‘Escrever foi o grito de liberdade’, diz a artista e ativista Preta Ferreira

No sétimo episódio de Academia de Literatura das Ruas, série de lives da Ponte, Preta contou sobre sua estreia como escritora do livro-diário Minha Carne, sobre o tempo que passou presa, e suas referências de escrita e resistência

Janice Ferreira da Silva, mais conhecida como Preta Ferreira, transformou sua luta em escrita. A multiartista e ativista pelo direito à moradia no MSTC (Movimento Sem Teto Do Centro) conversou no sétimo episódio de Academia de Literatura das Ruas com a Jessica Santos, editora de relacionamento na Ponte, sobre sua trajetória e estreia como escritora. O livro Minha Carne – Diário de uma prisão, lançado em dezembro de 2020, é também uma canção de liberdade da artista.

Preta nasceu na Bahia e veio para São Paulo ainda na adolescência. É formada em publicidade e atuou na produção cultural da Ocupação 9 de Julho, organizando eventos e oficinas culturais e socioeducativas. Um dos episódios mais marcantes de sua trajetória foi o dia em que foi presa injustamente junto com outras três lideranças do movimento pela moradia em 2019, acusados de extorsão. Foram quase quatro meses na prisão, tempo em que ela escreveu seu livro-diário.

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“Eu quis escrever cada página daquele livro à mão, para que o povo veja o que é a dor de uma mulher preta ser presa injustamente, o que é a dor de ser uma mulher preta no Brasil, que é um país racista e machista”, afirma a autora. Preta é abolicionista penal e define sua prisão como política, uma tentativa de silenciamento da sua resistência. Ela descreve que o tempo que esteve no cárcere se sentiu como uma pessoa escravizada. “Escrever foi o grito de liberdade”, reitera.

Liberdades Pretas

Historicamente, pessoas pretas tiveram suas trajetórias contadas e impostas por pessoas brancas. Preta lembra que até hoje é difícil ser permitido a conhecer a história afrobrasileira sob uma outra perspectiva. Ter a liberdade de contar sua própria jornada e incentivar a escrita de pessoas pretas é reconhecer que existem protagonistas e referências dentro da própria família e dentro dos movimentos sociais.

“Sua mãe é uma heroína, minha mãe é uma heroína, sua irmã, seu irmão preto. As mulheres que estão chorando agora pelo assassinato de seus filhos e as mães que criam seus filhos sozinhas são heroínas”, diz a artista. Na obra Minha Carne, Preta escreve não só sobre as próprias vivencias como mulher negra, mas também sobre outras mulheres negras que conviveu no período que esteve na prisão.

A experiência da escuta também lhe proporcionou conhecimento e acolhimento. Conhecer a trajetória que cada mulher carregava antes de chegar até ali foi uma oportunidade de entender por que a população carcerária feminina tem aumentado nos últimos anos. “Usei a inteligência de ver e viver a realidade de mulheres pretas no Brasil e colocar para todo mundo ouvir. É como se o grito delas também estivessem ecoando”, explica a autora.

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Durante a conversa, a editora de relacionamento da Ponte, Jessica Santos, lembrou do dia 13 de maio de 1888 quando foi decretada a Lei Áurea no Brasil. Apesar da lei, Jessica lembra que até hoje o racismo do período da escravidão perpetua em diversas estruturas da sociedade, por conta de uma abolição que não aconteceu como deveria. Pessoas negras formam a maior parte da população carcerária, são as que mais são vítimas da violência do Estado e que enfrentam a falta de renda e a pouca escolaridade. Preta traz a leitura desse Brasil a partir de um olhar negro e feminino.

Conhecimento e liberdade

Preta conta que o dia que saiu da prisão gritou “estudem, gente, estudem!”. A autora afirma que a educação é transformadora e que nunca vão poder tirar seu conhecimento. “O que me salvou durante a prisão foi a consciência de classe. A leitura, a literatura, a arte têm esse poder”, afirma Preta. Ser vítima de uma injustiça reforçou a luta da ativista. Nos 108 dias que passou na prisão, ela conta que leu muito jornal e livros com temáticas políticas. Ela narra o que aprendeu, e até como se enxergou, nos escritos de personalidades como Nelson Mandela e Angela Davis.

A autora lembra que a própria situação do país nesse momento revela inúmeras injustiças com gente passando fome, pessoas sendo presas injustamente ou morrendo por negligência e violência. Em Minha Carne, Preta também escreve sobre seus sobrinhos, as próximas gerações que terão que continuar lutando para mudar essa realidade.

O livro também partiu de uma canção de mesmo nome da artista em que ela diz “sou princesa de Angola, não nasci para ir servir, meu reino não é aqui”. Ensinar às crianças as narrativas da ancestralidade, segundo Preta, é ensinar que a descendência negra vem de reis e rainhas desde as primeiras civilizações.

As referências literárias de Preta vêm de mulheres pelas quais ela se identifica como sua própria mãe Carmen Silva, liderança do MSTC, a pesquisadora Juliana Borges, a jornalista e ativista Monique Evelle e a escritora consagrada Carolina Maria de Jesus. “São histórias diferentes, não precisa ser as mesma narrativas. Mulheres pretas sentem dores diferentes”, afirma.

Preta cresceu dentro dos movimentos sociais e afirma que nasceu fazendo carreira política. A artista e ativista explica que política tem a ver com direitos constitucionais garantidos, lutar contra injustiças e dialogar com diversos grupos. “Meu corpo é político, eu exerço a política com o meu corpo, com a escrita”, esclarece. Para fazer política, segunda ela, não é preciso ter cargo público.

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Preta avalia que boa parte dos políticos que estão no poder não exercem a política de fato, pois não representam a sociedade e conhecem suas problemáticas de perto. Nesse sentido, os movimentos sociais fazem um trabalho político importante de cobrar autoridades respostas sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes e o desaparecimento de três meninos em Belford Roxo (RJ), além de cobrar justiça pela chacina do Jacarezinho (RJ), pela morte de Ágatha Félix e tantas outras crianças.

Escrita e ativismo

Em 2018, a artista estreou o filme Para Onde Voam as Feiticeiras, dirigido por Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral, sobre a vida de coletivos LGBTQIA+ e o ativismo. Preta se descobriu escritora dentro das prisões e, hoje, trabalha em projetos que levam livros para os presídios. “O livro é uma arma e te liberta”, ela afirma. Minha Carne segue para a segunda edição com menos de seis meses do lançamento. A artista conta da necessidade do acesso à leitura por quem está no cárcere e às histórias de quem passou pelo cárcere por quem não teve a oportunidade de conhecê-las.

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“Queremos usar esse livro para fazer remição de pena dentro dos presídios, queremos levar liberdade para quem está dentro das prisões. Começamos um trabalho pequeno ainda, e estamos ensinando também em universidades para falar sobre necropolítica, prisões e direitos constitucionais”, explica sobre o projeto que realiza com Patrícia Marino, do Instituto Humanitas360.

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