Em homenagem a vítimas de violência policial no RJ, moradores e familiares clamam por Justiça

    O sétimo dia da morte de Cristian Soares Andrade, assassinado durante operação policial no conjunto de favelas de Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi marcado por ato da Fiocruz contra a violência do Estado e missa em memória de jovens mortos por policiais na comunidade

    Moradora do Alemão com cartaz no ato

    Tristeza e indignação fundiam-se nos rostos das pessoas presentes no ato organizado pelos funcionários da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), na manhã de terça-feira (15/09), em sua sede, localizada na entrada do conjunto de favelas de Manguinhos, no Rio de Janeiro, onde uma semana antes o adolescente Cristian Soares Andrade, de 13 anos, foi baleado e morto durante uma operação da Delegacia de Homicídios da Capital (DH) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil, com apoio da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) de Manguinhos, na terça-feira passada, (08/09).

    Reunidos no pátio da instituição, mães de vítimas de violência policial – não apenas em Manguinhos, onde Cristian foi a quinta vítima desde a implementação da UPP, mas em outras comunidades do Rio –, além de funcionários grevistas da Fiocruz e representantes de diversas entidades e movimentos sociais, como o Fórum Social de Manguinhos – constituído por moradores da comunidade e familiares de vítimas. Policiais militares que cercaram o local foram expulsos por organizadores do evento, que, por se dar em um território federal, não poderia ser invadido pela PM.

    Mães de vítimas prestando solidariedade à mãe de Cristian
    Mães de vítimas prestando solidariedade à mãe de Cristian

    O ato foi aberto com um discurso do comando de greve da Fiocruz, que destacou o dever da instituição de se “posicionar frente a toda violência causada por ações do Estado em sua política de segurança pública”, tendo em vista seu protagonismo na defesa de um “conceito ampliado de saúde” no Rio. “A expressão de indignação por parte dos movimentos sociais e populares é legítima e compreensível frente à gravidade da situação. Cobrar a responsabilização das diferentes esferas do Estado significa lutar pela consolidação do Estado Democrático de Direito. A sociedade que tolera a morte de suas crianças caminha a passos largos para a barbárie. A vida é o primeiro e fundamental direito. Manguinhos, Maré e Alemão tem fome de direitos”, disse a presidente do Sindicato dos Funcionários da Fiocruz, Justa Helena Franco, que integra a Comissão Permanente de Prevenção à Violência e Enfrentamento do Assédio Moral da instituição.

    Na sequência, manifestaram-se autoridades ligadas à defesa de direitos humanos no Rio e lideranças de movimentos sociais e comunitários, como o Fórum Social de Manguinhos. Mãe de Johnatha de Oliveira Lima, morto com um tiro nas costas por um policial da UPP em maio de 2014, Ana Paula de Oliveira fez uma fala emocionada. “É muito difícil pra gente ter que viver dentro de uma favela onde nossos direitos não são respeitados, onde a gente cria nossos filhos com todas as dificuldades. A gente dá amor, a gente faz o que pode, na medida do possível, porque a gente não tem um Estado presente dentro das favelas. O Estado que se mostra presente dentro das favelas é um Estado militarizado, é um Estado opressor, que está ali dentro para tirar a vida dos nossos filhos, dos nossos amigos, dos nossos vizinhos”, criticou Ana Paula, com a voz embargada pelo choro e acompanhada pela mãe de Cristian, Janaína Soares.

