Especial Assédios na PM: “O capitão da PM queria me fazer sentar no colo dele”

    “Entrei para ter meios de criar meu filho”, diz Penha, sobre seu ingresso na Polícia Militar do Estado de SP, em 2005. Na época, seu menino tinha dois anos de idade. Comando-Geral da PM paulista se cala diante de denúncias de assédio da ex-cabo

    Ilustração Junião/Ponte Jornalismo

    Ela formou-se em Direito e fez duas pós-graduações, motivo pelo qual, além de ter atuado no setor administrativo, era professora na unidade escola do 5º Batalhão da PM, na Vila Pedrosa, zona norte da capital paulista, e no Centro de Formação de Soldados de Pirituba, zona oeste.

    Especial Assédios na PM – Parte 1: Mulheres são vítimas todos os dias

    Especial Assédios na PM – Parte 2: “Na polícia, tudo tem um preço”

    No âmbito operacional, trabalhava como ronda escolar da 2ª Companhia do 5º BPM, e tudo ia bem até o comando da unidade ser trocado, em 2015. O posto foi assumido por Eder Lima, então primeiro-tenente, que foi promovido a capitão na mesma época.

    Entre abril e maio de 2015, teve início para Penha uma rotina de assédios que culminou em sua exoneração cerca de um ano e meio depois, em fevereiro deste ano.

    Procurada pela reportagem da Ponte diversas vezes antes da publicação desta reportagem, a Polícia Militar de São Paulo, bem como o capitão Eder Lima, não se manifestaram sobre as denúncias feitas pela ex-cabo Penha.

    O início do fim

    “Tão logo chegou, ele já começou com gracinha pro meu lado. Me convidou pra sentar no colo dele, me chamava pra ficar dentro da sala dele, trancada, o tempo todo”, conta.

    O capitão também a convidava para tomar cerveja com ele. “Umas das vezes em que me chamou para beber, eu disse que eu não bebia e que, se fosse beber, seria na companhia do meu noivo. Aí ele começou com assédio moral, me colocava cada dia numa escala diferente”, afirma.

    O noivo a quem Penha se referiu havia sido motorista de Lima e, depois, subordinado direto do capitão em uma Força Tática. Nem isso a livrou do assédio. Posteriormente, seu noivo foi transferido para outra companhia. “Para te preservar”, disseram-lhe, ao transferi-lo. Foi assim que o policial soube que sua noiva vinha sofrendo assédio. Ela temia contar antes, porque “sabia que podia acontecer uma desgraça”, diz.

    “Teve um dia em que ele falou pra eu sentar no colo dele e eu falei que eu ia matar ele, porque ele estava tirando do sério uma mãe de família. Foi quando tudo começou”, conta.

    Quando Penha disse ao superior que registraria os assédios, ele se antecipou: foi até o comandante do batalhão e afirmou que a subordinada havia se dirigido a ele como “lixo”. Foi aberto então, em julho de 2015, um IPM (Inquérito Policial Militar) por injúria contra ela, já que insultar um superior hierárquico configura-se como crime militar.

    “Foi uma armação. Ele se antecipou porque, como é reincidente, já tendo respondido a um processo exoneratório em razão de conduta incompatível com um subordinado, se eu fizesse um papel e ele voltasse a responder, certamente ele iria para rua. Então ele se antecipou e minha vida virou um inferno”, relata.

    Lima já havia sido acusado de estuprar um subordinado quando era lotado no 50º BPM, conforme vários colegas contaram-lhe pouco depois. Até ser instaurado o IPM, ela nada sabia sobre o histórico do capitão.

    “Ele convidou o subordinado para beber, pôs alguma coisa na bebida dele, levou-o para o alojamento do quartel e estuprou-o, na companhia de um cabo”, conta ela, que acredita que os convites feitos pelo capitão para que ela tomasse cerveja com ele tinham o mesmo propósito.

    O processo envolvendo o estupro foi confirmado pelo próprio capitão, quando questionado pelo advogado de Penha, de acordo com a policial. O mesmo foi arquivado “por falta de provas”, teria dito o oficial na ocasião. Segundo ela, “todos sabem do fato, praças e oficiais”.

