Entregador de marmitas está preso há mais de um mês por usar casaco preto parecido com o de suspeito

Gabriel Pereira Severiano foi detido por estar próximo a um ponto de ônibus onde houve um roubo no Rio de Janeiro. “A Justiça do país é muito falha. Infelizmente nós pobres, não temos direito a nada”, diz irmão

O entregador Gabriel Severiano está preso desde o dia 10 de julho injustamente, segundo a família | Foto: Arquivo Pessoal

Era um sábado, dia 10 de julho, e Gabriel Pereira Severiano, de 26 anos, trabalhou o dia inteiro entregando comida no centro do Rio de Janeiro. Ele ajudava a mãe que faz quentinhas em casa para auxiliar no sustento da família. No final do dia, por volta das 18h, ele resolveu encontrar uma “ficante” na Rocinha, região sul do Rio. Poucas horas depois, às 20h40, o jovem foi preso na Estrada do Joá, no centro da cidade, quando estava em um ponto de ônibus voltando para a casa sob a suspeita de ter participado de um roubo a um ônibus nas proximidades. Segundo relato da família, Gabriel foi reconhecido por uma vítima na delegacia pois usava um casaco preto, parecido com o que um dos assaltantes usava. 

Desde então Gabriel está preso. Na última terça-feira (24/8) ele foi levado ao presídio Evaristo de Moraes em São Cristóvão, no centro do Rio de Janeiro.

Segundo o auto de prisão em flagrante, o crime ocorreu às 20h35 dentro de um ônibus na Estrada do Joá, na Gávea, zona sul do RJ. Na ocasião, dois homens roubaram os pertences de alguns passageiros ameaçando-os com uma arma de fogo. Após o roubo, uma das vítimas avistou os policiais militares Alexandre da Silva Santos e Renato de Souza Fernandes, que estavam de patrulhamento em um local próximo, e informou que houve um assalto no coletivo em que estavam homens armados e passou as “características dos autores”.

No ponto de ônibus da Estrada do Joá próximo ao shopping Fashion Mall os policiais viram um Gabriel, que, segundo eles, se “encaixava nas características físicas de um dos autores e o abordaram”. Durante a abordagem, o entregador afirmou que morava em Rio Comprido e que estava na casa da “ficante” na comunidade da Rocinha. Ainda assim, os policiais o encaminharam à 11ª DP (Rocinha) para realizar o “sarque”, isto é uma averiguação com base na vida pregressa da pessoa conduzida.

Segundo o relato dos policiais, quando chegaram na delegacia uma outra vítima reconheceu de imediato Gabriel como um dos autores do roubo de sua carteira e relógio. Ainda de acordo com o documento policial, o único objeto apreendido com Gabriel era seu próprio celular. Na delegacia, a vítima afirmou que “escondeu seu celular embaixo do seu tênis, pisando nele para camuflá-lo”, evitando o roubo de seu aparelho. 

Em seu depoimento, ela diz que os dois assaltantes desceram no ponto antes do Shopping Fashion Mall, sendo que o motorista do ônibus parou em frente a 11ª DP para registrar a ocorrência, se deparou com os policiais conduzindo Gabriel e também o reconheceu. 

No auto de prisão em flagrante não há o depoimento do motorista do ônibus e nem da primeira vítima que avistou os policiais e os noticiou do assalto. Mesmo assim, a delegada Mônica Silva Areal decretou a prisão em flagrante de Gabriel nas penas do artigo 157 do Código Penal, crime de roubo mediante grave ameaça ou violência a pessoa, cuja pena vai de quatro a dez anos de prisão e multa.

Ainda segundo o documento, os policiais teriam ligado para a namorada de Gabriel, que não foi localizada. A família afirma que a moça não tem uma relação séria com o jovem. 

“Justiça por Gabriel Severiano”

Desde o meio deste mês, a família de Gabriel vem realizando postagens no Instagram pedindo justiça pelo entregador e apontando incoerências na prisão do jovem. A ideia partiu de seu irmão, Daniel Pereira Severiano, 24 anos, assistente de compras. Segundo ele essa foi a forma de buscar provar a inocência do irmão, uma vez que a Justiça não os ouve. “A Justiça do país é muito falha. Infelizmente nós pobres, não temos direito a nada. Todo lugar que vamos, nós somos suspeitos de ter feito algo. Toda loja ou mercado que entramos, os seguranças já começam a seguir, mas com o pessoal que tem grana, não funciona dessa maneira. É complicado demais”, desabafa. 

