Dossiê reúne casos de violência policial e violações de direitos de LGBTs negros no Brasil

    Documento extenso traz o contexto histórico do país em relação à população LGBT+ negra, apontando as falhas do Estado em relação à segurança pública, educação e saúde; histórias de Verônica Bolina, Marielle Franco e Luana Barbosa foram lembradas

    Verônica Bolina, Marielle Franco e Luana Barbosa foram lembradas no dossiê | Fotos: reprodução

    Dossiê feito pelo Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos, em mais de 200 páginas, aponta a situação de direitos humanos da população LGBTI negra no Brasil. “Qual é a cor do invisível? A situação de direitos humanos da população LGBTI negra no Brasil” é uma investigação motivada pelas violações de direitos humanos enfrentadas pela população LGBT+ negra, principalmente pela população trans.

    Durante a live de lançamento do documento, em 6 de novembro, o diretor Executivo do Raça e Igualdade, Carlos Quesada, apontou que o objetivo do documento é “dar espaço as vozes que denunciam as violações da população LGBT+ negra ao Estado brasileiro”.

    Participaram do estudo instituições com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o Grupo Conexão G de Cidadania de Favelas, o Instituto Transformar Shélida Ayana e a Rede Afro LGBT (Rede Nacional de Negras e Negros LGBT). Além de reuniões com mais de 40 ativistas e 100 ativistas LGBTs espalhados de Brasília, Salvador, Rio de Janeiro.

    A pesquisa aponta que, em diversos segmentos da sociedade, pessoas LGBTs negras lutam pelo direito mais básico: o direito à vida. “É preciso reconhecer todas as dimensões das hierarquias sociorraciais no Brasil e admitir que elas determinam não somente as condições de vida como também as condições de morte. Há uma hierarquia entre a morte que é visível e a morte que não é”, afirmou Isaac Porto, advogado, autor do dossiê e integrante do Programa LGBTI do Raça e Igualdade no Brasil.

    A falha na produção de dados sobre a população LGBT+ negra, por parte do Estado, também foi destacada. “Ocorre que as organizações utilizam, sobretudo, notícias jornalísticas para a coleta de dados. A probabilidade de que o assassinato de um homem gay branco de classe média, morador de um bairro de elite, saia no jornal é muito maior do que o assassinato de uma pessoa LGBTI que não viva nos grandes centros urbanos e que esteja nas regiões mais afastadas. Com isso, quero dizer que existem lugares aos quais a mídia, por qualquer razão que seja, não chega”, explicou Porto.

    Dados da invisibilidade

    O dossiê também concentra dados importantes, levantados em sua maioria pela sociedade civil, para traçar um panorama brasileiro sobre pessoas LGBTs negras. Como a estimativa da população LGBT+ no país: sem a amostragem do censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que não incluí orientação sexual ou identidade de gênero, são instituições da sociedade civil que tentam suprir esse apagamento.

    Segundo o Grupo Gay da Bahia, aponta o dossiê, a estimativa é de que a população LGBT+ corresponde a pouco mais de 10% da população total (208.500.000 habitantes em 2018), cerca de 20 milhões de pessoas. A Antra estima que a população trans corresponda a 3,9 milhões de pessoas, sendo 2,3 milhões de travestis e mulheres transexuais e 1,7 milhões de homens trans e de transmasculinos.

    “Podemos entender a cisheteronormatividade como um regime político que atravessa as relações sociais, econômicas, jurídicas e políticas e que está ancorado numa ideologia que trata as diferenças na orientação sexual e na identidade de gênero como desigualdades naturais, ocultando o que ocorre no plano político, social, econômico e jurídico”, define o estudo.

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    Em sua fala durante o lançamento do documento, Gilmara Cunha, ativista transexual da Favela da Maré, foi enfática sobre importância do dossiê. Para a ativista, ele “dá visibilidade ao que é invisível no país e os nossos gestores, além de nos negar a nível nacional, também nos negam a nível territorial”.

    O dossiê ainda afirma que “o Estado é o principal agente violador de direitos humanos, e não o garantidor de direitos” para pessoas trans. A cisgeneridade, explica o documento, pode ser compreendida como um posicionamento político de silêncio diante das desigualdades entre pessoas cis e trans. “Estamos pleiteando a existência que nos é negada o tempo todo”, declarou Gilmara.

    As faces visíveis

    A história de Verônica Bolina, mulher trans negra, espancada e despida numa carceragem masculina, em 2015, é lembrada no estudo. “A violência cometida pela polícia de São Paulo contra Verônica Bolina revela o desinteresse absoluto do Movimento Social de Negras e Negros pelas vidas de travestis e mulheres transexuais”.

    “Apesar de toda a repercussão do caso, o Movimento Social de negras e Negros não se manifestou. Ficou em silêncio, como se o pertencimento racial de Verônica tivesse sido apagado por sua identidade de gênero”.

