Dos ‘carandirus’ ao cotidiano das periferias, os massacres continuam

    Mães de jovens perseguidos e mortos no período democrático protestam contra a anulação do julgamento do Carandiru e afirmam que vão recorrer da decisão

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    Integrantes dos movimentos Mães de Maio, Mães do Rio e Comitê de Mães e Pais em Luta discutem arbitrariedades do Estado brasileiro. Foto: Olegário A. Filho

    São Paulo, quinta-feira, 6 de outubro de 2016. Uma mesa de madeira é cercada por faixas, cartazes e camisetas, estampadas com retratos, imagens de aniversários e abraços que viraram memória de um passado que se arrasta e impede a conjugação de qualquer presente. Aos poucos, mulheres tomam seus lugares, quase todas vestidas pelos rostos daqueles que, um dia, carregaram em seus braços.

    24 anos antes, a Polícia Militar de São Paulo matou, segundo dados oficiais, 111 pessoas naquele que foi o maior complexo penitenciário da América Latina. Dez anos antes, 564 pessoas – 505 civis e 59 agentes públicos – foram assassinadas no Estado de São Paulo, em uma das retaliações mais sangrentas do período democrático no país – os Crimes de Maio de 2006.

    Dez dias antes, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de São Paulo, sob o argumento de “legítima defesa”, anulou os julgamentos que condenavam 74 policiais militares pelas 111 mortes que marcaram o Massacre do Carandiru“Legítima defesa é o que estamos fazendo aqui agora. Legítima defesa é o que fazem as mães que jamais abaixaram a cabeça para o Estado que aperta o gatilho todos os dias contra seus filhos”, diz a mediadora Regina, dando início à coletiva de imprensa que, em São Paulo, reuniu mães cujos filhos foram mortos ou perseguidos por um Estado oficialmente democrático.

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    “Os massacres saíram de dentro dos carandirus e passaram para o cotidiano das periferias e favelas. O Judiciário não é um deus. A caixa preta do Judiciário tem que ser violada. Já passou da hora, precisamos de respostas sobre o que aconteceu em chacinas como a do Carandiru, que só não prescreveu pela coragem dessas mães”, diz Débora Maria da Silva, que descobriu por um programa televisivo que havia se tornado órfã do filho, Edson Rogério da Silva, de 29 anos, morto na Baixada Santista após ser abordado por policiais, em 15 de Maio de 2006.

    Com a morte de Edson, Débora deu à luz o Movimento Independente Mães de Maio, que reúne mães e familiares de vítimas que buscam investigações e respostas sobre os assassinatos durante os Crimes de Maio. Vera Lúcia dos Santos é uma dessas mães: no mesmo dia em que Débora perdeu o filho, ela perdeu o genro, a filha Ana Paula e a neta que sequer havia nascido. Ao sair para comprar leite, acompanhada pelo marido, em Santos, Ana Paula, grávida, foi assassinada por homens encapuzados, às vésperas de seu parto.

    Na busca por investigações que não aconteciam, Vera foi ameaçada de morte inúmeras vezes e permaneceu presa por três anos e dois meses, acusada de tráfico de drogas. “Nesses 10 anos, a gente só vê mais menino caindo. Não conseguimos parar esses policiais. Eles não vão presos. Está me cansando, porque estou vendo que a nossa luta está sendo em vão”, desabafa Vera, que diz ter passado os últimos quatro dias deitada na cama.

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    Ultrassom de Bianca, que do mundo fora da barriga da mãe só conheceu a frieza da bala que matou a mãe Ana Paula durante os Crimes de Maio. Foto: Olegário A. Filho

    “Quando não tiver mais pobre pra matar, vai ser a vez dos ricos. Só que as mães que lutam hoje pelos filhos delas talvez não estejam mais vivas pra lutar pelo filho de vocês”, afirma Vera. Ela critica a cobertura jornalística sobre execuções que não cessaram em Maio de 2006: “Quando um moleque morre, a própria mídia fala que era bandido. Quando três meninos morrem juntos, falam que foi briga do tráfico e acerto de contas. Precisa investigar primeiro antes de escrever”, diz ela aos jornalistas.

