‘Escola escolheu lado criminoso’, diz professora demitida por pressão de deputado bolsonarista

Gustavo Gayer (PL) atacou professora de Aparecida de Goiânia (GO) por usar camiseta com referência a obra do artista Hélio Oiticica, que homenageava jovem negro morto por grupo de extermínio antecessor das milícias

Uma professora de história da arte, que foi demitida do colégio particular Expressão, em Aparecida de Goiânia (GO), após ser atacada nas redes sociais pelo deputado federal bolsonarista Gustavo Gayer (PL-GO), disse que o colégio “escolheu o lado mentiroso e criminoso da história” ao optar por sua demissão, em entrevista à TV Democracia.

“Eu fiquei horrorizada [com a decisão da escola]. Vou usar essa palavra. Foi a minha sensação. Eles falaram que estavam me protegendo. Como uma escola diz que me protege, se escolhe o outro lado da história, que é o mentiroso e criminoso? Como eu vou me sentir confortável, passando por essa situação, se a própria instituição que deveria agir em defesa da Educação está assumindo o outro lado?”, questiona a professora na entrevista. A pedido da docente, para evitar novos ataques, ela será identificada apenas como “professora L” na reportagem.

A professora L trabalhava na escola desde janeiro. Ela virou alvo de Gustavo Gayer na semana passada, após publicar uma foto no Instagram em que aparecia em sala de aula com uma camiseta vermelha, que fazia alusão à bandeira-poema Seja marginal, Seja herói, criada por Hélio Oiticica, um dos mais renomados artistas plásticos brasileiros.

Gayer, que foi o candidato a deputado federal mais votado em Goiás em 2022, e que é investigado em ações no Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder e ataques antidemocráticos, republicou a foto da professora em suas redes sociais associando falsamente a camiseta com o Partido dos Trabalhadores. “Professora de história com look petista em sala de aula”, disse o deputado em sua primeira publicação distorcida contra a docente.

A profesora L conta que usa camisetas com temas relacionados a artistas na sala de aula, produzidas por um amigo, como forma de ampliar o debate e o acesso dos alunos às obras estudadas.

O post de Gayer gerou uma onda de ataques e ameaças de morte contra a professora e o colégio decidiu demiti-la. Em nota publicada nas redes sociais, o colégio Expressão não comentou a demissão de L., mas afirmou que “a escola não é lugar de propagar ideologias políticas, religiosas ou preconceituosas”.

“Muitas pessoas estão me acusando de ser uma ‘doutrinadora’, de ‘promover ações a favor da bandidagem’. Eu já li, acho que umas quinze vezes, que meu ‘CPF tem que ser cancelado’. Vi pessoas me xingando, falando que além de ser demitida eu devia ser criminalizada. E então penso: onde está o erro de uma professora de arte ensinar arte?”, pergunta a professora. “O mais grave foi o deputado ter anunciado a minha demissão como um troféu, antes mesmo de eu ser informada pela instituição”, denuncia. Segundo ela, muitos colegas e alunos se revoltaram com a atitude da direção do colégio.

Criada em 1968, a bandeira-poema do artista Hélio Oiticica (1937-1980) relacionava a frase “seja marginal seja herói” com Manoel Moreira, conhecido como Cara de Cavalo, jovem negro morador de uma favela carioca assassinado em 1964, aos 23 anos. Manoel foi executado com mais de 60 tiros por um grupo de extermínio formado por policiais, que buscavam vingar a morte de um colega, o detetive Milton Le Cocq, que havia sido morto ao tentar emboscar o jovem. O grupo de extermínio adotou o nome de Scuderie Le Cocq e se tornou um dos primeiros grupos de policiais matadores do Brasil, antecessor dos Esquadrões da Morte dos anos 70 e das atuais milícias.