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    O documento resgata o pensamento da professora Fátima Lima, da Universidade Federal da Bahia, para quem o movimento LGBT+ ainda é “hegemonicamente branco, com elementos misóginos, sexistas e, consequentemente, também racistas e pouco implicado com a urgente agenda racial”.

    A fala da acadêmica foi corroborada pelo autor do estudo ao longo do lançamento: “Quando a gente racializa as reflexões sobre direitos humanos da população LGBTI no Brasil é possível perceber que existem diferenças gritantes entre as experiências das pessoas LGBTIs brancas e negras que se tornam ainda mais evidentes quando se comparam as experiências das pessoas cis e trans”.

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    Outra história também resgatada no documento foi o assassinato da vereadora Marielle Franco, executada na noite de 14 de março de 2018 no Rio de Janeiro. O crime é citado também como “ponto preocupante” da situação do Brasil em relação aos defensores e defensoras de direitos humanos. “Mulher, negra, lésbica e criada na favela da Maré, a parlamentar desafiava e assustava um sistema político que sempre foi branco, masculino e cisheteronormativo. Marielle era a expressão daquilo que a onda extremamente conservadora que cresceu no Brasil ao longo dos últimos anos quer destruir”.

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    Assim como a da saída do deputado federal Jean Wyllys do país, “forçado a renunciar de seu mandato e, em janeiro de 2019, deixou o Brasil, após pressões e ameaças”. “Jean Wyllys foi eleito em 2010 como o primeiro deputado abertamente gay efetivamente comprometido com lutas LGBT+, motivo pelo qual foi vítima de ataques e acusações relacionadas à sua orientação sexual”.

    Neste ponto, o dossiê afirma que “é preciso compreender como o racismo
    estrutural e a LGBTIfobia estrutural têm impacto sobre o acesso à justiça, bem como sobre o aparato legal e institucional que o Estado brasileiro fornece para a proteção dos direitos desses segmentos”.

    A violência policial contra a população LGBT+ negra é também foi lembrada no dossiê com o caso de Luana Barbosa dos Reis, mulher não feminilizada, negra, lésbica e periférica, em que três policiais militares são acusados de espancar até a morte diante do filho dela de 14 anos em 8 de abril de 2016.

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    O acesso a direitos sociais

    “As pessoas LGBTI têm dificuldades no acesso ao direito, elas têm dificuldade no gozo efetivo dos direitos sociais, econômicos, culturais”, denuncia Alessandra Ramos do Instituto Transformar. Um dos exemplos disso é o sistema educacional, em que LGBTs são expulsos de casa e não conseguem permanecer nas escolas e nas universidades por conta da LGBTfobia.

    Segundo o estudo, não existe nenhuma medida tomada pelo Estado brasileiro para mudar essa realidade, sobretudo em relação às pessoas trans que abandonam a escola por não terem o uso do banheiro ou nome social respeitados.

    “Trazer esse dossiê é provocar a população para essa nossa invisibilidade. Traz a nossa falta de acesso, traz o tratamento do Estado aos nossos corpos. O dossiê permite pensar políticas públicas que gerem condições igualitárias de acesso”, defende Janaina Oliveira da Rede Afro LGBTI. “Nossos corpos são demarcadores até pro acesso as políticas públicas”. 

    Outro ponto que precisa de atenção, explica a pesquisa, é direito ao trabalho. “É importante frisar que, quando se discute sobre desigualdade no acesso, na permanência e nas condições de ascensão e, portanto, sobre processos de discriminação no mercado de trabalho, não se discute se há ou não a intenção de discriminar, mas sim quais os efeitos de uma determinada escolha e como eles recaem sobre determinados grupos sociais”.

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    Por fim, o estudo conclui que a “a comunidade LGBT+ não é uma massa homogênea, como se todas as categorias que estão abarcadas por essa sigla fossem iguais”. “Ao reconhecer a diferença entre as pessoas LGBT+ negras e brancas, percebe-se que experiências diferentes geram demandas, bandeiras políticas e expectativas em relação ao Estado diferentes. Para a população LGBT+ negra, o Estado perde o papel de garantidor de direitos e se torna o principal agente de perpetração de violência”.

    O dossiê também lista uma série de recomendações para o Estado brasileiro, para a Presidência da República, governadores e prefeitos, para o Ministério de Direitos Humanos e às secretarias estaduais e municipais de direitos humanos, para as secretarias estaduais de segurança pública, para o Ministério da Educação e às secretarias estaduais e municipais de educação, para o Ministério da Saúde e às secretarias estaduais e municipais de saúde, entre outros.

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    Entre os pedidos, está produção de informes periódicos em relação à violência LGBTfóbica, com enfoque interseccional; publicação de diretrizes para o combate à violência LGBTfóbica; realização de treinamentos específicos sobre orientação sexual e identidade de gênero para as forças policiais; aprovação de uma legislação específica para a criminalização da LGBTIfobia, demonstrando um compromisso do Estado brasileiro para o combate à discriminação LGBTfóbica no país.

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