    Como o capitão já tinha em seu histórico o processo por estupro, a alegação da cabo Penha sobre o assédio sofrido entrou como apenso no IPM, sem maior destaque. Ela, réu por injúria. Ele, réu por assédio, em um apenso (anexo) no mesmo inquérito.

    O capitão Eder Lima então solicitou a transferência de Penha. Seria a primeira de muitas outras transferências — o que funcionou como uma tortura psicológica.

    Sucessivas transferências como represália

    Penha não permanecia em nenhuma unidade tempo suficiente para se habituar e criar laços com colegas. Afastaram-na das unidades onde lecionava e começaram a transferi-la sucessivamente de uma unidade para outra. “Os caras fecharam com ele e acabaram comigo. Tiraram as minhas aulas, fui transferida mais de 16 vezes”, lamenta ela, que respondeu ao IPM sem ter cometido crime algum.

    “Eu comecei a ser transferida para cada vez mais longe da minha casa. Era uma viagem para ir trabalhar, uma viagem para voltar. Eu sendo tratada como escória. Tudo o que eu tinha feito de bom para a PM, toda a minha formação acadêmica, se apagou”, conta Penha, sem conseguir conter as lágrimas.

    Em uma das transferências, ela conheceu uma policial que havia vivido situação semelhante. “Ela ficou ruim da cabeça, não é mais a mesma também. É terrível, eu não desejo pra ninguém o que eu passei. Porque o regulamento blinda esse tipo de crime dentro da instituição e muita gente é conivente. É o que revolta mais”, diz a ex-cabo. Em sua voz, um misto de indignação e dor.

    “Eu já estava sendo punida de outras formas. Essas transferências, a forma como eu era tratada. Já teve situação de eu ser apresentada em uma unidade num dia à tarde e no dia seguinte de manhã já estarem me apresentando em outra, que era pra eu não ter sossego, não ter paz”, desabafa, em um choro carregado.

    “Os médicos da PM tratam da instituição, não de pacientes”

    Desesperada, Penha buscou amparo na clínica psiquiátrica da PM, onde chegou a ficar internada e deparou-se, mais uma vez, com intenso corporativismo e mais abusos, praticados por superiores hierárquicos.

    “Os médicos da PM tratam da instituição, não de pacientes. A psicologia até deu um amparo, mas psicólogos na PM não tem força alguma”, conta. “Os médicos tratam soldado, cabo e sargento como subordinados, não como pacientes, nunca. Ocorrem abusos dentro desses hospitais também”.

    Todos os médicos da PM são oficiais e “fazem valer o militarismo” diante de qualquer reclamação. “Não dão o direito de reclamar do atendimento. Impõe suas patentes. Eles não estão nem aí pra você. Te olham com desprezo, acham que você está fingindo estar doente. E não foi só comigo, é com todos”, critica a ex-cabo.

    Depois que chegou a ter “ideação suicida”, ela passou a fazer uso de três medicamentos controlados. “Isso me arrebentou emocionalmente. Eu nunca mais vou ser a mesma pessoa. Eu sinto o quanto a PM vira as costas para as vítimas desse tipo de coisa e tenta abafar”.

    Vespeiro

    Para reunir provas para o processo que moveria contra o assediador, Penha gravou vídeos com câmera escondida enquanto conversava com colegas. “Se eu dependesse dos depoimentos das pessoas [como testemunhas], ninguém quer ficar contra o capitão. Então eu tive que gravar sem que as pessoas percebessem”, explica.

    Mas, enquanto sua intenção era unicamente a de obter depoimentos de testemunhas dos assédios que vinha sofrendo, acabou descobrindo o envolvimento de oficiais do 5º BPM no recebimento de propinas de casas de jogos de azar localizadas na Zona Norte da capital paulista. Um dos nomes destacados pela prática criminosa foi o do major Rogério dos Santos, subcomandante do CPA/M-3 (Comando de Policiamento de Área).

