Em busca de trabalho, jovem encontra a escravidão no centro de SP

    Ela veio do norte com a promessa de trabalho, mas denuncia ter encontrado jornadas extenuantes, privação de contato com outras pessoas e cárcere privado; sem notícias, sua família abriu boletim por desaparecimento

    Ilustração sobre tabalho escravo
    Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

    Tímida e introvertida, a jovem negra Júlia* de 22 anos, só conseguia olhar para baixo ao ser entrevistada. O medo de ser encontrada após permanecer, segundo ela, quase seis meses presa em um apartamento, proibida de conversar com a sua família e com qualquer outra pessoa de fora do domicílio era visível em seu corpo retraído na cadeira e nas mãos que coçavam os olhos e o nariz o tempo todo. 

    A conversa foi na casa simples da família de Carlos*. Ele a socorreu nos últimos dias e a acolheu oferecendo a ela um lugar para dormir e alimentação, além de encaminhá-la para o serviço médico e de assistência social. 

    Júlia veio de um estado do norte do país, que preferiu não divulgar por medo de represálias, com a promessa de um emprego fixo que a permitiria “ajudar os cinco irmãozinhos”, como ela diz. 

    A trajetória até chegar à capital paulista foi longa. Primeiro ela encontrou um anúncio de trabalho como empregada doméstica em um site de anúncios, a proposta prometia um salário mínimo, além de casa e alimentação. As conversas com a empregadora foram feitas pelo Facebook. 

    Ao aceitar a proposta, a jovem saiu de sua pequena cidade para chegar à capital do estado em que vivia, onde permaneceu por três semanas já trabalhando com serviços domésticos na casa da irmã daquela que viria a ser sua chefe em São Paulo. “Vi o anúncio no site, morava com a minha avó, ela era aposentada. Lá não tinha oferta de emprego. Não conhecia ninguém que tivesse vindo para São Paulo. O combinado era que ia vir para cá”, explica lentamente. 

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    Ao chegar no aeroporto de Guarulhos no final de setembro de 2020, Júlia permaneceu por horas esperando alguém chegar. Nesse meio tempo pensou em desistir do trabalho e voltar para a sua casa, mas não tinha mais créditos no celular. Foi quando o casal composto por Ivone Souza e Andrei Ul Jim chegou para recebê-la. “Essa mulher comprou a passagem e me colocou no avião, desci em Guarulhos, fiquei horas esperando alguém me buscar e chegou um casal. O homem era coreano e a patroa brasileira, eles me levaram na residência deles. Eu queria desistir e voltar para casa”.

    Na primeira noite no apartamento, localizado em um bairro do centro de SP, Julia já começou a trabalhar. “Eu dormia no depósito, tinha uma cama. Eu não cozinhava, mas lavava e passava a roupa. No começo deixaram eu ficar com o meu celular, mas depois eles pegaram de volta. Eu acordava às 5h da manhã, às vezes atrasava e acordava um pouco mais tarde, umas 7h. Eles ficavam bravos e falavam que meu horário era às 5. Eu trabalhava até às 22h da noite”. 

    Os primeiros três salários de R$200 serviram para pagar a passagem de avião cobrada pela patroa, e em janeiro ela teve de começar a pagar um tablet dado pela chefe. 

    Entre interrupções de uma respiração ofegante, Júlia contou que conseguia se alimentar sempre apressada pela patroa, que também fornecia medicamentos quando a jovem tinha algum tipo de problema de saúde. “Eu tinha as refeições, mas ela me apressava, ela comprava remédios quando eu precisava”.

    Em fevereiro, Júlia conseguiu acessar o wifi da casa da patroa e encontrou sua prima em uma rede social. A parente a alertou sobre o perigo e disse para ela fugir. A conversa com a prima lhe rendeu uma agressão pela dona do apartamento. “Ela me deu tapas no meu braço, mas eu ainda estava sem coragem para fugir”.

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    No dia 21 de fevereiro, Júlia tomou coragem e decidiu fugir na manhã seguinte. Acordou às 6h30 da manhã e esperou a patroa e o marido a perderem de vista dentro do apartamento. Percebeu que a porta estava aberta e saiu correndo pelas escadas do 11º andar do prédio. 

    “Ela correu, pegou um táxi e foi para a delegacia. Descobriram que ela estava falando com a família no tablet, apagaram todos os contatos dela e tiraram o chip, ela ficou de domingo para segunda sem nenhum meio de comunicação. Essa seria a primeira oportunidade de emprego fixo, com promessas que não foram cumpridas. Quero que ela se recupere, fique aqui em SP, ela terá todo apoio nosso”, conta Carlos, que a acolheu. 

