Estado nega ajuda psicológica às mães dos jovens que matou

    Ministério da Saúde suspende verba para cuidar da saúde mental de mães de vítimas: ‘o Estado deve isso para essas mulheres’, afirma fundadora das Mães de Maio

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    Mães de Maio em homenagem à Vera Lúcia, uma das fundadoras do movimento, em maio de 2018 | Foto: Ailton Martins

    Depois de negar indenização por danos morais às mães de vítimas dos Crimes de Maio, agora o Estado nega ajuda psicológica para as Mães de Maio. Nas duas negativas, a justificativa foi a mesma: o encerramento dos prazos para que o Estado pudesse reparar os familiares.

    O parecer técnico (confira o documento completo aqui) emitido pelo Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Atenção Primária à Saúde e do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, informa “não ser possível a prorrogação do Convênio conforme solicitado” por causa da demora na execução e “ausência de interesse público”.

    A pasta cita que a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SDHC) solicitou a prorrogação do projeto, que se encerra em 31 de dezembro de 2019, em 02 de outubro de 2019, sob justificativa de “falta de execução em tempo hábil devido a complexidade e os entraves burocráticos internos que impossibilitaram a contratação para o atendimento psicossocial”.

    Em entrevista à Ponte, Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, criticou a decisão e falou da luta por essa reparação. “É inaceitável. O Estado tem o dever de cuidar dessas mulheres”, explica a líder do movimento criado em 2006, quando mais de 500 pessoas foram mortas durante resposta do braço armado do Estado aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital). A luta das Mães de Maio para conseguir ajuda psicológica para quem teve os filhos mortos pelo braço armado do Estado começou naquele mesmo ano.

    Diante da negativa do Ministério da Saúde, o Movimento Mães de Maio e a Rede de Proteção e Resistência contra Genocídio, que lutaram juntos na prorrogação do prazo, emitiram uma nota de repúdio (leia na íntegra aqui).

    “O direito ao atendimento psicológico às mulheres tem sido negligenciado, quando ocorrem, são marcados por incompreensão de alguns profissionais sobre o fenômeno do genocídio, suas implicações e efeitos nefastos”, diz um trecho da carta.

    Houve uma articulação entre Mães de Maio, Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio de São Paulo para pressionar a SDHC no sentido de enviar ao Ministério da Saúde, gestor do recurso citado, nova solicitação de prorrogação de vigência de execução, para a execução do projeto em 2020.

    “Nossa caminhada tem sido, embora coletiva e intensa, dolorosa e é lamentável, revoltante e indigno, que façamos este percurso por justiça, sem o apoio devido do estado com os cuidados com as vítimas de violência perpetrada por ele mesmo. Faz-se urgente o atendimento ao nosso clamor pela atenção psicológica e social. Quantas mais de nós precisarão morrer para sermos ouvidas?”, concluem as Mães de Maio na carta.

    Débora conta que, em algum momento nesses 13 anos, as mães chegaram a ter atendimento psicológico, mas foi inadequado. “Eram profissionais recém-formados e a maioria homens brancos. As mães, a cada vez que faziam terapia com eles, ficavam mais nervosas. Acabou que nós, mães, éramos terapeutas umas das outras, porque eles não traziam resultados. Tinha que ser psicólogos negros que entendessem as dores da mãe negra, da favela, da periferia”, argumenta.

    ‘Matam os nossos filhos e matam a gente’

    A trajeto percorrido pelas mães em busca de reparação foi longo. Em julho de 2012, as Mães de Maio participaram de uma palestra do Fórum da Juventude, em Brasília, quando falaram sobre as doenças adquiridas. Nessa época, uma carta foi enviada para a então presidenta Dilma Rousseff solicitando reparação psíquica e econômica para as mães.

    Depois de longa articulação, elas conseguiram o apoio do secretário nacional de saúde Fábio Mesquita, que é médico infectologista de Santos, litoral sul de São Paulo, e, portanto, conhecia o movimento. Em 2015, elas pediram ajuda ao conselho do Ministério Público Federal, que aceitou realizar uma audiência pública sobre o tema na capital paulista.

    Débora Silva, coordenadora do movimento Mães de Maio, durante homenagem em maio de 2019 | Foto: Bianca Moreira/Conectas

    “Fizemos uma audiência e mostramos as mães falando por elas mesmas, sendo protagonistas das suas próprias dores. E a gente sabendo que o dinheiro estava lá. Mas é incrível como um governo municipal, sabendo da situação das mães, não teve a compaixão de colocar em andamento esse projeto… Sabendo que a verba veio do governo federal”, argumenta Débora.

