Bispo emérito conta que para além da luta contra a ditadura militar, D. Paulo Evaristo Arns foi fundamental na formação das comunidades eclesiais de base em São Paulo, que trouxe conquistas importantes para a periferia
“Conta a história que havia um homem que queria ser feliz. Certa vez, disseram para ele que teria que encontrar no mundo alguém feliz e vestir a camisa dessa pessoa. Dessa forma, encontraria a felicidade. E ele saiu, peregrinou, foi para o palácio dos reis.
‘O senhor é feliz?’. ‘Estou preocupado. Tem inimigos na fronteira’. Foi para outros lugares, perguntou ao banqueiro: ‘O senhor é feliz?’. ‘Olha, a bolsa não está muito boa. Está oscilante’. Até que ele foi ao campo e encontrou um homem, cultivando as plantas. Cantava que era uma beleza. ‘Com licença, o senhor é feliz?’. ‘Plenamente feliz’. ‘Mas o senhor é feliz mesmo?’. ‘O senhor não imagina! Eu sou muito feliz’. O homem infeliz pediu ao homem feliz que emprestasse a camisa dele: ‘Lamento, mas eu não tenho camisa’, disse o homem feliz”.
Foi assim que o bispo emérito da igreja católica de Blumenau, Dom Angélico, recebeu a Ponte Jornalismo na pequena cozinha da casa onde ele vive, no Jardim Primavera, região da Brasilândia, na zona norte de São Paulo. Com café, chá e bolo, foi também começando a contar sobre a personalidade simples e aguerrida de D. Paulo Evaristo Arns.
“Estamos vivendo um momento de muita confusão. E a crise não é só política, econômica e também não se restringe ao Brasil. É uma crise mundial e de valores, referências. A voz de D. Paulo clama por paz, por entendimento, por um diálogo maduro para que haja realmente uma preocupação daqueles que detém o poder, seja o poder político, judiciário, de qualquer ordem, para que se voltem para o povo”, analisa.
Angélico e D. Paulo se conheceram nos anos 70, em pleno regime militar: “Quando cheguei a São Paulo me defrontei com aquele cardeal de cabeça erguida, era D. Paulo, cheio de misericórdia, alegria e um lutador pelos direitos humanos, pela dignidade da pessoa humana. E vendo tanta gente sendo encarcerada, torturada injustamente ele foi realmente uma voz profética”, disse ao relembrar que D. Paulo havia vendido o palácio episcopal da Igreja, onde, por direito, poderia viver, para destinar a verba para terrenos para construção de moradias populares na periferia de São Paulo.
Por ter formação jornalística, D. Paulo determinou que D. Angélico assumisse a direção da publicação da arquidiocese O São Paulo, um jornal que dava voz aos esquecidos pelo sistema e também representou uma resistência contra as torturas que aconteciam nos porões da ditadura: “Fomos censurados diversas vezes. Mas a grande verdade é que o próprio regime começou a ter certo cuidado conosco. Também D. Paulo Evaristo, com a projeção que tinha na América Latina e no Brasil todo, foi um tanto respeitado nesse sentido”.
D. Paulo ficou bastante conhecido pelo trabalho que denunciou as violações de direitos humanos pelos militares após o Golpe de 64 e que, inclusive, resultou na publicação do livro “Brasil: Nunca Mais”. Mas muito além disso, como cardeal, foi uma figura fundamental ao lado de D. Angélico para a formação das comunidades eclesiais de base no final dos anos 70.
“Eu tinha assumido a região de São Miguel Paulista e começamos a nos organizar a partir de determinadas bandeiras para clamar por algumas necessidades básicas, como moradia, saúde, educação. E conquistamos , de fato, muita coisa. O povo organizado e consciente, em cima de determinadas bandeiras, sai vencedor”, explica.
Para ele, D. Paulo vivia plenamente o evangelho: “Ele era um sacerdote do povo, apaixonado por Jesus, que viveu para o povo, para levar a palavra. Não se acomodou em uma burguesia de vida. Combatia as injustiças e sempre do lado certo da história, o do povo”.
As comunidades eclesiais de base ainda existem na Igreja, mas perderam a força nas duas últimas décadas. Segundo D. Angélico, além de um sinal dos tempos egoístas, houve pressão dentro da própria Igreja: “Tem gente de uma direitona dentro da própria Igreja, de um conservadorismo muito grande, que começou a ver o trabalho das comunidades eclesiais de base como comunista. Essa crítica chegou a cúria romana e recebemos uma alerta. E aí muita gente começou a colocar o pé no breque. Mas o legado de D. Paulo está aí também: em se unir ao povo, resistir e sempre estar ao lado dos deserdados do sistema. Meu grande amigo, Dom Aloísio Lorscheider, que já tá no céu, dizia: ‘Não é capitalismo é capetalismo, porque divide as pessoas”.