Dois anos depois, a luta de um pai pela honra do filho morto

    Uma amiga me disse certa vez que, para ela, felicidade era ser enterrada pelos filhos quando morrer. Acho que esse conceito também serve para mim e para muita gente. A tristeza incomensurável da família que perdeu seu filho de 20 anos de idade acompanha todos os instantes do documentário Quando eu me Chamar Saudade, de Renan Xavier, Lailson Nascimento e Daniel Santos.

    Na cena inicial, eu tive que dar uma pausa no vídeo para retomar o fôlego. Graça, mãe de César, morto em julho de 2012, se lembrava da última vez em que o viu com vida. César estava “mais bonito do que nunca”, tinha algo especial e diferente, que ela não consegue explicar. Talvez especial fosse sua lembrança, o último flash da memória de alguém amado visceralmente, visto instantes antes de sair de casa na noite de sua morte.

    A morte de Cesar e de Ricardo ocorreu há exatos dois anos, em 1º de julho de 2012, quando os dois voltavam em uma moto depois de retocarem suas tatuagens na casa de um primo. No caminho, eles se depararam com policiais que os confundiram com traficantes. Foi chamado reforço e os dois acabaram executados. Seria mais um entre tantos casos em que as vítimas são apontadas como culpadas, antes do inquérito ser arquivado como resistência seguida de morte. Nesses casos, além da desgraça da morte de um filho, outro assassinato ocorre: o da honra dos familiares, acusados de colocarem um bandido no mundo.

    Daniel Eustáquio de Oliveira
    Daniel Eustáquio de Oliveira

    Só que dessa vez havia um tal de Daniel Eustáquio, pai de César, herói anônimo da cidade. Em nenhum momento ele acreditou na versão oficial. Lembrou do nascimento de César, da educação que o filho recebeu, de seu jeito, rotina e amizades. Estava convicto e, sem ter tempo de encarar o luto, foi visitar a cena do crime poucas horas depois. “O senhor é o pai do meliante?”, ouviu ao chegar. Viu o teatro sendo montado pelos policiais. Identificou as falhas e as contradições. Para suportar viver, só lhe restava a luta para provar as autoridades mentiam sobre César e de Ricardo.

    Começaram os piores 27 dias de sua vida. Desacreditado pela polícia, caçoado quando afirmava a inocência dos garotos, foi colhendo provas e testemunhos. Não teve tempo para chorar. Um desses testemunhos, mostrado no documentário, é surpreendente. Trata-se de um suspeito que acompanhava os policiais na hora da perseguição.

    A testemunha era usuária de drogas e viu tudo. Quando soube que os jovens mortos estavam sendo acusados injustamente, decidiu revelar a farsa. Mesmo sabendo que colocava sua vida em risco. O documentário mostra a saga do pai na busca de provas. Investigadores do DHPP se sensibilizaram com a persistência do pai e passaram a lhe dar ouvidos. As peças começaram a se encaixar. Os cinco policiais foram presos em agosto e agora aguardam julgamento.

    Mesmo tendo sido bem sucedido, Daniel às vezes parece ter dificuldades em segurar a barra. Escreve com frequência em memória de seu filho no facebook, cuja página permanece ativa. Ele também tatuou o rosto de César no braço e o chama de herói por não ter sucumbido à violência. Foi vítima da violência, mas nunca a usou, diz Daniel, com o orgulho de quem se tornou um pacifista convicto, militando e sofrendo quase solitariamente sempre que vê alguém sendo vítima das autoridades. Ele é um dos apoiadores da Ponte.org.

    Quando eu o entrevistei, há dois anos, escrevi o texto em prantos. Também fiquei muito emocionado vendo o filme, uma das histórias que mais me marcaram como repórter. Na reunião de pauta da Ponte, na semana passada, meu parceiro no coletivo, André Caramante, também precisou engolir a seco ao falar dos posts de Daniel falando das saudades que sentia do filho. Foram segundos comoventes de silêncio.

    Que a história de amor e de dignidade da família de César e de Ricardo nos ajudem a refletir melhor e a lutar para trazer mais paz para nossa cidade. Que surjam mais heróis, como Daniel Eustáquio, para lutar pela paz. Em vez de falsos heróis truculentos, como alguns policiais de história em quadrinho, que parecem crer na falácia de que a guerra contra bandidos pode nos chegar a uma sociedade mais justa.

     

    Documentário: Quando eu me Chamar Saudade

    De: Renan Xavier

    Duração: 25 min

     

    Documentário completo:

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    1 Comentário
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários
    daniel
    daniel
    9 anos atrás

    Amigo Luiz Paulo Santana, eu tenho certeza que qualquer pai que conhece bem seu filho faria o que fiz……….E espero sim que com meu exewmplo mais pessoas corram atras da verdade, pois se agirmos assim o governo e a policia começa a pensar melhor.

    mais lidas