    Depois da audiência, a verba foi liberada e enviada para São Paulo, onde ficou engavetada. “Perdemos três Mães de Maio em Santos e perdemos uma no Taboão da Serra [Grande São Paulo]. Muitas queriam se suicidar”, conta. “Eles abriram um edital muito rápido que também fechou rápido. Só uma ONG aceitou participar, mas quando viu que não era só para a região dela, que era para o estado todo, ela desistiu, devolveu o projeto e não quis fazer. Agora o prazo já está estourando, que é até o dia 31 de dezembro de 2019”, continua Débora.

    Uma das grandes perdas citadas por Débora foi a de Vera Lúcia Gonzaga, que foi encontrada morta no dia 5 de maio do ano passado em sua casa, na periferia da Baixada Santista. Vera era mãe de Ana Paula, sogra de Eddie Joey e avó de Bianca, a neta que ela não viu nascer, todos vítimas dos Crimes de Maio de 2006. Vera, ao lado de Débora, participou da fundação do movimento Mães de Maio.

    Ao longo dos anos, nove mães morreram, segundo o estudo “Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da antropologia forense e justiça de transição“, da Unifesp (Universidade Estadual Paulista). A morte dos filhos causou nessas mulheres um processo de intenso adoecimento físico e psicológico, sendo típicos quadros de hipertensão, diabete, câncer, hipertiroidismo e depressão, que as levam a morte física, pois a simbólica é continuada.

    Para Débora, as mortes são causadas pela impunidade. “É falta de consideração. Quem mata as mães aos poucos e lentamente é a impunidade e a criminalização da pobreza. O Estado tem o dever de cuidar dessas mulheres. Ele que causou as doenças tirando os nossos filhos. O Estado não mata só os nossos filhos, mata a família como um todo. É inaceitável”, afirma. “Tem um racismo muito forte dentro das instituições. A gente tem que matar o racismo na raiz”, critica Débora.

    Francilene Gomes Fernandes, integrante do movimento Mães de Maio, lamenta a decisão do Ministério da Saúde. “Teve uma audiência pública com o Rodrigo Maia sobre a excludente de ilicitude e eu estava representando as Mães de Maio. Entreguei uma carta de solicitação para um olhar mais atencioso nessa reparação psíquica. Mas infelizmente ficamos sabendo que o parecer do ministério foi desfavorável”, lamenta.

    Francilene Gomes Fernandes em evento do dia internacional das vítimas de desaparecimento forçado em agosto de 2018 | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    “Perdemos uma grande oportunidade de implantar um projeto que cuidasse da gente. Mesmo que por um ano, seria muito significativo e é uma coisa que a gente lutou por muito tempo para ter”, explica Francilene. “Só para você ter uma ideia do quanto isso rodou em juros, já estava em quase 2 milhões de reais parados que seriam usados para isso”, afirma Fran.

    Marisa Feffermann, integrante da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, comenta a decisão desfavorável ao tratamento psicológico das mães. “Esse projeto foi um descaso. Não é que a gente não acompanhou, eles não deixaram. A nossa preocupação era com os articuladores quando fomos conversar com a Secretaria da Juventude, nem era com esse projeto. Aí descobrimos que tinha esse e começamos a falar com os coordenadores, mas conforme eles caíam, voltava tudo atrás”, explica.

    “A Secretaria de Direitos Humanos tem que se comprometer com isso, para não ficar só no Ministério. Precisamos comprometer esse dinheiro no ano que vem, a Secretaria precisa brigar por isso, porque eles também foram responsáveis. Tem dois anos que estamos indo atrás disso. Eles foram mudando de coordenadores e a responsabilidade foi sendo jogada de mão em mão”, critica Marisa.

    Outro lado

    Em nota enviada à Ponte, a assessoria técnica da SMDHC (Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania) lamenta a decisão e argumenta que “apesar de insistentes tentativas de abertura e renovação de edital de chamamento para o Projeto Reparação Psicossocial, não obteve entidades aptas para a execução do mesmo. Ainda assim, solicitou nova prorrogação do convênio neste ano, que foi negada pelo Ministério da Saúde”. A SMDHC também reforça que “defende e promove ações de direitos humanos diariamente, além de seu compromisso com a juventude e todas as populações de vulnerabilidade da cidade”.

    A reportagem procurou a assessoria do Ministério da Saúde que afirmou que “o convênio nº 800023/2013, firmado entre o Ministério da Saúde e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo não foi prorrogado pela quarta vez por ausência de comprovação da execução do Plano de Trabalho”.

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