ligações perdidas e mensagens. 

Ao chegar em casa soube que a polícia havia entrado em seu apartamento e revirado todos os seus pertences. A busca ocorreu no âmbito da Operação Anteros, conduzida pelo delegado Pablo Rodrigo França, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de Presidente Prudentem no interior de São Paulo, com mandado de prisão expedido pelo juiz Alessandro Correa Leite, da 2ª Vara Judicial do Foro de Martinópolis. “Encontrei um amigo na rua e ele me falou que a polícia estava me procurando, eu pensei que era brincadeira”, diz ela.

Sem entender o que estava ocorrendo a ambulante foi para casa e se deparou com a bagunça feita pelos policiais. “Quando eu fui abrir a porta eu vi que a porta estava arrombada, tomei um susto, tirei o celular para ligar para a proprietária. Quando eu vi que tinham ligações perdidas da minha vizinha e da proprietária, entrei no quarto, estava tudo bagunçado, tomei um susto”. 

Os policiais entraram na casa de Falilatou e reviraram os pertences em dezembro de 2020 | Foto: Arquivo Pessoal

Diante da confusão ela resolveu esperar em casa, caso a polícia voltasse, o que não aconteceu. Por volta das 8h30, certa de que não havia cometido nenhum crime, ela foi à 57° Delegacia Policial de São Paulo, localizada na Mooca, zona leste da cidade, acompanhada de sua amiga Chantal. Depois de horas sem receber nenhuma explicação da polícia, o delegado disse que ela estava sendo presa por estelionato. “Falei para ele, o que é estelionato? Ele falou: ‘Lavagem de dinheiro’. Na minha mente é dinheiro falso. Eu falei que não sei ler e escrever, como poderia fazer lavagem de dinheiro?”.

Na delegacia, Fali foi questionada sobre o número de contas que tinha. Ela tinha apenas uma única conta no banco Itaú, entretanto, ao menos quatro contas foram abertas em seu nome. “Eu sou camelô, não tenho dinheiro para ficar depositando e sacando. Não tenho dinheiro para isso”, diz. 

Apesar de explicar sua situação socioeconômica, Falilatou não foi ouvida pelos policiais, que até sugeriram que ela havia sido clonada, depois que ela não reconheceu sua assinatura e o endereço de uma residência que estava em seu nome. “Eles falaram: ‘Podem ter clonado ela’, eu ouvi. Foi assim como brincadeira, me levaram presa. Falei que eu poderia entregar meu passaporte para eles, ele falou que eu tinha que arrumar um advogado. Me algemaram, pegaram minha bolsa, meu celular, tudo, é assim que me prenderam”.

A amiga Chantal, que estava com Fali, logo chamou o padre Mossi, que prontamente conseguiu um advogado para a ambulante. “Naquele dia fui levada para uma delegacia no Morumbi, o Vitor [advogado] apareceu e falou que o padre mandou ele. Eu falei a verdade para ele, que eu não sabia ler e escrever, que nunca saí de SP, mas na quinta-feira (17/12/2020) fui levada para a penitenciária [feminina] do Carandiru. Na sexta-feira, o Victor apareceu, ele não me deixou nenhum minuto, levava meu remédio, ele me prometeu e me tirou”.

Saída de Falilatou da prisão junto ao advogado Vitor Bastos, a amiga Chantal e o padre Mossi Kuami Anoumou | Foto: Arquivo Pessoal

Encarcerada sem ao menos entender o porquê era acusada, a refugiada adoeceu na prisão. “Eu não acreditava em tudo o que eu estava passando, quando fui trocar a roupa, parecia que o mundo tinha caído em cima da minha cabeça, que recebi uma pancada nos ombros. Ficou muito difícil para mim. Deus me criou, eu sou forte, por isso eu não desmaiei. eu sabia que eu ia sair, não conseguia dormir, comer, era muito estranho para mim, como eu poderia dormir? por uma coisa que eu não fiz? Fiquei seis meses doente lá dentro”, lembra ela já com o olhar distante, triste e com a voz embargada.

As tentativas de ficar bem dentro da prisão se frustraram. “Eu tentei trabalhar, mas não conseguia por causa da minha pressão que estava muito baixa, ficava tonta, vomitava. Via as pessoas sendo libertadas, em janeiro cinco meninas foram embora, gente que chegava e eu ficando lá, quase perdi minha fé, eu pensava: ‘Será que eu vou embora?’ ‘Será que o meu advogado me abandonou?’ ‘O que está acontecendo?’”, diz.

