Documentário conta histórias de mulheres negras analfabetas na Bahia

    Diário de Classe, que estreia nos cinemas nesta quinta (7/3), retrata a invisibilização de mulheres negras na educação e mostra como machismo, racismo e transfobia contribuem para a perpetuação desse cenário

    Maria José, empregada doméstica e personagem do documentário, na aula com sua filha Dandara no colo | Foto: Divulgação

    Como o machismo, racismo e transfobia afeta a educação de mulheres negras. Este é um dos temas centrais do documentário Diários de Classe, que estreia nos cinemas na quinta-feira (7/3) e é o longa metragem documental dirigido por Maria Carolina da Silva e Igor Souza (veja locais e horários aqui). O longa discute a educação de mulheres invisibilizadas pela sociedade a partir da história de três mulheres negras na cidade de Salvador: Tifany, Maria José e Vânia. Elas estão conectadas não só pela cor da pele e pela classe social, mas também pela questão do analfabestismo.

    Maria José é síndica do Conjunto Habitacional 27 de abril – construído devido a organização do sindicato das empregadas domésticas. Enquanto aguarda o funcionamento da creche construída no conjunto pelo Governo da Bahia, a pequena Dandara, sua filha, vai com ela todas as noites para a escola. Em entrevista à Ponte, ela afirmou, convicta, que o fato de ter entrado no movimento de empregadas domésticas mudou sua vida, assim como o retorno à escola. “Se não fosse isso, não estaria contando minha história”, declarou orgulhosa.

    Ainda criança, Maria saiu de Cachoeira, cidade no interior da Bahia, e foi morar com uma outra família em Salvador. Eles lhe tratavam como uma escrava, conta. Decidiu fugir anos depois para morar na rua, até conhecer uma mulher que a chamou para morar com ela. Ao conhecer uma professora, ficou cativada pelos estudos e resolveu dedicar-se a eles, o que não pôde fazer quando era mais jovem. “Com o filme, posso levar o que a gente sente, o que a gente passa”, conta Maria José, sobre sua participação no documentário. Ainda segundo ela, quem está fora não conhece sua realidade e de mulheres parecidas consigo, para ela, uma realidade “cruel”.

    Assim como Maria José, Vânia Costa mudou-se para Salvador ainda pequena. Ela participava das aulas no Centro Penitenciário Feminino, no qual ficou detida durante cinco meses acusada por tráfico de drogas. Mãe de três filhos, a mulher frequentou os antigos primeiro e segundo grau, mas ainda é analfabeta. “As aulas no presídio eram bem legais. A professora, muito amorosa, cuidadosa”, disse. A Justiça declarou Vânia inocente do crime, decisão que não melhorou 100% a sua vida.

    “Eu fui inocentada né, a juíza me declarou inocente esse ano agora, de tudo que eu fui acusada. Em compensação, continuo desempregada, meu nome continua na internet e isso me prejudica muito, ninguém quer dar trabalho pra uma ex-presidiária. Então, eu continuo sem ter um trabalho fixo, automaticamente como eu pago aluguel, fica difícil pagar o aluguel também, porque os proprietários não ficam esperando eu conseguir o dinheiro. É muito difícil. Ultimamente eu estava catando papelão para conseguir me sustentar”, conta. “Tem aquele lado bom, né?! Pelo menos eu estou livre, viva, estou em pé, graças a Deus. Frequento uma igreja, me converti”, continua, explicando o que a fez participar do documentário. “Se botam a minha cara lá na televisão sem pedir a minha permissão, presa por algo que fui inocentada, porque não permitir pra uma coisa legal?”, pergunta.

    Sala de aula no Centro Penitenciário Feminino, em Salvador | Foto: Divulgação

    Tifany Moura é outra personagem do documentário. Uma adolescente transexual que mora no abrigo Lar Pérolas de Cristo e estuda no subúrbio ferroviário da capital baiana. Com desenvoltura, ela narra ao longo de sua participação como foi o processo de aceitação e sobre como a transfobia, inclusive dentro de casa: por parte de seu irmão e do marido da diretora na antiga escola em que estudava. Essas perseguições a fizeram deixar os estudos e ir morar no abrigo para fugir dessa situação.

    Diário de uma classe invisibilizada

    Diário de classe é o nome dado à caderneta onde as professoras e professores fazem a chamada e anotações sobre os alunos. “Escolhemos colocar no plural para contar a história dessas pessoas que frequentam a sala de aula”, explicam Maria Carolina e Igor, em entrevista por e-mail assinado por ambos. A palavra ‘classe’ no título foi considerada com um sentido mais amplo pela dupla. “É como turma e classe como posição na sociedade. Afinal, é uma classe social que é analfabeta, uma classe que sofre até hoje as consequências do racismo estrutural da sociedade brasileira. Não temos analfabetos nas classes com maior poder aquisitivo”, pontuaram os diretores.

    A ideia para a produção surgiu a partir de uma inquietação dos diretores quanto à população analfabeta e sua invisibilização, ainda mais acentuada quando na periferia. O documentário foi iniciado em 2016, como um projeto para a faculdade: “passamos cerca de 8 meses no processo de captação de imagens e mais 7 meses na ilha de edição”, contaram.

    Para eles, o documentário os fez refletir acerca de diversas questões, como a situação das mulheres encarceradas, o racismo a que as empregados domésticas são submetidas nas relações com seus empregadores e os desafios que pessoas trans enfrentam para serem aceitas e respeitadas. “Mas ao mesmo tempo estar nas salas de aula e ver esses jovens e adultos que não frequentaram a escola quando crianças e professores tão comprometidos com a docência, nos trouxe energia para tentar levar essa discussão para as telas”, explicaram.

    Para chegar às personagens, os diretores contaram com o auxílio de professores e professoras. “Quando iniciamos as pesquisas as escolas de EJA (educação de jovens e adultos) estavam em greve juntamente com toda a rede municipal de Salvador”, dizem. “Passamos a frequentar as assembleias de professores e conhecer coordenadores que nos indicaram escolas onde poderíamos encontrar personagens dentro do nosso recorte, que era trabalhar as questões de raça, classe e gênero. Foi então que chegamos às 3 escolas”.

    Ao tratarem de educação no filme, mais precisamente o analfabetismo, Maria Carolina e Igor quiseram chamar a atenção para uma sociedade marcada pelo racismo, machismo e pela transfobia. “Queremos trazer essa reflexão de que as coisas não estão separadas, que é preciso nos engajarmos cotidianamente na mudança dessas estatísticas. Com o filme queremos debater isso a partir da sala de aula, com a orientação dos professores, classe agredida e desvalorizada que sofre ataques severos às suas autonomias como profissionais, essa sala de aula que querem imobilizar, esvaziar, pois não nos querem reunidos, trocando ideias e nos fortalecendo juntos”, concluíram.

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