    Em dezembro a família de Julia abriu um Boletim de Ocorrência no norte do Brasil alegando o desaparecimento dela, apesar disso, não houveram respostas naquele momento. 

    Em entrevista à Ponte, o delegado Paulo Cesar da Costa, do 2º DP (Bom Retiro), explicou que Júlia chegou à delegacia agoniada e a partir de seu depoimento os policiais civis Edson Ialamov e José Fernando Araujo dos Santos conseguiram chegar ao apartamento da patroa com as descrições de Julia. “Ela foi dando as descrições, da praça que tinha perto, ela soube identificar a fachada do prédio e conseguimos chegar lá. O casal admite que trouxe essa menina, mas para ajudar e não para escravizar. Eles a tratavam como um animal doméstico. Isso vem da nossa escravidão”.

    Chegando ao local, o casal foi encaminhado à delegacia, onde a mulher foi presa em flagrante pelo delegado. Ela permaneceu presa por dois dias, seu marido alegou que desconhecia as condições de trabalho de Julia, pois não se envolvia em assuntos domésticos e trabalhava em uma loja de eletrônicos, fora de casa por isso não foi preso. 

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    Na quarta-feira (25/2), o juiz Marcio Assad Guardia, da 8ª Vara da Justiça Federal – Criminal soltou a investigada concedendo liberdade provisória sem fiança após audiência de custódia, conta o delegado. “Eu fiz uma prisão em flagrante porque naquele momento eu entendi que o crime é permanente, a situação de trabalho escravo permaneceu durante um tempo, desde setembro do ano passado. A patroa disse que ficou surpresa e estava procurando por ela, procurando por quê? Para voltar a mesma situação, dizendo que ela não podia sair para se proteger? O juiz a soltou no dia seguinte porque entendeu que não houve violência, mas o processo segue. O Ministério Público do Trabalho (MPT) é acionado para transformar em denúncia”.

    Procurado, o MPT diz ter aberto investigação, mas informou que o caso está “sob sigilo” e não deu mais detalhes. A equipe de Juízes Federais da 8ª Vara Federal Criminal de São Paulo também não retornou até a publicação desta reportagem.

    Na visão do delegado, o trabalho em situação análoga a escravidão faz parte de uma cultura no Brasil. “Esse é o Brasil que ninguém quer ver, é o Brasil real. A escravidão historicamente sempre existiu, a diferença é que no passado a imposição era por via militar, hoje é por imposição do poder econômico. A polícia está muito longe das pessoas, a maioria têm medo da polícia, então elas não falam”.

    Tainã Góis, advogada e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas, identificou diversas violações no caso de Julia. “Até então, pelas informações que temos do caso, podemos identificar a ocorrência do crime de redução da vítima a condição de trabalho análoga à de escravo, como caracteriza o art. 149 do Código Penal, principalmente, por haver indícios, conforme o boletim de ocorrência, de que a trabalhadora era mantida sob constante vigilância e impedida de sair do local de trabalho, ou mesmo se comunicar via qualquer meio com amigos e familiares”.

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    Para Tainã é preciso averiguar a ocorrência do crime de tráfico de pessoas para trabalho em condições análogas à de escravo, como descrito no artigo 207 do Código Penal, com pena prevista de um a três anos de prisão, além de multa. “Segundo as informações do boletim de ocorrência, a família da vítima não tinha informações sobre o seu paradeiro, tendo lavrado boletim de ocorrência por desaparecimento, o que acende uma alerta para a possibilidade de que a vítima tenha sido trazida para SP forçosamente, ou mediante algum tipo de engano. É bastante comum, infelizmente, que os casos de trabalho análogo ao de escravizado não sejam pontuais, mas façam parte de redes de aliciamento e tráfico de pessoas”. 

    A Ponte procurou a ex-patroa de Julia, mas ela não quis explicar os fatos narrados. No processo judicial, a defesa dela alega que Julia tinha liberdade de ir e vir, mas que por conta da pandemia do novo coronavírus as saídas teriam diminuído, além de um suposto “lockdown” decretado pelo governador João Doria (PSDB). No entanto, as medidas mais restritivas só passam a valer na cidade de São Paulo a partir de sábado (6/3).

    O advogado ainda aponta que Julia se “portava como um membro da família” e que estava presente em saídas de “momentos de lazer”.

    *Nomes fictícios. A vítima preferiu não se identificar com medo de represálias.

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