Segundo Daniel, a versão narrada pelos policiais não condiz com o que realmente aconteceu. No final daquele dia Gabriel foi à Rocinha se encontrar com uma “ficante” às 19h. Depois, segundo ele, “os dois fizeram uma compra e depois ficaram sentados próximo à estação São Conrado do metrô, cerca de 40min, até que ele se dirigiu para o ponto de ônibus”. Nesse momento a viatura se aproximou e o abordou, levando-o à delegacia. 

Ele conta que o dia estava normal, mas tudo mudou durante a noite, quando Gabriel não apareceu. “Ele estava trabalhando com a minha mãe na entrega de quentinhas e estava esperando o cadastro dele ser aprovado nos app de delivery (iFood e Uber Eats). Ele saiu no dia 10/07 por volta das 18h para ir ao encontro da menina ali na Rocinha, o sábado passou e ele não chegou em casa, domingo mandamos mensagem e ligamos para o celular dele sem sucesso. Na segunda de manhã (12/7), já ficamos desesperados pois ele não é de fazer isso”.

Diante do desespero, Daniel foi junto com um outro irmão até o Hospital Municipal Souza Aguiar para ver se Gabriel havia dado entrada, mas não teve notícias dele. “Fui até o IML para ver se algo de pior havia acontecido. Chegando lá, passei as características dele, e a funcionária de plantão, informou que ele não estava lá, mas que havia se envolvido numa ocorrência, fiquei espantado, pois isso não é da índole dele”. 

Chegando na delegacia ele foi informado pelo inspetor de plantão que Gabriel havia sido preso em flagrante. “Achamos muito estranho, porque não é da índole do Gabriel fazer essas coisas. Ele [inspetor] nos informou que o Gabriel estava no ponto, não ficou nem 5 minutos e a polícia já o abordou, dizendo que ele estava em atitude suspeita, que havia acabado de acontecer um assalto em um ônibus, que ele se encaixa nas características do tal assaltante e que o casaco que estava usando era preto igual do assaltante”.

Naquela segunda-feira (12/7), o entregador teve uma audiência de custódia com a presença do defensor público do RJ Gabriel Albernaz, do juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), Pedro Ivo Martins Caruso D’ippolito e da promotora de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) Laura Minc. O defensor requereu a liberdade provisória, argumentando que não havia necessidade da prisão preventiva, bem como o fato de Gabriel não ter antecedentes criminais, além de ter residência fixa e ocupação lícita.

Argumentando que Gabriel representa perigo à ordem pública e que “os indícios de autoria não são originados, única e exclusivamente, do reconhecimento por parte da vítima”, o juiz  Pedro Ivo Martins Caruso D’ippolito converteu a prisão em flagrante do entregador em prisão preventiva. 

O juiz ainda admitiu na decisão que “às vítimas que, já abaladas pelos crimes, ainda deverão comparecer em juízo para depor e realizar o ato de reconhecimento de forma isenta e livre de intimidações, tornando necessária a prisão cautelar por conveniência da instrução criminal, a fim de tutelar a produção da prova e não comprometer a busca pela verdade”.

Desde então, a família trava uma guerra dia após dia para provar a inocência de Gabriel, tentando obter imagens dos estabelecimentos e residências próximos ou do ônibus em que dizem que aconteceu o roubo. No dia 17 de julho a advogada de Gabriel, Juliana Vieira Cruz, solicitou as imagens das câmeras do interior do coletivo da linha 550 e da câmera de segurança do estacionamento de um prédio da região em São Conrado que fica direcionada para o ponto de ônibus no qual o jovem foi abordado pelos policiais. 

Além disso, ela pediu a intimação do Metrô Rio, para que eles enviem as filmagens feitas pela câmera da saída da estação São Conrado e a CET Rio, para que eles enviem as filmagens feitas pela câmera que está localizada próximo a saída da estação de metrô São Conrado no dia 10 de julho. 

Em 21 de julho, Juliana apresentou um pedido de liberdade provisória para Gabriel. No dia 29 de julho, a promotora de Justiça Paula da Fonseca Passos Bittencourt denunciou o entregador pelo crime de roubo com grave ameaça e com concurso (participação) de duas ou mais pessoas. Somente em 24 de agosto o juiz Tiago Fernandes de Barros rejeitou o pedido de liberdade feito pela defesa e manteve Gabriel preso preventivamente. 

Gabriel com uma das duas filhas | Foto: Arquivo Pessoal

O entregador sustenta duas filhas pequenas, com isso, Daniel conta que a prisão do irmão impactou fortemente a família. “Estamos nos sentindo emocionalmente abalados, meus pais estão sofrendo bastante. Materialmente também, pois manter uma pessoa presa tem um custo, nossa família é humilde, mas estamos conseguindo ajudar ele. Eu e Gabriel temos uma ligação muito forte. O sentimento é de impotência, de ver meu irmão nessa situação e não poder ajudar muito além do que estou ajudando.”