    Foi o que aconteceu com Ana Paula de Oliveira, que perdeu o filho Johnatha de Oliveira em 14 de maio de 2014, quando o jovem, aos 19 anos, foi alvejado nas costas por um PM na Favela de Manguinhos, na zona norte do Rio de Janeiro. Além da dor do luto, Ana Paula teve de lidar com acusações de policiais de que seu filho havia atirado contra a sede da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da comunidade onde mora sua família.

    “Não só o policial que atira é o assassino e tem as mãos sujas com o sangue dos nossos filhos. Mas todo o Judiciário e essa mídia que costuma criminalizar as vítimas faveladas e periféricas. No dia do enterro, vi passar na mídia que o Johnatha tinha trocado tiros. Foi como se eles tivessem, mais uma vez, matando o meu filho”, diz Ana Paula, emocionada.

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    Como ela, Glaucia integra o movimento Mães do Rio. Moradora da favela do Complexo do Chapadão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, ela perdeu o filho que, aos 17 anos, foi morto na noite de 31 de dezembro, ao sair para calibrar o pneu da moto. “O policial nem saiu de dentro da viatura e atirou. Ali meu mundo se acabou. Fiquei doente, não tinha força nem conhecimento pra nada. Dois anos depois, em Janeiro desse ano, encontrei essas mães. Aí eu encontrei minha família”, diz Gláucia.

    As execuções não cessaram em Maio de 2006, as datas se multiplicam e, hoje, mancham os calendários de periferias de várias cidades brasileiras: em Salvador, PMs executaram sumariamente 12 jovens negros, em fevereiro de 2015, no episódio que ficou marcado como Chacina do Cabula, bairro da capital baiana. Seis meses depois, foi a vez de Osasco, Carapicuíba, Itapevi e Barueri tomarem as manchetes com a chacina que matou 23 pessoas entre os dias 8 e 13 de agosto, na Região Metropolitana de São Paulo.

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    “Passou um ano e ninguém fala nada. Tem mãe morrendo em casa e ninguém se habilita a falar nada. Não atacam só negros. Basta o moleque vestir moletom, bermuda e chinelo que já é a marca da morte”, afirma Zilda Maria de Paula, de 63 anos, que, da porta de sua casa, viu o filho Fernando Luiz, abaixado com as mãos na cabeça, ser morto com um tiro, em 13 de agosto de 2015, em Osasco.


    Brasil tem quarta maior população carcerária do mundo

    Apesar de o Massacre do Carandiru ter sido destaque em manchetes pelo mundo, as prisões continuam superlotadas e a população carcerária cresceu no país desde então. Na noite de 2 de outubro de 1992, havia 7.257 internos no Carandiru, penitenciária cuja capacidade máxima era de 3.300 pessoas. Dos 111 mortos, 89 ainda aguardavam julgamento pelos crimes de que eram acusados.

    De acordo com a Pastoral Carcerária, havia 114 mil presos no Brasil em 1992. Hoje, o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, composta por 642 mil pessoas distribuídas pelas atuais 391 mil vagas, de acordo com o CNIEP (Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais), do Conselho Nacional de Justiça.

    As violações de direitos humanos nas prisões também continuam, segundo Railda Alves, fundadora da Amparar (Associação de familiares de presos e presas). “Quando nossos filhos são presos, somos tachadas de vagabundas que não souberam dar educação. As penas alternativas não são aplicadas pelo Judiciário porque é negro e favelado. A polícia está preparada, sim, pra matar pobre, negro e da periferia. A bala não é perdida. Eles sabem quem matam”, afirma ela, que também participou da coletiva.

    Integrante do Comitê de Mães e Pais em Luta, que denuncia abusos cometidos pela polícia contra estudantes secundaristas, Teresa Rocha critica a repressão do Estado contra estudantes secundaristas da rede estadual de São Paulo que ocuparam escolas em 2015, em protesto contra a reorganização escolar proposta pelo governo Alckmin. “Existe justiça? Para pobre, negro, é que ela não é. Para estudantes, ela não é. A polícia age com o aval do Estado brasileiro”, afirma Teresa, cujo filho chegou a ser revistado por policiais três vezes em um único dia após as ocupações. “Educação é prejuízo, dá gasto. O que gera grana é construir presídio, colocar na mão de grandes empresários e aprovar a lei da maioridade”, critica.