    Ao anexar as gravações aos autos do processo que move contra o capitão Eder Lima, foi alvo de uma sindicância, aberta em agosto de 2015, que resultou em sua exoneração da PM, no dia 25 de fevereiro deste ano, sob a alegação de que o fato de ter gravado vídeos com câmera escondida é uma conduta incompatível com a instituição.

    “A minha intenção nunca foi denunciar esse major. Eu queria que a colega falasse sobre a história desse capitão que me assediou e ela acabou se empolgando e falou de outros oficiais, entre elas a desse major. A minha pauta não era ele, veio por um acaso e ele não gostou nada disso”, conta.

    Mas o que realmente evidenciou a dimensão do vespeiro em que havia mexido foi o fato de que o presidente da sindicância aberta contra ela era o próprio major que, em um dos vídeos anexados aos autos, foi citado diretamente por seu envolvimento no esquema de propinas.

    “A preocupação de quem tocou essa sindicância não era de o capitão Eder ser punido por assédio. É que em um dos vídeos, uma testemunha disse claramente que o major recebia propina de casa de jogo de bingo. E em todo o tempo, quem conduziu esse processo exoneratório queria omitir essa informação”, afirma Penha.

    “Então eles fizeram um esquema para calar a minha boca, me mandar embora antes que eu falasse ou mandasse essa mídia para alguém”, completa.

    Em doze anos na Polícia Militar, Penha nunca havia respondido a nenhum procedimento, sendo inclusive condecorada por sua atuação na instituição.

    “Ali no batalhão o pessoal é muito sujo. Muito mesmo”, diz policial em vídeo

    No vídeo, ao qual a Ponte teve acesso com exclusividade, uma policial com 20 anos de profissão revela exemplos do que chama o tempo todo de “sujeira” e “podridão” praticadas por oficiais do 5º Batalhão da PM.

    Ao se referir ao capitão Eder Lima, afirma que ele “comeu um temporário” que embebedou em uma festa em agosto de 2015:

    — Um cara sujo, saiu pegando temporário aí na festa. – diz a mulher.

    — É verdade mesmo isso? – pergunta Penha.

    — É, é verdade.

    — Como ele foi promovido a capitão?

    — Porque é tudo abafado. Oficial abafa coisa de oficial, ué.

    Em outro momento do diálogo, a policial reforça que são todos coniventes com as práticas de oficiais que desrespeitam normas básicas da instituição, como consumo de bebidas alcoólicas e realização de festas no ambiente de trabalho. É quando aparece o nome do major Rogério dos Santos pela primeira vez.

    — Esses homens não têm moral. Eles usam bebida alcoólica dentro do batalhão. Tem festa, todo mundo está sabendo. Só que ninguém joga isso na imprensa. Coronel sai caído. Que moral que esse homem tem? Ele, Rogério, vive bêbado dentro da sala. Isso, sim, é crime. Uma vez presenciei o [oficial] Motomeque [setor que conserta viaturas], tenente Casagrande, sabe? Totalmente bêbado, pondo a mão em uma das meninas. Pensei: ‘se ele puder a mão em mim, vou arrebentar ele’.

    — Ninguém faz nada? Todo mundo viu? – pergunta Penha.

    — Todo mundo é conivente com tudo lá. Quando tem festa do major Rogério, rola bebida alcoólica, uísque lá, até tarde da noite. […] Ali no batalhão o pessoal é muito sujo. Muito mesmo.

    O major é citado novamente, desta vez quando a colega fala diretamente sobre um esquema envolvendo oficiais que recebem propinas de casas de jogos:

    — Major Rogério, por exemplo, na época de capitão, quando ele trabalhava ali em Cardeal Arcoverde, Teodoro Sampaio, no comandamento daquela região ali, ele foi acusado de [receber] propina do jogo do bingo, porque tinha um monte de casa de bingo clandestina lá. Na elite, na nata, né? Um dos nomes de comandantes acusados de receber propina é o dele.

