Em meio a idas e (não) vindas, a Casa Nem encontra sua casa

    ONG carioca de acolhida a pessoas LGBT+ finalmente ganha um lugar fixo. Moradores assistidos enfrentaram três reintegrações de posse durante a pandemia e organização já passou por mais de seis endereços diferentes

    Indianare Siqueira, líder da Casa Nem, faz o gesto de vitória no segundo andar do sobrado no Flamengo, na Zona Sul do Rio, nova sede da organização, nesta sexta-feira (11). | Foto: Claudia Martini

    Nesta quinta-feira (10/9), a ONG Casa Nem, espaço de acolhimento para LGBT+ em vulnerabilidade social no Rio de Janeiro, ganhou um lugar definitivo após 4 anos de reintegrações de posse e incertezas diárias. “Depois de uma luta com a união de vários movimentos sociais, costurando acordos e trabalhando em conjunto com os poderes públicos, logo atrás do Castelinho vocês nos encontrarão à beira mar do bairro do Flamengo [Zona Sul da cidade]”, conta Indianare Siqueira, ativista e fundadora da organização, em nota enviada pela Prefeitura. O Governo do Estado já assinou o pedido de cessão, com duração de 5 anos podendo prorrogar, e os assistidos começaram a mudança nesta sexta-feira (11/9) para a nova sede que conta com seis quartos, dois banheiros, sala e cozinha.

    Para chegar até aqui, o caminho percorrido foi extenso. Na última terça-feira (8/9), o Colégio Estadual Pedro Álvares Cabral (em Copacabana, Zona Sul do Rio), foi invadido por dois policiais militares sem mandado, alegando estar ali por conta de uma “denúncia” de que o espaço teria sido ilegalmente ocupado. A questão é que, desde o dia 24/8, funcionava ali a Casa Nem.

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    Indianare Siqueira foi levada à 12ª DP (Copacabana) e, chegando lá, foi indiciada por “invasão de espaço público e desobediência civil”, conforme nota da organização. Foi preciso que a Secretária Estadual de Direitos Humanos e Assistência Social, Cristiane Lamarão, o Subsecretário de Direitos Humanos, Thiago Miranda, e a Superintendente do Rio Sem LGBTIfobia, Carol Caldas, entrassem em contato com a delegacia para explicar a situação e liberá-la. 

    Para os moradores da Casa Nem, a incerteza de ter um teto amanhã era enfrentada todos os dias, mas eles reforçam que a ONG significa um ato de resistir a qualquer tipo de discriminação, como conta Nicolly Kardashian, 19 anos, que é acolhida desde novembro de 2019. “Nós precisamos lutar todos os dias por uma sociedade mais respeitosa e mais digna e que aceite mais LGBTQIA+ sem sofrimento, sem dor e sem remorso”, diz. 

    A moradora da Casa Nem Nicolly Kardashian | Foto: Julia Rafaela Bruce

    Nicolly precisou sair da casa dos pais aos 18 anos por conta da discriminação de gênero, do machismo e dos maus tratos do pai. “Ele não me via como trans e sim como homem. Quando saí de casa, fui acolhida em uma ocupação de Nova Iguaçu [região da Baixada Fluminense] e conheci a Casa Nem por um ex-acolhido”, explica. Hoje ela é aluna do curso de culinária vegana [uma das atividades que a Casa iniciou neste momento] e tem o sonho de terminar os estudos e fazer faculdade de Direito para ser juíza e contribuir a favor dos direitos dos LGBTQIA+. 

    No dia 24 de agosto, a Justiça determinou o pedido de reintegração de posse do imóvel ocupado na rua Dias da Rocha e os assistidos foram levados para o CE Pedro Álvares Cabral, na rua República do Peru, cedido pelo Governo do Estado. Indianare conta que os despejos acontecem sempre pelo mesmo motivo: a justiça invariavelmente alega “invasão de propriedade”. Entretanto, diz a ativista, há “diferença entre ocupação e invasão. Tratamos o que fazemos como ocupação porque são prédios que estão se deteriorando, assim como o Automóvel Clube, onde fizemos uma ocupação cultural. É um prédio público que foi comprado pela Prefeitura por R$60 milhões e está se deteriorando, assim como o prédio da CEG [Compainha de Gás do Rio], o Museu do Gás, o Teatro Villa Lobos que pegou fogo e ninguém fez nada”.