    Mãe de outro secundarista que, em 2015, ocupou a escola onde estudava e, há um mês, foi um dos 26 jovens detidos na Rua Vergueiro. quando se preparavam para um ato contra o governo de Michel Temer, Rosana Cunha também critica a repressão aos estudantes. “Meu filho foi um dos detidos na Rua Vergueiro. Ele não tinha mala, botaram uma barra de ferro numa mochila e falaram que era dele. Depois descobriram que tinha alguém da inteligência do Exército pra cuidar dos secundaristas. Que perigo eles oferecem?”, questiona.

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    Se, para os Crimes de Maio, só houve o silêncio institucional e, para o Massacre do Carandiru, a anulação do julgamento mais longo da história, Débora diz que as mães não vão se deixar intimidar e vão recorrer da decisão da Justiça junto com a Pastoral Carcerária. “A gente está lutando pela Justiça mesmo que a gente não confie nessa Justiça brasileira que tem dois pesos e duas medidas. Essa Justiça que é classista, racista e partidária. O Judiciário tem que dar resposta sobre quem matou os nossos filhos, e não dar carta branca pra matar. Estamos aqui hoje pra dizer ‘Carandiru nunca mais’”, afirma.

    Ao final da coletiva, os presentes preparam cartazes e faixas para o ato contra a anulação do julgamento do Carandiru. Antes de tomarem as ruas, mais uma vez, como fazem há dez anos, as mães recebem informações de que dois jovens haviam sido assassinados na Favela de Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro.

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    Durante o ato, Maria de Fátima dos Santos, a Fatinha, segura cartaz com foto do filho Leonardo dos Santos Silva, executado na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em abril de 2012. Foto: Olegário A. Filho


    Protesto contra a anulação do julgamento do Carandiru

    Cerca de 250 manifestantes, por volta das 19 horas, saíram da Praça Coronel Fernando Prestes, próximo à estação de metrô Tiradentes, ocupando uma das pistas e caminham até o Tribunal de Justiça, na região da Sé.  “Queremos jovens negros vivos, fim do genocídio!”, bradam, pedindo o fim da Polícia Militar. Um homem de blusa preta e boné roxo acompanha o ato, atento. É Cláudio Cruz, conhecido como Kric MC, ex-detento do Carandiru, onde permaneceu por 20 anos.

    Da noite do massacre, Kric lembra o barulho ensurdecedor dos policiais entrando no Pavilhão 9, batendo os cassetetes em seus escudos. “Não botamos a cabeça na janela com medo de levar tiro. Só viu o que aconteceu quem morreu”, conta ele, que estava no Pavilhão 8 quando tudo aconteceu.

    No dia seguinte, Cláudio ajudou a limpar o Pavilhão 9, devassado por corpos, sangue e sobreviventes em estado de choque. “A maioria deles era jovem. Quem sobreviveu estava com os olhos arregalados, alguns me perguntaram o que tinha acontecido. Como pode ser legítima defesa se ninguém estava armado?”, questiona o MC, que, depois da implosão do Carandiru, foi transferido para Araraquara.

    Para ele, o complexo do Carandiru se pulverizou e as execuções são, hoje, realidade fora dos presídios. “Na periferia, se juntar todo mundo que foi morto, passa de 111”, afirma o MC, que hoje, em liberdade, realiza saraus e grava o seu segundo CD.

    “Você acha que vai existir Justiça pra quem morreu preso? Se essa voz parar, vai ter outro [massacre] em breve”, diz ele, apontando para as mães à sua frente, que caminham acompanhadas por homens que já carregaram em seus ventres, mas cujos rostos hoje só podem ser vistos em fotos, cartazes e camisetas.

    Na porta do TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), o ato é encerrado.  “Nossos mortos têm voz. Eles não vão viver do nosso medo”, afirma Débora, olhando para o prédio do outro lado da rua, com o punho esquerdo erguido. A seus pés, velas acesas pelos manifestantes deixam o recado: “TJ de SP não esquecemos / 2.10.1992”.

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    Manifestantes acendem velas em frente ao Tribunal de Justiça, onde o ato foi encerrado. Foto: Olegário A. Filho

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