‘É cruel e desconsidera a história de cada um’, diz Júlio Lancellotti sobre vídeo crítico ao povo de rua

    Bia Doria e Val Marchiori criticaram ações de doação à população vulnerável e afirmaram que as pessoas estão nas ruas porque querem

    Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    “Não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar de que ela tem que sair da rua. A rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua”. As palavras são da primeira-dama paulista, Bia Doria, que, além de esposa do governador, preside o Fundo Social de São Paulo.

    Ao lado da socialite Val Marchiori, Bia analisa a situação da população de rua sob a sua ótica e em um confortável sofá de uma sala com uma elegante cortina de voil. Bia segue dizendo que doações fazem com que a pessoa não assuma “responsabilidade” alguma. Val ratifica a tese: “Todo mundo tem suas responsabilidades”.

    A conversa das duas mostra descolamento de uma realidade que padre Julio Lancellotti, que se dedica há 35 anos no trabalho pastoral com o povo de rua, conhece muito bem. Segundo o pároco, a base do diálogo da dupla é a da “pedagogia da dor” para que a pessoa mude de situação. “Então, você não dá alimento para essa pessoa e ela, consequentemente, vai sofrer a fome e vai comer lá no abrigo. Isso mostra uma maneira cruel de ver as pessoas e não leva em conta a dignidade humana e a história de cada um”, afirma Lancellotti ao destacar que os abrigos são modelos ultrapassados que não têm contribuído para atender de forma eficiente a pessoa em situação de rua.

    Em março deste ano, a Ponte publicou uma reportagem em vídeo e texto sobre as dificuldades que as pessoas em situação de rua estavam enfrentando para evitar o contágio pelo coronavírus. Em uma das falas, o carroceiro José de Souza explicita exatamente o distanciamento dos ricos, e mesmo do poder público, com relação à realidade das ruas. “Falam que a gente tem que lavar as mãos, mas vamos lavar onde? A gente não tem água”, afirmou. 

    Lancellotti destaca que os motivos que levam uma pessoa a ir para a rua são múltiplos e não podem ser analisados de maneira simplista. “As pesquisas mostram que 42% das pessoas que estão na rua são por causas ligadas aos grupos familiares. A gente tem que tomar cuidado quando fala sobre isso para não virar um discurso moralista, porque são várias situações: desacerto no relacionamento conjugal, perda de pessoas, o luto, perda da casa”, declarou.

    Confira a entrevista:

    Ponte – Padre, quais são os motivos que levam uma pessoa a viver na rua?

    Padre Júlio Lancellotti – Pode ser o desemprego, questões familiares, afetivas, de saúde mental. As pesquisas mostram que 42% das pessoas que estão na rua são por causas ligadas aos grupos familiares. A gente tem que tomar cuidado quando fala sobre isso, para não virar um discurso moralista, porque são várias situações: desacerto no relacionamento conjugal, perda de pessoas, o luto, perda da casa. São diversos fatores. E sabendo disso, também se sabe que as respostas precisam ser múltiplas. E muitas vezes a resposta que se dá é como eles estivessem em uma mesma situação ou causa.

    Ponte – Bia Doria expressa no vídeo quase que uma metodologia de como ajudar alguém. As coisas de fato são assim tão pragmáticas?

    Lancellotti – Esse vídeo mostra uma coisa que os governos têm repetido muitas vezes, que é chamada de pedagogia da dor. Causam mais dor para a pessoa, na expectativa de que ela mude de situação. Então, você não dá alimento para essa pessoa e ela, consequentemente, vai sofrer a fome e vai comer lá no abrigo. E as coisas não são assim tão lineares e tão simplistas dessa forma. Isso mostra uma maneira cruel de ver as pessoas e não leva em conta a dignidade humana e a história de cada um. Os abrigos que elas citam, são modelos que não ajudam mais. Há relatos de abrigos mais adequados, mas também há muitos relatos de abrigos totalmente desumanos, marcados pela institucionalização e burocracia. Eu tenho encontrado diariamente pessoas que estão restritas do abrigo, mesmo nas noite frias em meio a uma pandemia. Elas foram colocadas para fora, porque geraram conflitos. Agora, por que elas geram conflitos e desacertos? Porque são grupos muito grandes vivendo em um mesmo lugar. Se você põe 140 pessoas em um mesmo espaço, vai gerar desafios. Elas interagem e nessa interação tem acertos e desacertos. Se isso acontece em uma casa com 3 ou 4 pessoas, imagina num alojamento com 140 ou mais. 

