Editorial | Chamar as coisas pelo nome. Enquanto é tempo

    As violências praticadas em nome de Bolsonaro se beneficiam de um jornalismo que mascara a realidade em nome de uma suposta isenção

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Desde que a Ponte começou, em 2014, sempre nos preocupamos em chamar as coisas pelos seus nomes e chamar a atenção para conflitos que outros veículos de mídia preferiam escamotear. Tomamos o cuidado, por exemplo, de registrar a cor da pele das vítimas da violência no Brasil, de preferência no título, algo que até hoje incomoda algumas pessoas. Nesta semana, quando escrevemos, sem fazer juízo de valor, que um jovem ameaçado de linchamento por apoiadores do candidato Jair Bolsonaro era negro, houve quem se sentisse incomodado. “O rapaz cometeu um furto [algo que não ficou provado] e vocês vêm aí falando de etnia e política?”, perguntou um dos comentaristas no Twitter.

    Até hoje, se você escrever no Google “policial mata negro“, pode ter certeza de que a maioria das reportagens que vai encontrar serão traduções de matérias de jornais estrangeiros, a maioria norte-americanos. Acontece que os grandes e pequenos veículos de imprensa dos EUA sabem que a questão racial não pode ser ignorada e têm por hábito destacar, nos títulos e chamadas, quando um negro é assassinado por agentes do Estado. Por aqui, a cor negra das vítimas da violência do Estado aparece nas fotos dos cadáveres que ilustram as reportagens, mas muitas vezes não é mencionada nos textos (se duvida, dê uma olhada neste estudo orientado pelo professor Dennis Oliveira).

    O racismo, assim, paira sobre a realidade como uma ameaça ao mesmo tempo onipresente e invisível, que tudo afeta, mas não pode ser nomeada.

    É um troço bem brasileiro, esse hábito de evitar os nomes reais das coisas e com isso tentar mascarar os conflitos. E que aparece com força na cobertura que os principais veículos de comunicação têm feito da candidatura Jair Bolsonaro, de um jeito que algumas vezes beira a esquizofrenia.

    Nas palavras da inglesa Economist, Bolsonaro é “um populista de extrema direita” e “uma ameaça” à democracia brasileira. Um “racista, homofóbico, misógino e pró-ditadura”, segundo o francês Libération. “Brasil, não deixe esse cara mandar a sua democracia se foder”, pediu, sem sutileza, o apresentador John Oliver, em um episódio do seu programa Last Week Tonight que não foi exibido no Brasil. E por aí vai.

    Engraçado ver o abismo que separa a cobertura estrangeira daquela que é realizada pelos grandes veículos do Brasil. Há o caso extremo do grupo Record, que faz uma mistura de Goebbels com Chatô e pitadas de Rupert Murdoch. Mesmo entre os que não fecharam com o presidenciável do PSL, contudo, os riscos que Bolsonaro representam à democracia acabam varridos para baixo do tapete por uma estratégia que continua a tratá-lo como um candidato igual aos demais, evitando chamá-lo de extrema direita — o que é muito engraçado, se a gente pensar que até a líder política Marine Le Pen, que todos os veículos brasileiros sempre chamaram de extrema direita, já deixou claro que Bolsonaro é extremo demais até para ela — ou buscando uma cobertura supostamente isenta, que busca colocar no mesmo plano os problemas das candidaturas do deputado e de Fernando Haddad, como se ambas, ou nenhuma, representassem o mesmo risco de mandar nossa democracia se foder (para usar as palavras de John Oliver) . É uma postura que vem sendo criticada por vozes dentro dos próprios veículos, como Paula Cesarino Costa, ombudsman da Folha, Marcelo Coelho, colunista do mesmo jornal, e Miriam Leitão, da Globo. Mas que ainda não se reflete na maior parte da cobertura.

    O uso de uma suposta isenção, que na prática evita chamar as coisas pelos seus nomes e só favorece o extremismo, tem sido a tônica também na cobertura dos ataques a minorias e eleitores de Haddad que apoiadores de Jair Bolsonaro passaram a fazer desde o primeiro turno. A Ponte noticiou vários desses ataques, porque considera que se trata de crimes de ódio assustadores: são mulheres, negros e pessoas LGBT ou jornalistas que estão sendo agredidos ou ameaçados apenas por suas opiniões políticas ou por serem quem são. Difícil imaginar algo mais grave e que lembre mais o prenúncio de uma ordem fascista. Ah, mas não houve ataques por eleitores de Haddad? Sim, mas em proporção absurdamente menor: segundo reportagem da Agência Pública, quando as agressões de bolsonaristas chegavam a 50, aquelas realizadas por apoiadores do candidato petista estavam em 6 — e um detalhe importante: nos ataques de petistas não havia indícios de racismo ou homofobia.

    Por isso, toda vez que algum veículo trata da onda de violências praticada por bolsonaristas como se fosse um tipo genérico de “violência política” ou “agressões por motivação política“, sem dizer claramente de onde partiu a maioria dos ataques, a tentativa bem intencionada de buscar isenção acaba mascarando responsabilidades e protegendo os agressores. Como escreveu a jornalista e professora Fabiana Moraes, “essa imprensa precisa fazer sua autocrítica”.

    Quando uma jornada de violência racista deixou três mortos em Charlottesville, no ano passado, boa parte do jornalismo norte-americano, com razão, criticou o presidente Donald Trump por culpar “os dois lados” pela violência, como se fascistas e antifascistas fossem a mesma coisa. Por aqui, parte do jornalismo vem cometendo exatamente o mesmo erro.

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