Ministra Macaé Evaristo representou governo federal na cerimônia realizada na Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde foram encontradas, em 1990, 1.049 ossadas — muitas ainda não identificadas e entregues às famílias

“Que tipo de justiça a senhora espera?”, questionou o jornalista Caco Barcellos à Iracema Merlino, mãe do também jornalista e militante político Luiz Eduardo Merlino, de 23 anos. Ele foi morto após ser torturado em 1971, durante a ditadura militar (1964–1985). “Eu não quero da União dinheiro. […] Nunca quis. Desde o princípio eu quis isso, uma retratação moral”, respondeu Iracema.
A entrevista foi exibida no programa Globo Repórter, da Rede Globo, em 1995. A edição do semanal tinha como tema a Vala Clandestina de Perus, aberta em 1990, no Cemitério Dom Bosco, na Vila Perus, zona noroeste de São Paulo. Ali foram localizadas 1.049 ossadas enterradas ilegalmente, das quais se suspeita que 14 pertenciam a militantes políticos — segundo dados do Memorial da Resistência de São Paulo.
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Nesta segunda-feira (24/3), uma cerimônia em Perus marcou a retratação moral requerida por Iracema e por todos os familiares de mortos e desaparecidos na ditadura militar. O pedido de desculpas público foi feito pela ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo.
O ato trata da negligência da União na guarda e identificação das ossadas, localizadas em 1990 e que ainda não foram complementarmente identificadas. Macaé disse que até 2009 não se tinha dado um tratamento para prosseguir com as identificações e os exames necessários para relacionar as ossadas com as vítimas. As desculpas são resultado de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF). O pedido foi aceito pelo MDHC de forma voluntária.
Um monumento com um grande letreiro foi erguido no Cemitério Dom Bosco para homenagear as vítimas. A obra, assinada pelo arquiteto Ricardo Ohtake, diz: “Aqui, os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos.”
“É um momento muito triste e ao mesmo tempo importante porque a verdade precisa ser revelada como justiça a todos os familiares, para que a sociedade brasileira compreenda toda a violência que se cometeu em nome do Estado e para que a gente reafirme a democracia e isso nunca mais aconteça”, afirmou a ministra dos Direitos Humanos durante o ato.
Contudo, questionada sobre prazos para a conclusão dos trabalhos, ela não precisou.

‘Crime continuado’
Para a ministra dos Direitos Humanos, um outro avanço necessário é tipificar o crime de desaparecimento forçado. “Além desse caso de Perus, nós temos por exemplo o caso das Mães de Acari, que até hoje não sabem onde estão os remanescentes ósseos de seus filhos. No Brasil isso é uma questão, porque é um crime continuado”, afirmou Macaé.
A cerimônia contou com a presença de familiares das vítimas, autoridades e representantes da sociedade civil. Vera Paiva, filha do ex-deputado federal Rubens Paiva, morto na ditadura, era uma das presentes. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) não compareceram. O primeiro foi representado pela secretária de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo, Regina Santana.
Gilberto Molina representou os familiares das vítimas. Ele é irmão de Flavio Molina, um dos desaparecidos políticos identificados na Vala de Perus. A busca pelo irmão e pelo direito de sepultá-lo levou 44 anos. A família primeiro buscou saber o que houve, como o Estado matou o militante. Depois, lutou para o saber para onde corpo foi levado e, então, para identificar os restos mortais dele.
“Após a abertura da vala foram 15 anos de um velório interminável”, descreveu Gilberto. A busca pela identificação foi marcada por episódios cruéis. Gilberto foi exposto a ossadas sem cuidado e um dos retornos dos exames de DNA questionou se a mãe dele era de fato biológica.
Descoberta da vala
A vala do cemitério de Perus foi considerada clandestina por uma série de ausências: ela não tinha registro de criação, não estava incluída na planta do cemitério, não tinha sido demarcada como local de sepultamento e, a partir de 1976, não houve registro dos corpos transferidos para lá.
O corpo de Luiz Eduardo Merlino foi encontrado pela família no necrotério e sepultado graças a um parente que trabalhava na Polícia Civil. Uma exceção. “Não saber onde estão e até não saber se estão vivos… sempre com aquela ilusão de que talvez estejam vivos em algum lugar é muito doloroso”, disse Iracema na entrevista à TV Globo.
A Vala Clandestina de Perus foi descoberta por Caco Barcellos quando o jornalista passou a investigar os homicídios cometidos por policiais militares. Caco visualizou que alguns dos laudos feitos pelo Instituto Médico Legal (IML) referentes à mortos pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPs) continham a letra T — a marcação significava terrorista. Aquilo foi a fagulha para que a vala fosse encontrada após a confissão do administrador do cemitério, Antônio Eustáquio.
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A então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina (à época no PT, hoje no PSOL), determinou a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a origem e as responsabilidades sobre as ossadas. A Comissão, entre outras coisas, recomendou que fosse feita a regulação da legislação sobre sepultamentos na cidade, principalmente no caso de indigentes.
Outra observação foi para que o IML fosse reorganizado e retirado da esfera policial. Esse pedido, por uma perícia independente, é até hoje uma solicitação de familiares de vítimas da violência policial.
Corpos identificados
Após a descoberta, começou uma nova etapa, a da identificação dos corpos contidos ali. Os militantes políticos Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, Frederico Eduardo Mayr, Flávio Carvalho Molina e os irmãos Denis e Dimas Casemiro foram identificados. Até então, todos eram considerados desaparecidos.
O processo, no entanto, segue até hoje. O MDHC assinou em 2024 um novo Acordo de Cooperação Técnica junto ao Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp) e à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e da Cidadania (SMDHC), da Prefeitura de São Paulo.
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É o grupo quem atua desde 2014 na identificação. O MDHC também afirma ter mediado acordo entre a Unifesp e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para financiar a contratação de uma equipe pericial.