Em entrevista à Ponte, a advogada do entregador, afirma que o fato de que Gabriel foi pego sem arma e sem o produto do roubo é um forte indício de que ele não participou do crime. “Só tem a palavra da vítima, estou esperando o juiz analisar o pedido das filmagens para comprovar que não foi ele. Fora isso, a pessoa que deu as características dos assaltantes que supostamente seria parecido com as do Gabriel não está no rol de vítimas da denúncia”, aponta. 

A pedido da reportagem o advogado e especialista em direito penal e processual penal Rafael Correia, integrante da Comissão de Ética e Disciplina da OAB/RJ, analisou o processo e considerou que há diversas incoerências na acusação contra o Gabriel. “Se observarmos o relato dos policiais, veremos que, diante da informação de que um roubo havia acontecido, avistaram o Gabriel no ponto de ônibus. E uma informação estarrecedora é notada do depoimento do policial: ‘Avistaram um homem que se encaixava nas características físicas de um dos autores e o abordaram’. Convém ressaltar que os policiais não viram o assalto.” 

Outra incoerência encontrada por ele também se relaciona com a abordagem dos policiais. “Infelizmente é uma prática comum que a polícia utiliza com base no art. 244 do Código de Processo Penal, nitidamente inconstitucional mas ainda em vigor, que autoriza a polícia a conduzir qualquer pessoa para a delegacia, desde que eles, com critérios nebulosos, entendam que se trata de um ‘suspeito’”. 

Tal conduta, segundo o advogado, é confirmada quando os policiais dizem que: ‘Conduziram Gabriel à delegacia para realizar o sarque’. “Sarque é uma expressão comum no meio policial e que, basicamente, é a averiguação da vida pregressa do sujeito conduzido, prática que foi muito comum durante o estado de exceção que vivemos há alguns anos, mas que continua com todo fôlego atualmente. Houve o tempo em que se chamava de ‘prisão para averiguação’.” 

Outra inconsistência é que “sem qualquer flagrante o Gabriel é conduzido e chegando na delegacia é ‘visto’ pela vítima e sem qualquer ato formal de reconhecimento.” 

Para Correia, o sistema de justiça criminal colabora muito para um verdadeiro massacre com pobres e negros. “Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, o Tribunal de Justiça tem a súmula 70 com a seguinte redação: ‘O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação’. Esta súmula é um verdadeiro ‘cheque em branco’ para a atuação de policiais em abordagens feitas sem critério, juntamente com o já citado art. 244 do CPP.”

Ainda segundo o especialista em direito penal, o reconhecimento formal de acusados, embora previsto em lei, é tratado como ‘mera formalidade’ pelo Judiciário. “Nota-se a falta de critério ou análise detida dos autos de prisão em flagrante por parte do MPRJ. A denúncia neste caso do Gabriel, assim como em vários outros, é a transcrição exata do relato contido no auto de prisão em flagrante. Ou a qualidade da investigação e do treinamento da polícia muda, ou as coisas só vão piorar”, critica.

Outro lado

A Ponte questionou a Polícia Civil do Rio de Janeiro e a Polícia Militar sobre a abordagem dos policiais e as supostas provas contra Gabriel. A reportagem também perguntou por que não há o depoimento do motorista do ônibus e nem da primeira vítima que avistou os policiais e os noticiou do assalto no auto de prisão em flagrante, assim como quais eram as características denunciadas pelas vítimas que correspondem às de Gabriel. 

Em nota, a Polícia Civil disse que Gabriel Pereira Severiano foi detido por policiais militares sob suspeita de envolvimento no crime e levado para a 11ª DP (Rocinha). “Durante depoimento, ele apresentou informações desencontradas sobre os fatos e quanto a uma possível namorada – que não foi localizada – e foi reconhecido presencialmente por uma vítima. Ele foi autuado em flagrante e o caso foi encaminhado à Justiça.”

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O MPRJ também foi questionado sobre as supostas provas contra o entregador, bem como dos motivos do órgão não requisitar as filmagens do ônibus e dos estabelecimentos próximos antes de denunciá-lo. A reportagem segue aguardando as respostas. 

Procurado, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro informou que “a Lei de Organização da Magistratura, em seu artigo 36, inciso III, impede os magistrados de se manifestarem, através de meios de comunicação, sobre processos pendentes de julgamento. As manifestações dos magistrados se dão dentro dos processos”.

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