Por conta da pandemia da Covid-19 as visitas eram restritas e as dificuldades de contato com a amiga Chantal foram muitas. Falilatou chegou a enviar ao menos 30 cartas para a amiga, mas não recebia as respostas. “As cartas que eu mandava não saiam, uma menina me ajudava a escrever, as cartas dela voltavam com as respostas, mas as minhas não, então eu percebia que as minhas cartas não iam. Tentei mandar 30 cartas. Eu recebi algumas cartas da Chantal que ela perguntava: ‘Porque você não está respondendo as minhas cartas?’ Eu falava: ‘por favor não me abandone”’.

Em meados de abril uma forte mobilização pela liberdade de Falilatou começou nas redes sociais, quando mais de 800 assinaturas de entidades, entre movimentos sociais, acadêmicos, políticos, sindicatos e pessoas autônomas defenderam sua liberdade por meio de um manifesto. A campanha também arrecadou dinheiro que foi enviado ao filho da refugiada para que ele continuasse os estudos.

Sem saber o que ocorria do lado de fora das grades, dentro da unidade prisional, Fali ainda sofria e pensava no filho. “Pensei muito nele, não teve nenhum dia que eu acordava bem, minha companheira de cela falava: ‘dorme, pensa nele, coma, você está perdendo peso’, ela foi boa comigo, me ajudou muito”.

Foi então que em 16 de junho, a togolesa foi solta após decisão judicial. “Eu fui orar na minha cela, ela [carcereira] falou: ‘levanta vai embora’, eu não conseguia ficar em pé, me ajudaram a pegar minhas coisas. Quando eu saí, vi as pessoas, chorei muito foi muito emocionante para mim.”

A luta pela inocência continua

A chegada de Falilatou até a Penitenciária Feminina do Carandiru se deu depois que diversos direitos foram violados. Um deles era o de responder ao processo em liberdade. A refugiada, que é ré primária e não possui antecedentes criminais, é acusada de cometer o crime de extorsão emocional ou afetiva (artigo 158 do Código Penal) e lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613 de 1998), em um esquema de golpes financeiros e fraudes online, cujas penas são respectivamente de reclusão de 4 a 10 anos e multa e 3 a 10 anos de reclusão e multa.

De acordo com a denúncia do promotor de Justiça Daniel Tadeu dos Santos Mano, feita em 11 de novembro de 2020, Fali teria recebido em quatro contas diferentes mais de R$ 1 milhão de reais. A acusação partiu das investigações da Operação Anteros, deflagrada pela Polícia Civil e com mandados de prisão expedidos pela 1ª Vara Judicial de Martinópolis, cidade na divisa entre os estados de São Paulo e Paraná. A investigação conta com 210 réus. Devido à pequena estrutura da vara de Martinópolis, o processo foi desmembrado em 10, com cerca de 35 pessoas em cada um deles.

Falilatou não teve audiência de custódia após a prisão e nem pôde se defender em audiência após a decisão de primeiro grau, conforme explica o advogado Vitor Bastos, vice-presidente da Comissão de Direitos dos Migrantes e Refugiados da OAB/SP. “Ela não teve a oportunidade de esclarecer os fatos, essa prisão preventiva deveria ser exceção, mas a gente vê que nesse processo foi a regra. Primeiro prende todo mundo, depois a gente vai ver quem é ou não o culpado nessa história.”

Segundo a advogada Cátia Kim, pesquisadora do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) que também atua como advogada em outros casos vinculados a Operação Anteros, cerca de 40 pessoas acusadas na operação ficaram sem defesa de dezembro a maio deste ano. Ao todo mais de 200 foram presas em regime preventivo. “Os advogados dativos (do convênio OAB/Defensoria) foram nomeados muito tarde, estamos em diálogo com a Defensoria Pública para ver a possibilidade da defesa ir acompanhando subsidiariamente esse processo por terem muitos acusados. Ainda não precisamos se há alguém ainda sem defesa”, declara.

Imagem da campanha campanha “Liberdade para Falilatou”, levantada por movimentos sociais

Segundo o advogado, o próprio delegado poderia ter comunicado às autoridades competentes, o Ministério Público ou o Judiciário, quando suspeitaram que a refugiada foi usada como laranja na organização criminosa. “Uma pessoa que estava sendo presa, dizendo que nada sabia sobre o que estava acontecendo e essa informação foi disponibilizada para as autoridades já no ato da prisão. Se não fossem os advogados, a família da Fali, o movimento criado em torno do caso, ela ainda estava presa preventivamente, infelizmente”, crítica. 

Outro ponto que prejudicou Fali foi a barreira linguística: ela não teve acesso a um intérprete ou tradução durante o processo e o Consulado de Togo não foi comunicado no dia da prisão, conforme determina a Lei nº 13.445/2017. Pela legislação brasileira e internacional, é determinado que em caso de detenção de imigrantes em vulnerabilidade deve haver notificação. 