    Também se manifestou Irone Santiago, moradora do conjunto de favelas da Maré, onde, em fevereiro deste ano, seu filho, Vitor Santiago, foi alvejado pelas chamadas “Forças de Pacificação” do Exército, que ocuparam a Maré por um ano e três meses, com duas balas de fuzil que lhe atingiram a perna esquerda e o tórax, provocando uma lesão medular que o deixou paraplégico. Vitor permaneceu internado por 98 dias, perdeu parte do pulmão e teve que amputar a perna atingida. Ele voltava para a comunidade com quatro amigos em um carro, que foi revistado por soldados cerca de 12 minutos antes de ser baleado e o grupo tinha sido liberado por não ter cometido qualquer infração. “Eles entram dizendo que é para dar segurança. Segurança para quem? O direito de ir e vir do meu filho foi tirado. Que direito eles têm de fazer isso?”, indignou-se Irone. “Nós precisamos de ajuda. Não estamos aqui pondo nossa cara à toa, não. Tem muitas pessoas que não vêm, que não se mostram porque têm medo. Nós não temos medo, porque matar, eles já mataram a gente. Então a gente não vai se calar”.

    Membro do Fórum Social de Manguinhos e do comando geral de greve da Fiocruz, Leonardo Bueno criticou “a continuidade do processo de militarização”, o crescimento de “práticas de exceção” no conjunto de favelas, onde ele também vive há sete anos. “A grande mídia tem a tendência a condenar qualquer morador de favela antes de qualquer julgamento”, destacou Leonardo, que acompanhou diretamente a família da vítima e sua revolta diante da forma como a imprensa abordou a morte do adolescente. “Isso induz uma série de comportamentos da sociedade, de preconceitos e estigmas em relação ao território de favelas e a quem mora na favela. Esperamos que haja uma mudança na forma de representar a favela. Os familiares do Cristian, que estão aqui, são trabalhadores e precisam ser representados como trabalhadores”, completou, referindo-se à tentativa de parte da imprensa de criminalizar o adolescente.

    Missa relembra mortos pela polícia em Manguinhos e outras favelas do Rio

    Moradores, familiares e o padre ao final da missa
    Moradores, familiares e o padre ao final da missa

    Ao final da tarde, na Capela São Daniel Profeta, próxima ao campo de futebol onde Cristian foi baleado, em Manguinhos, moradores se reuniram na missa que homenageou o adolescente no sétimo dia de sua morte, lembrando também as outras quatro vítimas de violência policial na comunidade desde a implementação, em janeiro de 2013, da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora): Mateus Oliveira Casé, em 20 de março de 2013; Paulo Roberto Pinho, em 17 de outubro de 2013, Johnatha de Oliveira Lima, em 14 de maio de 2014 e Afonso Maurício Linhares, em 18 de junho de 2014.

    “O gesto de confeccionar blusas com foto, escrever ‘justiça’ e passar pelas ruas é um gesto revolucionário, a bandeira de luta que diz ‘nós não esqueceremos’”, disse Padre Geraldo, negro, na capela onde familiares vestiam blusas com a imagem dos rostos de seus mortos. Todos negros. O padre aludiu ao período da escravidão para falar sobre a luta negra e a necessidade de se revoltar contra a opressão do Estado sobre a favela, citando líderes como Abdias Nascimento, Nelson Mandela e Martin Luther King. Durante a celebração, cada nome de vítima lembrado por familiares em voz alta era repetido em oração pelo padre.

    Em solidariedade à família de Cristian, manifestaram-se moradores do Fórum Social de Manguinhos e outras mães de vítimas, como Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha; Fátima dos Santos Pinho, mãe de Paulo Roberto Pinho, espancado e morto por policiais da UPP de Manguinhos em 2013; Deize Carvalho, cujo filho, Andreu Carvalho, foi torturado e morto por agentes do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas) em janeiro de 2008; Irone Santiago, mãe de Vitor Santiago, baleado pelo Exercito na Maré este ano, e Fátima Silva, cujo filho, Hugo Leonardo dos Santos, foi morto com dois tiros na favela da Rocinha em abril de 2012, por policiais da UPP local.

    “Vocês não estarão sozinhos nunca. O Cristian vai estar presente sempre na nossa luta, no nosso grito por justiça. A gente não vai deixar que o que aconteceu com Cristian e com os nossos filhos seja esquecido. Porque não pode ser esquecido. A vida deles tinha muito valor pra todos nós”, disse Ana Paula de Oliveira.

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