Doria tenta se desvincular de mortes e abusos da polícia, avaliam movimentos sociais

    Governador de SP anunciou retreinamento de policiais. “O ‘coronatiro’ é o vírus mais letal”, critica Debora Silva, das Mães de Maio, cética sobre a iniciativa

    Policiais sufocaram jovem negro durante abordagem em Carapicuíba, no domingo (21/6) | Foto: reprodução

    O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), determinou nesta segunda-feira (22/6) o retreinamento dos policiais militares do estado. Pressionado pelos recentes casos de violência policial, o tucano anunciou a proposta para coibir violências por parte dos policiais, mas não explicou a forma como será feita a ação. Movimentos sociais consideram que a ação de nada valerá se eles não participarem do debate.

    Em coletiva de imprensa, Doria explicou que as ações serão tomadas em julho. Contudo, não detalhou o formato do ensino, se presencial ou online, quais as práticas serão revistas, nem quais os conteúdos abordados nos novos treinamentos. A Ponte apurou que os cursos serão via EAD (Ensino a Distância).

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    Os números da letalidade policial batem recorde em 2020. O primeiro trimestre do ano é o mais letal de toda a série histórica levantada pela SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo), com 255 mortes. Houve aumento de 23,2% em comparação ao mesmo período de 2019, quando 207 pessoas foram mortas por policiais em serviço ou de folga.

    Em sua fala, Doria detalha que a ação pretende “mostrar que esse 1% dos maus policiais que insistem em usar a violência desnecessária contra a população, que isso não é aceitável”, afirma.

    Em apenas uma semana, policiais militares se envolveram no sequestro e morte de Guilherme; agrediram uma família, deixando dois irmãos negros feridos com balas de borracha; e sufocaram um homem até ele desmaiar.

    No dia 13 de junho, PMs agrediram um rapaz durante uma abordagem no Jaçanã, zona norte de SP. A ação foi gravada e viralizou nas redes sociais.

    No vídeo, é possível ouvir um dos policiais ameaçando moradores. “Vou quebrar todo mundo”.

    Secretário-executivo da PM, o coronel Álvaro Camilo detalhou que serão treinados primeiro os oficiais, majores e capitães. Depois, o restante da tropa. “A ideia é que em 20 dias chegue na ponta da linha”, diz.

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    Camilo citou a intenção de colocar câmeras nos uniformes dos PMs para diminuir os abusos. Essa promessa vem desde antes do governo Doria. Fala-se da adoção de câmeras desde 2017, como revelado pela Ponte, e a ideia ainda não saiu do papel. Doria já havia sinalizado favoravelmente a instalar câmeras para registrar todas as ocorrências. Até o momento, isso não acontece em SP.

    Em contrapartida, o programa Olho de Águia registra imagens de manifestantes nas ruas e as filmagens são guardadas de forma sigilosa pelo estado. O conteúdo das gravações é secreto e não compartilhado com a sociedade.

    “Quer ver um PM travar? Pergunte o que é atitude suspeita”

    A Ponte conversou com um policial militar da ativa sob a condição de anonimato a respeito dos treinamentos feitos na corporação. Segundo ele, o retreinamento é realizado anualmente, com materiais vistos em média uma vez por mês. “O que ele chama de treinamento são vídeos EAD que já assistimos todo ano”, explica.

    Segundo este policial, o conteúdo é atualizado de um ano para o outro, mas “um PM estuda, pega as questões e passa a todos os outros para ninguém ficar ‘perdendo tempo’. É como reagem”, detalha.

    Alguns dos cursos existentes na plataforma online da corporação envolvem orientações gerais de atuação e módulos específicos para cada classe na PM, como um para oficiais, outro de subtenentes e sargentos e um material exclusivo para cabos e soldados.

    O governador João Doria não explicou como funcionará este retreinamento anunciado em coletiva de imprensa, se será via EAD ou com aulas presenciais em meio à pandemia de coronavírus.

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    A reportagem apurou que o governador ordenou a produção de novos conteúdos para o retreinamento já nesta terça-feira (23/6), sendo que ainda não há aulas montadas, segundo policial ligado à Diretoria de Ensino e Cultura.

    “A PM dá um curso bem superficial, que é um pequeno treinamento de conceitos básicos, não tem processo de requalificação”, afirma. “Você quer ver um policial travar? Peça pra definir o que é atitude suspeita”, sugere.

    Previsão de nenhuma mudança

    Movimentos sociais consultados pela Ponte consideram que a ação de Doria é uma “maquiagem” e não será efetiva para acabar com a letalidade e violência da polícia.

    Debora Maria da Silva, fundadora do movimento independente Mães de Maio, vê como impossível uma mudança sem que a sociedade e as mães tenham voz ativa. “A fala dele de retreinar… Tinha que humanizar os policiais. Se é que isso a gente ainda consegue. Está tudo contaminado”, afirma.

    Debora perdeu o filho, Edson Rogério, na resposta sangrenta do Estado aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) em maio de 2006, ação conhecida como Crimes de Maio. Mais de 500 pessoas foram mortas.

    Segundo ela, Doria autorizou as violações e aumento da letalidade ao dizer que, em seu governo, bandido que reagir iria “para o cemitério”. “Os policiais estão fazendo o papel de inquisidores, condenando jovens da periferia à pena de morte. Falamos que o ‘coronatiro’ é o vírus mais letal, mata mais do que a pandemia”, lamenta.

    Débora Silva, das Mães de Maio, em homenagem em maio de 2019 | Foto: Bianca Moreira/Conectas

    Integrante da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, a advogada Débora Roque classifica a proposta como uma tentativa do governo se desvincular das ações truculentas.

    “É uma medida simbólica para tentar mostrar à sociedade que o governo não compactua, enquanto, na verdade, não quer discutir a estrutura da polícia violenta que temos. E que não é de agora, é de muito tempo”, analisa.

    A ativista cita a desmilitarização da Polícia Militar como uma das demandas mais importantes para mudar a atual lógica da corporação. Ainda critica o fato de haver apenas o discurso e nenhuma demonstração de como funcionará este retreinamento.

    Leia também: Declarações de Doria ‘contribuem para o aumento da letalidade policial’

    “Entendemos que não é um problema que vai ser solucionado com uma fala em uma coletiva. Tem que ter, em primeiro lugar, o Estado assumindo a polícia violenta que ele tem. E não fazem nem isso”, diz.

    O professor da Fundação Getúlio Vargas e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani considera “produtiva” a iniciativa de retreinar os policiais. No entanto, questiona a eficiência dessa requalificação.

    “Meu temor é que seja um esforço tênue nos problemas de cultura que a Polícia Militar tem. Do meu ponto de vista, precisamos de uma reforma da mentalidade dos policiais”, avalia.

    Alcadipani prossegue explicando que é preciso um trabalho de anos para chegar a essa mudança, sem efeito real com apenas um treinamento. Ainda pontua o momento no qual a ação é tomada.

    “Precisa ser pensado é até que ponto esses treinamentos são coisas bem vindas nesse momento de coronavírus. Os policiais têm que tomar muito cuidado para não se contaminarem”, detalha.

    Construa a Ponte!

    Para o representante do Fórum Brasileiro, há brechas nas falas sobre uso de câmeras com todos os policiais. “Não sabemos até que ponto será implementado, principalmente em um momento de restrição orçamentária. Segundo, a literatura não diz que tendo câmeras se reduz a violência policial. Os estudos são inconclusivos”, pontua.

    A Ponte solicitou à Ouvidoria da Polícia, comandada por Elizeu Soares Lopes, como ele avalia a iniciativa de João Doria e aguarda um posicionamento.

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