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    Há problemas de diferentes naturezas e ao invés de lidar com  resolução e mediação de conflitos, se elimina. Então, quem não cumpriu o horário, quem não cumpriu determinadas regras ou quem teve alguma situação de tensão é eliminado. O que mostra que este modelo não é mais um modelo que ajuda. Grandes abrigos e alojamentos coletivos não é uma resposta adequada para uma população de pessoas tão diferentes umas das outras. Por isso insistimos que pequenas repúblicas, pequenos grupos, locação social, são respostas ligadas à moradia com autonomia, o que o modelo de hoje não garante para a população de rua. É interessante que naquele vídeo das duas senhoras, elas dizem que a população de rua não quer seguir regras, como hora para dormir, entre outras. E eu pergunto: elas seguem essas regras? Elas têm um horário certo que diz “agora você vai dormir, acordar ou comer”? Isso tira a autonomia e leva as pessoas a uma infantilização e a uma tutela. O discurso delas é um discurso de tutela. Eles querem tutelar a população de rua. E isso não garante uma pedagogia de autonomia e responsabilização. Elas falam que eles não querem responsabilidade, mas é o contrário. Os abrigos da forma em que estão tiram a responsabilidade da pessoa. O que é mais importante: a pessoa ou a regra? Em geral, nesses lugares, o mais importante são as regras. A pessoa só sobrevive lá se ela seguir a regra. E nós sabemos que a vida não é feita só de regras. Você pode ter vontade de tomar um chá à noite, ou de tomar uma sopa em um outro horário ou de comer algo que você mesmo faça. Isso é mais humano. É o que prepara pra vida e o que faz a pessoa viver. E não simplesmente “hora de comer” e todo mundo tem que tá ali come agora ou não come mais; toma banho agora ou não toma mais. O que educa é construir uma responsabilidade na autonomia. É preciso construir uma humanização onde as pessoas sejam construídas a partir de valores e não de imposição. 

    Ponte – Isso teria a ver com o que o senhor diz sobre a população de rua procurar um lugar e não uma vaga? 

    Lancellotti – Exatamente. O termo que costumam usar é vaga, mas eu sempre digo que vaga é para carro. As pessoas em situação de rua precisam de um lugar. Lugar é onde você se reconhece, onde você não vai usar em cada noite um cobertor diferente. Eles falam muito isso: que a coberta não é a dele, que outros já usaram. Uma parte das camas dos abrigos de SP não tem forro no colchão. Eles colocam um plástico e só. Lá a pessoa dorme com a roupa que ficou o dia todo e uma coberta que já passou por várias mãos. Tudo muito precário. Agora, se os grupos são pequenos, você pode garantir mais a individualidade, intimidade e a salubridade das condições de vida. Onde a pessoa tem um lugar, não uma vaga como se ela fosse uma máquina, um carro ou caixa. 

    Ponte –  O senhor me falou antes da entrevista que pequenos detalhes do cotidiano são negados à população de rua. O que isso significa?

    Lancellotti – Um exemplo: devido ao apoio que recebemos de diversos grupos, estamos entregando roupas novas para eles enfrentarem o inverno. É difícil a população de rua receber algo novo. Quando eles recebem o casaco de moletom, a primeira coisa que todos fazem é cheirar o cheiro da roupa que ninguém usou, e que terá o cheiro dele e não de um outro que ele não sabe quem é. Isso me chama muito a atenção, porque é uma coisa do pessoal, do particular. Quando eles recebem algo novo é surpreendente para eles, é como se você estivesse dizendo: você é importante pra mim. Isso ajuda a pessoa em situação de rua a formar seu próprio espaço, a sua dignidade como ser humano, com algo novo e não da sobra. 

    Ponte – O senhor tem notado um crescimento de pessoas vivendo nas ruas de SP, devido à pandemia?

    Lancellotti – Com a aceleração do desemprego, há uma grande movimentação de pessoas por todo Brasil. Todos os dias eu vejo pessoas novas chegando pela primeira vez nesses espaços onde nós convivemos, elas estão tentando encontrar uma oportunidade. Todos os dias, chegam e saem pessoas que estão pelas estradas, andando pelas cidades procurando alguma resposta. 

    Ponte – O senhor tem feito publicações diárias no Instagram sobre a realidade das pessoas atendidas na Missão Belém. Há vários atendimentos de pessoas de fora do Brasil. Isso já era uma realidade antes da pandemia?

    Lancellotti – Isso aconteceu conforme as ondas migratórias. Por exemplo, houve um momento que havia mais haitianos pelas ruas. Assim como tivemos venezuelanos, africanos. Esses dias atendi um de Portugal e um polonês. Recentemente, em um abrigo para pessoas em situação de rua, eu encontrei um rapaz israelense. Há muito latino-americano: argentinos, uruguaios, colombianos, bolivianos. Essas pessoas que migram podem acabar na rua, assim como os migrantes que saem do sistema prisional sem um lugar para ficar.

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    Ponte – O senhor está há 35 anos nesse trabalho. Qual o peso emocional disso tudo e como lidar com ele?

    Lancellotti – Eu acredito que não há possibilidade de viver com a população de rua sem afeto. Não é apenas uma distribuição de coisas, como a socialite fez entregando marmitex lá na Sé, para dizer que o que ela falou não era verdade. Não é uma coisa descompromissada. Convivência com a população de rua é um compromisso. E todo compromisso tem alegrias e tristezas. Tem cansaço e esperança. É um compromisso difícil, que não vem de um dia, mas de 35 anos. É importante dizer que eles também cuidam de mim, sempre perguntam como eu estou. Durante a pandemia, todos os dias nós estamos convivendo com a população de rua para garantir que ela tenha acesso a água potável, ao alimento, higiene, álcool em gel e máscaras. Agora, por que tudo isso? Porque nós os queremos bem. Porque nós temos uma relação de convivência e afeto. Se eu tivesse dito que eu sou do grupo de risco e não vou poder estar presente, todos compreenderiam. Mas não quis. Se eu fizesse isso, eu não estaria sendo fiel ao que eu prometi.

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