Segundo um texto publicada pelo Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro para uma exposição dedicada a Hélio Oiticica em 2020, o artista era amigo de Cara de Cavalo e dizia que resolveu homenageá-lo como um “símbolo de opressão social sobre aquele que é ‘marginal’ — marginal a tudo nessa sociedade; o marginal” e para denunciar o modo como a sociedade havia eliminado todas as possibilidades de sobrevivência de Manoel, “como se fora ele uma lepra, um mal incurável — imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais degradantes princípios, como é a nossa, colaboraram para torná-lo o símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer com violência, com todo requinte canibalesco”.

Procurado pela reportagem, o colégio Expressão não respondeu ao e-mail — o espaço segue aberto. O deputado Gayer também não retornou aos pedidos de entrevista, mas voltou à carga em suas redes, agora atacando jornalistas e a memória do próprio Oiticica, dizendo que o artista em sua obra “estava homenageando seu amigo assassino de policiais”.

TV Democracia – Primeiramente, pode contar sua versão do caso?

Professora L – Eu costumo, corriqueiramente, usar assessórios e camisetas com obras de arte, afinal de contas sou professora de História da Arte. Por conta disso, em mais um dia comum, eu estava na escola com a camiseta do Hélio Oiticica. Para mim, como eu já disse a vários jornais, era só mais um dia comum. [Usar camisetas de artistas] é uma forma de se aproximar dos alunos. Eles questionam muito, perguntam sobre as obras, gostam de saber… As camisetas que eu uso são produzidas por um amigo que tem uma lojinha. E sempre que uso uma camiseta dessas eu publico [nas redes sociais] para poder divulgar o trabalho dele, de uma empresa pequena.

Postei uma foto, apenas, marcando a loja do meu amigo. Essa era a legenda que tinha. À noite, na terça-feira, dia 2 de maio, recebo ligação de um dos sócios da escola, sem saber o que tinha ocorrido. Ele me diz: “olha, a foto que você postou está me causando muita dor de cabeça”. Perguntei: “por quê?” Ele disse: “Porque é uma foto muito polêmica”. Então tentei argumentar e me dei ao trabalho de explicar do que a obra se tratava, que era um artista renomado, cobrado nos vestibulares… Eu parei e expliquei para ele, até que ele me cortou e enviou a publicação do deputado [Gustavo Gayer] e todos os prints com comentários das pessoas nas redes sociais da escola.

O deputado publicou minha foto. Ele cortou meu rosto e nome, porém marcou a instituição. Foi um grande caos, entrei em desespero, fiquei completamente desesperada… A escola, ao invés de propor um apoio direto, ficou me responsabilizando, dizendo que eu que causei essa situação, “dor de cabeça” e tudo mais. Na quarta-feira (3), consegui acionar o Sindicato dos Professores e consegui auxílio de alguns políticos que entraram com ações. Essa parte política não sei explicar direito. Também consegui fazer um acordo com a escola. O acordo deixou certo de que nós tentaríamos conter a situação, até porque eu não fiz nada. Eu só estava utilizando uma camiseta como qualquer outro dia.

Tínhamos chegado no acordo de que faríamos uma nota explicativa e educacional. Responder a questão com educação, que é o que salva a humanidade. Me propus de fazer um evento sobre neoconcretismo e ficou tudo certo, porém eu recebi uma ligação completamente desesperada de um dos sócios da escola dizendo que eu não podia mais voltar lá porque “se voltasse lá, a escola ia quebrar”.

Fiquei apavorada, de novo. Desliguei o telefone e, quando olhei, já tinha recebido várias mensagens mostrando a publicação do deputado nos Stories falando que eu havia sido demitida lá no dia em que tudo ficou conhecido, na terça-feira — o que é uma mentira, né? Eu havia entrado num acordo com a escola.

O mais grave foi o deputado ter anunciado a minha demissão como um troféu, antes mesmo de eu ser informada pela instituição. Desde então, estou tentando tomar as medidas jurídicas cabíveis, mas me preservar também. Li e continuo lendo muitas mensagens absurdas sobre o caso, quando, na verdade, só estava cumprindo meu papel de professor.