    Apesar de o prédio na rua Dias da Rocha ser privado, ela ressalta que ao chegarem em 2019 o espaço era um foco de doenças pois estava abandonado há 18 anos. “Encontramos ratos, pombos mortos, janelas caindo e retiramos oito caçambas de lixo. Também foram encontradas obras de arte, inclusive uma múmia que talvez seja a única que esteja intacta após o incêndio do Museu Nacional”, relembra a ativista.

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    No primeiro momento, Indianare informou que a Prefeitura alegou que o Colégio não estava funcionando, mas ela foi visitar o local e a administração continua normalmente. Ao mudarem de espaço, ela percebeu que a vizinhança ao redor do quase novo lar era “bem agressiva, inclusive a quadra de esportes tem que estar cercada por conta de objetos jogados. Já jogaram garrafas, cabeças de explosivos nos cachorros… É um local arriscado”. 

    Alguns acolhidos da Casa Nem chegaram recentemente e já precisaram enfrentar uma reintegração de posse, como Kettelym Gomes, 19 anos, que chegou três dias antes do despejo. Ela precisou sair da casa dos pais aos 16 porque a família não aceitava sua orientação sexual. “Eles falam que na minha família tem tudo menos sapatão”, diz. Kettelym morava na Penha e permaneceu em um abrigo de menores até completar 18 anos. “Segui para a casa da minha mãe, mas por conta da relação que não era boa, fui para a casa do irmão da minha companheira. Aí lá também eu discuti com eles porque não gosto de viver na aba dos outros e aí fomos para a rua. Fiquei uns 3 meses na rua em Copacabana com a minha namorada e depois fui indicada por um ex-acolhido da Casa Nem”, relata Kettelym, que começa a sorrir lembrando do quanto a ONG a ajudou: “eles fazem de tudo pra você ter o melhor e não ter que ir pra rua”.

    Kettelym Gomes, moradora da Casa Nem que sonha em cursar Medicina | Foto: Julia Rafaela Bruce

    “Estou há 3 anos e meio aqui na Casa Nem. Fui para o Beco do Rato [primeiro endereço da ocupação, no bairro da Lapa, região central do Rio], aí tivemos que sair para Botafogo [Zona Sul, cerca de 5km de distância], onde ficamos 2 semanas, depois fomos para Vila Isabel [já na Zona Norte da cidade, mais 13 km], ficamos uns 7 meses, depois chegamos em Copacabana, onde ficamos um ano e um mês [na Dias da Rocha], e agora estamos na escola”, conta Ana Cláudia Santiago, de 55 anos, que apesar de estar enfrentando todos esses deslocamentos desde 2016, resiste na luta “como uma rocha”. E as mudanças não pararam.

    Após reintegração de posse em Vila Isabel em julho de 2019, os acolhidos seguiram mais nove quilômetros para uma ocupação cultural em Bonsucesso [ainda na Zona Norte] onde passaram apenas um final de semana. Foi quando Indiare Siqueira, também Coordenadora da Frente Internacionalista de Sem Tetos (FIST), fez contato a imprensa para chamar atenção para a ocupação. Depois retornaram ao Centro do Rio para uma ocupação na rua Ramalho Ortigão [Largo do São Francsico], onde permaneceram menos de um mês. Na manhã da quarta-feira (9/9), cerca de 25 famílias, incluindo 26 crianças, que estavam abrigadas na Ramalho Ortigão foram despejadas por agentes da Polícia Militar também por conta de outra reintegração de posse determinada pela Justiça.