Após a prisão preventiva de Fali ocorrida no dia 15 de dezembro o advogado entrou com um pedido de habeas corpus (HC) dois dias depois, sendo que já no dia 19 de dezembro o judiciário entraria em recesso. O esforço de início foi em vão, segundo ele, “porque a câmara do Tribunal de Justiça que julgou foi a Quarta Câmara, conhecida como a ‘câmara de gás’, é uma câmara que tende a sempre acompanhar a acusação.”

Em 21 de dezembro veio a decisão do juiz plantonista de que a prisão de Fali seria mantida. Foi então que o advogado de Fali entrou com um novo pedido de liberdade provisória na Vara de Martinópolis em 23 do mesmo mês. Em 11 de janeiro, a juíza Ivana David do TJSP reiterou a decisão emitida durante o plantão. 

Enquanto tentava novas formas de garantir a liberdade da refugiada, Vitor notou que a única conta não movimentada pelos criminosos era a conta verdadeira de Falilatou. “Essa conta do Itaú não tinha movimentação suspeitas, não estava vinculada a essa investigação, dessas quatro contas inclusive uma era de pessoa jurídica”. Então em 13 de fevereiro outro pedido de revogação da prisão preventiva foi feito juntando as novas provas da fraude no processo de origem, mas também negado dois dias depois. 

Segundo Vitor, abriram uma Micro Empresa Individual (MEI), no nome da ambulante e a única prova na denúncia, acompanhada dos registros das contas bancárias, era um formulário de abertura de conta, feito na Caixa Econômica. Ele teria sido o suposto formulário que Fali assinou para abrir uma conta para movimentar os valores. “Eu identifiquei uma assinatura neste formulário, perfeita, uma letra legível, letra cursiva e fui comparar com a assinatura e as informações que eu tinha de que ela era analfabeta, a assinatura dela era um um rabisco.”

A partir daí o advogado ligou os pontos. “Olhei a assinatura no documento de identidade dela, mesmo rabisco, a assinatura do contrato de aluguel dela, a mesma rasura e aí percebemos que não foi a Fali que abriu a conta. Alguém fraudou a abertura da conta, por isso que ela estava muito assustada, desconhecendo tudo que estava acontecendo com ela.” Ele então solicitou a documentação no Banco Itaú para demonstrar as diferenças entre as assinaturas. 

Acima a assinatura falsificada, abaixo a assinatura original de Falilatou | Foto: Arquivo processual

Ainda assim, o argumento não foi suficiente para o judiciário liberar Fali. “Foram reiterados pedidos no primeiro grau, que é na segunda vara criminal de Martinópolis, mas pela quantidade de processos, os pedidos no 1º grau não eram apreciados pelo juiz individualmente, não tínhamos uma decisão em que o juiz respondia ao nosso argumento.”

Diante das negativas, o advogado que já trabalhava em conjunto com outros defensores provocou o Tribunal de Justiça de SP com um pedido de habeas corpus. “Para nós sempre foi muito evidente que ela foi vítima de uma grande confusão e ela mesma a vítima dessa organização criminosa. Mas demoraram seis meses. Foi a muito custo que houve esse movimento do juiz de 1ª instância. Houve, inclusive, despachos de vereadores, diretos com o juiz, para que ele desse uma atenção para o caso.”

Até março deste ano, quatro petições com pedidos de liberdade foram rejeitadas pelos juízes da 1ª instância, com isso a defesa recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). No dia 12 daquele mês, o Ministro Sebastião Reis negou novamente o pedido de liberdade de Fali. Nesse momento os pedidos já corriam na Comarca de Martinópolis, no TJSP e no STJ, todos rejeitados até maio, quando o Juiz Alessandro de Corrêa Leite, da Comarca de Martinópolis também renovou a prisão preventiva de Falilatou e outros réus. 

Em 11 de junho de 2021 uma nova decisão do Ministro Sebastião Reis do STJ reverteu a primeira decisão de indeferimento liminar e concedeu o habeas corpus para Falilatou, argumentando estar evidenciado que a sua “participação” era de menor relevância na organização, além de apontar a ausência de referência ao uso de violência e a impossibilidade de continuar a prática criminosa com as contas bancárias bloqueadas. A decisão foi seguida pelo juiz Alessandro Correa Leite da Comarca de Martinópolis.

Com isso, a prisão preventiva de Falilatou foi revogada e substituída por outras medidas cautelares, como conta Vitor. “O juiz substituiu a prisão por outras medidas cautelares, então a Fali não está livre desimpedida para fazer o que quiser, até porque ela responde a esse processo criminal, não foi absolvida. Foi determinada a entrega do passaporte, o recolhimento domiciliar no período noturno e que ela mantenha o endereço atualizado e compareça mensalmente ao Fórum Criminal da Barra Funda”.