Essa obra estampada na minha camiseta caiu no ano passado na Unicamp, um dos estibulares mais importantes do país. Os alunos são preparados para a Unicamp. Não há problema algum falar do Hélio Oiticica. É uma ofensa ao artista tudo isso que foi causado com a obra dele, que fala justmaente sobre liberdade, sobre a quebra desse cerceamento à essa sociedade que vive à margem.

Estou vivendo esse absurdo há uma semana e está sendo um grande caos. Estou assustada. Estou assustada, não sei para onde as coisas caminharão e até onde vai o discurso de ódio.

TV Democracia – Que tipos de ataques você sofreu depois das publicações de Gustavo Gayer?

Professora L – Muitas pessoas estão me acusando de ser uma “doutrinadora”, de “promover ações a favor da bandidagem”. Eu já li, acho que umas quinze vezes, que meu “CPF tem que ser cancelado”. Vi pessoas me xingando, falando que além de ser demitida eu devia ser criminalizada. E então penso: onde está o erro de uma professora de arte ensinar arte? Onde está o erro de uma professora de arte que quer falar de um dos principais artistas contemporâneos, que inclusive faz parte do currículo básico da Educação? Faz parte da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Por lei, eu tenho que citar e falar do artista. O que faço nessa situação, se serei acusada e culpada?

Consegui trancar minhas redes sociais a tempo, mas não pararam de mandar as mensagens nas redes sociais da escola. E grande parte das ofensas estão lá. Os apoiadores [do deputado Gayer] pressionam a escola para que tomem uma provisão contra “essa professora que está desvirtuando seus estudantes”, né? Quando, na verdade, isso é um grande absurdo.

TV Democracia – Como está seu emocional agora, com tudo isso? Está procurando suporte emocional?

Professora L – Eu caio na tentação de ler os comentários das redes sociais. Sempre que leio, fico completamente apavorada e assustada com o que a educação virou. Virou um espetáculo as pessoas acharem que ignorância é bonito. Virou espetáculo acharem que está tudo bem discurso violento, agressão, falar mal das pessoas e desrespeitar o histórico de um grande artista e a história da cultura popular do nosso país.

Estou fazendo acompanhamento psicológico, eu já fazia há uns meses e precisei aumentar minhas sessões. Estou com um quadro de estresse e ansiedade generalizado. Está sendo bem difícil… Bem difícil… Eu preciso continuar trabalhando. E como faço? Como continuar e ter forças para continuar trabalhando?

Meus alunos olham para mim… Estou começando a ficar emocionada de novo [voz embargada]… Eles olham para mim e estão vendo que estou completamente abalada. Eu sou apaixonada pela minha profissão. Eles olham para mim, perguntam o que está acontecendo, por que eu estou desse jeito, e eu não posso falar o que está acontecendo porque preciso protegê-los de tudo isso.

Então está sendo muito difícil. É ofensivo para mim, como pessoa que ama e defende a educação, ter que conviver com este tipo de realidade. Não só eu, mas todos os professores do estado [de Goiás]. É muito complicada essa censura e perseguição que estamos sofrendo.

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TV Democracia – E, para concluir, como você se sente, professora, com a decisão da escola?

Professora L – Eu fiquei horrorizada. Vou usar essa palavra. Foi a minha sensação. Eles falaram que estavam me protegendo. Como uma escola diz que me protege, se escolhe o outro lado da história, que é o mentiroso e criminoso? Como eu vou me sentir confortável, passando por essa situação, se a própria instituição que deveria agir em defesa da educação está assumindo o outro lado?

É um sentimento coletivo de todos nós, professores. Há alunos também revoltados. Realmente foi uma atitude completamente irresponsável e criminosa. Eles não podeiram ter assumido o lugar do erro e do desrespeito, que foi o que fizeram. Não há a menor possibilidade de defesa de uma instituição que faz isso. É completamente contra tudo aquilo que uma escola, como instituição, precisa ser.

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