    Próximo ao término da gravação, a mulher reforça que nenhuma acusação contra oficiais resulta em apuração e responsabilização na PM. “Nada que eu sei, que você ou ela sabe, tem como colocar no papel aqui, porque eles estão fechados”, afirma.

    Outros três vídeos foram gravados por Penha — todos anexados aos autos do processo movido por ela contra o assediador. Em um deles, uma outra colega diz que o capitão Eder Lima estuprou o policial por inveja.

    “A PM é uma instituição machista que não cuida da mulher”

    “Fui tratada como uma leprosa. Porque esse major que foi acusado de receber propina passou a ser subcomandante do CPA/M-3 [Comando de Policiamento de Área] e fez de mim uma peteca. Até o último dia na PM foi sofrido pra mim”, diz Penha.

    Ela já não acredita na instituição que serviu por 12 anos e que, hoje, é sinônimo de profundo sofrimento em sua vida. “Eu experimentei de uma experiência tão amarga, tão terrível, que eu não me sentia mais gente. Eles fizeram com que eu me sentisse a pior, mesmo sendo vítima”, desabafa, chorando.

    A PM é uma instituição machista que não cuida da mulher. E as mulheres que entram, principalmente oficiais, fazem parte desse pensamento. Elas acham que têm que provar que são como os homens. Se anulam. Se submetem. Se omitem”, critica.

    “Não tive nenhum amparo. Nunca ninguém se preocupou com esse tipo de vítima dentro da PM. Pelo contrário. O que eles podem fazer para abafar, eles fazem”, completa.

    Assim como as demais mulheres entrevistadas no especial “Assédios na PM”, ela acredita que a realidade das policiais femininas seria diferente se as mulheres se solidarizassem umas com as outras e não se submetessem. E destaca que “o maior fator é o militarismo”, porque “o assédio sempre vem de um superior”.

    Desempregada, ela espera encontrar um novo emprego. Enquanto isso, corre na Justiça comum seu processo contra o capitão Eder Lima por assédios sexual e moral.

    “Eu não tinha mais orgulho de dizer ‘eu sou policial’. Pra dizer isso para a minha a família foi muito duro. E no fim, fiquei sozinha nessa. Ninguém quis se envolver, ninguém quis testemunhar, porque viram o que aconteceu comigo. É muito triste. Muito mesmo. Me depreciou”, define.

    Outro lado

    A Ponte questionou a Polícia Militar de São Paulo sobre todas as circunstâncias narradas nesta reportagem, mas não obteve retorno da assessoria de imprensa da instituição, para a qual foram enviados e-mails (nos dias 23, 27 e 28 de março), com as seguintes perguntas:

    1) Por que razão não foi instaurada uma sindicância para apurar se a então policial havia sido vítima de assédio por parte do capitão Eder Lima?

    2) Quando a instituição tomou conhecimento de que a cabo Penha afirmou ter sido assediada pelo capitão Eder Lima, prestou alguma assistência à ex-policial e procurou assessorá-la de alguma forma?

    3) Por que motivo a ex-cabo foi transferida inúmeras vezes consecutivas?

    4) Houve outras sindicâncias contra ela durante os quase 12 anos em que integrou a PM?

    5) A instituição instaurou algum processo sindicante para apurar o envolvimento de oficiais da PM em esquema de recebimento de propinas de casas de jogos de azar, e especificamente do major Rogério dos Santos, subcomandante do CPA/M-3, citado em gravação anexada aos autos do processo da ex-cabo?

    6) Em um dos vídeos anexados aos autos dos processos envolvendo a ex-cabo Penha, uma policial faz referência ao uso de bebidas alcoólicas no interior do 5º BPM/M. Isso foi apurado? Qual o posicionamento da PM sobre isso?

    7) A PM instaurou algum procedimento para apurar se o capitão Eder Lima violou sexualmente um subordinado anteriormente, conforme relatado em mais de um dos vídeos?

    A reportagem também solicitou entrevista com o capitão Eder Lima.

    A Polícia Militar de São Paulo não se manifestou até a publicação desta matéria.

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