    Acolhida desde 2016, Ana Cláudia Santiago morou nas ruas por mais de 20 anos | Foto: Julia Rafaela Bruce

    O processo dos chamados ritos de cessão, ou seja, todo o conjunto de ações para a liberação de um imóvel público, não é tão fácil e o período eleitoral traz vários impedimentos para qualquer ação que seja relativa a bens, incluindo imóveis. Lília Sendin, chefe de gabinete da Assessoria Jurídica da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro (CEDSRIO), esclarece que esse momento limita as ações do gestor que está exercendo o mandato em ano eleitoral, impedindo que ele possa comprometer o orçamento, beneficiar seu pares partidários, usar a máquina administrativa para angariar votos, etc. “É um ato delicado e tem que ser analisado por todos os atores que representam os controles internos (Assessorias Jurídicas dos órgãos envolvidos e a  Procuradoria Geral do Município, por exemplo) para garantir que não sofrerá impedimento por parte dos órgãos de controle externo, Tribunais de Contas, Ministério Público Federal e Estadual e agora, dado o período eleitoral, o próprio Tribunal Eleitoral. É uma maneira de proteger o ato de cessão. Não adianta nada assinar a cessão e depois o ato ser questionado por órgãos de controle”, reforça Lília.

    Dentre os 50 assistidos, havia 7 crianças e 4 adolescentes, que foram levados para casas de parentes. A maior parcela das pessoas que passaram pela Casa Nem voltou para as ruas e algumas foram para casa de amigos. “Hoje são 30 pessoas atendidas e as outras 20 que talvez conseguiremos atender externamente [doando cestas básicas e oferecendo cursos], mas ainda não tivemos tempo de parar para nos comunicar com cada uma”, informou Indianare. A Casa Nem ainda atende 120 pessoas externamente que, neste período de pandemia, foram beneficiadas por meio da distribuição de mais de 3.500 cestas básicas com kits de higiene, 20 mil máscaras de proteção, quentinhas, roupas e, também, ração e acolhimento para os animais de estimação.

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    Quem está na produção dessas ações é Sabrina Princes, de 38 anos, transexual e formada na área de beleza e de culinária. É apaixonada pela área da moda e tem o sonho de criar uma marca de lingerie para pessoas trans, gays e lésbicas. Ela conta que já fez parte de algumas ocupações e outros projetos de rua. “Quando a pessoa fica em situação de rua é complicado porque vamos nos perdendo quem é a gente mesmo. Fui aumentando meu contato com as pessoas da rua, até que um grupo de amigos me indicou a Casa Nem, onde fui super bem acolhida e comecei a participar da militância e das atividades”, explica Sabrina.

    Sabrina Princess e seu companheiro Aluísio Henrique, 32 | Foto: Julia Rafaela Bruce

    Por conta do retorno das aulas do CE Pedro Álvares Cabral, no dia 11 de setembro, para os alunos que não têm acesso a internet, a preocupação em conseguir um espaço só aumentava. O Estado chegou a fornecer um outro local, também em Copacabana, até conseguirem um imóvel definitivo. 

    No início da quarentena o Projeto de Lei 1112/2020, de autoria dos deputados federais Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e Túlio Gadêlha (PDT-PE) e apresentado no dia 26 de março, trouxe a proposta de suspender mandados de despejo e reintegração de posse durante a pandemia. Na última consulta realizada no dia 8 de setembro ao site da Câmara dos Deputados, a proposta foi anexada a outro PL (936/2020, autoria de Luis Miranda, do DEM-DF) que “altera a Lei do Inquilinato para impedir a execução de ações de desocupação de imóveis urbanos, residenciais ou não, enquanto durarem as medidas de enfrentamento da pandemia de Covid-19 no país”. Encaminhado para a Coordenação de Comissões Permanentes (CCP) no dia 24 de junho, o projeto ainda está em fase de debates, mas já tem um relator, o deputado federal Camilo Capiberibe (PSB-AP).

    Indianare desabafa que foram muitos os adversários que os espreitavam a cada curva e ela só queria saber qual seria o destino da Casa Nem. “Pra quem já teve tantas incertezas, pra quem já passou fome, pra quem a vida tirou todas as possibilidades e, ainda assim, espera o temporal passar e sorrir pra que vocês possam nos encontrar ali depois da curva como um pote de ouro no fim do arco-íris. Quando perguntarem: ‘e depois da curva, hein?’ Respondam: ‘tem a Casa Nem com viado, sapatão, transvestigenere, transagenere, gates, cachorres e putes de luta”, resume.

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