Sem a absolvição de Fali, a condição ainda é de insegurança, segundo Vitor. Nós temos já um grande apoio da sociedade civil, dos movimentos sociais de mandatos de parlamentares, mas ao mesmo tempo a possibilidade do retrocesso existe e a gente tem que tomar muito cuidado”, diz. 

Ainda assim, em 18 de junho a Subprocuradora-Geral da República Solange Mendes de Souza, o Ministério Público Federal (MPF) questionou com um agravo a decisão liminar do Ministro Sebastião Reis que concedeu a liberdade à Falilatou para que haja uma decisão colegiada do STJ sobre o entendimento do caso. Somente 11 meses depois de ser presa, Fali será ouvida pelo judiciário em uma audiência programada para acontecer no dia 12 de novembro deste ano.

Ainda que tenha passado por tantas dificuldades, a refugiada não pensa em sair do Brasil quando for permitido. “Vou ficar aqui mesmo, não vou embora, eu gostei do Brasil. Tenho que limpar meu nome, mostrar que sou inocente, eles têm que investigar, saber quem roubou minha identidade, pra eu ficar livre. Não tenho mais conta, não posso fazer nada com o meu documento, porque meu nome está sujo. Eu quero trazer meu filho para cá, estou pedindo ajuda porque não posso sair.” 

Outro lado

A reportagem questionou o promotor de Justiça Daniel Tadeu dos Santos Mano do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) que denunciou Falilatou sobre as provas levantadas pela defesa, como o fato de que não havia nenhuma movimentação suspeita na conta oficial de Falilatou, bem como o fato de que a refugiada não sabia ler e escrever a sua própria assinatura, diferentemente da que estava colocada em um dos documentos de abertura de conta falsa. A Ponte também solicitou uma entrevista com o promotor.

Em nota, ele se referiu a Operação Anteros e afirmou que no âmbito da operação, o Ministério Público denunciou 210 pessoas pelos crimes de organização criminosa, estelionato, extorsão e lavagem de dinheiro. “A denúncia decorreu de extensa investigação (com inúmeros elementos probatórios) conduzida pela Polícia Civil (Deic de Presidente Prudente/SP). A denúncia, que observou o disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, já foi recebida pela Justiça. Segundo as investigações, os acusados praticavam verdadeiro ‘estelionato sentimental'”. 

Segundo o promotor, estima-se que aproximadamente 2.000 pessoas foram prejudicadas pela organização criminosa, que obteve cerca de R$ 100 milhões com o golpe. 

“Ressalte-se, ainda, que, no transcorrer do processo, todos os acusados terão oportunidade de se defender, apresentando suas versões e provas. Além disso, nos termos do artigo 193 do Código de Processo Penal, quando o interrogando não falar a língua nacional, o interrogatório será feito por meio de intérprete, complementa a nota.

A Ponte indagou a Subprocuradora-Geral da República Solange Mendes de Souza do MPF sobre as razões do agravo apresentado à decisão do Ministro Sebastião Reis que concedeu a liberdade à Falilatou e aguarda respostas. 

A reportagem também tentou pedir um posicionamento do juiz Alessandro de Corrêa Leite da 1ª Vara Judicial de Martinópolis e da juíza Ivana David por meio da assessoria de imprensa do TJSP sobre a ausência de audiência de custódia e do agendamento tardio para a audiência de julgamento. O TJSP disse que “os magistrados não se manifestam sobre processos em andamento, de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura”. 

O STJ disse que “o Ministério Público interpôs recurso solicitando a reconsideração, ou, se o ministro não entender pela reforma da decisão, que os autos sejam enviados para análise do órgão colegiado, no caso, a Sexta Turma do STJ.” E que “não há data marcada para a decisão do ministro”.

A reportagem ainda buscou a Polícia Civil de Presidente Prudente, responsável pela operação, e pediu informações sobre os indícios de que Falilatou havia cometido os crimes incluídos na denúncia. A Polícia Civil, por meio da Divisão Especializada de Investigações Criminais (Deic) de Presidente Prudente, disse que formou, ao longo da investigação, “um robusto conjunto probatório, com imagens de câmeras de monitoramento, depoimentos de vítimas e testemunhas, informações telefônicas e bancárias de envolvidos – todas devidamente autorizadas – que foi encaminhado ao Poder Judiciário quando o referido inquérito foi concluído.”

Ao todo, 122 pessoas foram presas na operação e respondem por extorsão e estelionato, disse a corporação. “Em relação aos estrangeiros envolvidos no caso, a autoridade policial comunicou os respectivos consulados para a apresentação de intérpretes, e todos foram interrogados em português e no seu idioma de origem. Até o momento, o IP [Inquérito Policial] não retornou ao distrito policial para cumprimento de investigações complementares.”

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