Estudante trans é agredida em festa e, ao fazer B.O., revistada e detida pela polícia de Goiás

    Universitária Karen de Aguiar foi vítima de agressão durante a comemoração dos aprovados no vestibular da Universidade Federal de Goiás; após revista com quatro policiais homens, foi colocada em cela

    Karen de Aguiar, estudante de administração | Foto: Arquivo pessoal

    Uma estudante transexual foi agredida na recepção dos calouros da UFG (Universidade Federal de Goiás), evento tradicional que acontece anualmente. Esta edição aconteceu no Parque Vaca Brava, em Goiás, no Dia da Visibilidade Trans, na última segunda-feira (29). A universitária Karen Alves de Aguiar, 25 anos, estudante do segundo semestre de Administração, contou a Ponte que a agressão aconteceu no fim do evento, por volta das 18h.

    “Eu estava indo em direção ao ponto de ônibus pra ir pra casa. Foi quando a chuva começou a engrossar mais e eu parei em uma barraca, próxima ao ponto, onde tinha um vendedor – dono da barraca de água de coco, esse rapaz, que se chama João Batista, o amigo dele e uma outra moça”, conta a jovem. Sem organização direta de nenhum grupo ou pessoa, o evento é uma junção das associações atléticas e é o primeiro contato que o estudante tem com a universidade depois da aprovação do vestibular.

    Karen relata que os jovens começaram a conversar com ela e, como a chuva estava muito forte, um deles se queixou de estar com frio. “Ele falou que estava com frio e eu ofereci que ele me abraçasse para se esquentar, porque até aí todo mundo estava molhado. Aí ele me abraçou e logo em seguida me beijou. Nisso, o João saiu de perto e começou a dar risada, fazer piadinha, e começou a falar que eu era homem, que eu era um traveco. Eu perguntei porque ele estava falando essas coisas, foi quando ele disse que eu tinha que morrer e as agressões começaram”, relata Aguiar.

    De acordo com a universitária, o agressor tentou agredi-la no rosto por várias vezes, mas ela estava com a mão na frente para proteger. Um dos socos acertou Karen, que caiu no chão e em seguida tomou um chute. Procurando uma forma de se defender, a jovem encontrou algumas garrafas no chão. Foi então que ela pegou uma, bateu no chão e usou a garrafa quebrada para afastar o agressor.

    “Tentei correr atrás dele e ele começou a correr, dando algumas voltas pela barraca. Nisso o restante da garrafa quebrou na minha mão, então eu peguei outra garrafa inteira. Ele correu até um bar, em que estava concentrada a Polícia Militar. Nisso, ele contou a versão dele para polícia, que pediu que eu deixasse a garrafa no chão. Eu deixei no chão e contei a minha versão para os policiais. Aí eles pegaram, fizeram a ocorrência e chamaram a viatura pra encaminhar a gente pra delegacia”, conta Karen.

    Ambos foram levados para a Central de Flagrantes. No boletim de ocorrência, João Batista Guimarães Filho, acusado por Karen de a ter agredido, assume que riu do amigo beijando uma transexual. “O declarante relata que ele e o vendedor de coco começaram a rir do fato de o amigo dele estar beijando um travesti, momento em que Karen deu um murro nas costa do declarante e perguntou se ele estava achando ruim, tendo o declarante dito que quem tinha de achar ruim era o amigo dele. O declarante relata que então ela lhe segurou pelo pescoço, tendo o declarante dado um murro em Karen e o derrubado no chão”, descreve o documento sobre a versão de João. Contrariando a o Decreto de Lei nº 8.727, de 28 de abril de 2016, popularmente conhecido como “Lei João Nery”, os policiais registraram no B.O. o nome de registro de Karen, e não o nome social. Por outro lado, seu sexo está colocado como feminino.

    A estudante ainda explicou que chegou na delegacia por volta das 21h e, depois de tirar foto e fazer o corpo delito no IML (Instituto Médico Legal), ficou do lado de fora esperando ser chamada. Quando foi prestar seu depoimento, ela diz que foi surpreendida pela atitude dos policiais. “Depois disso, os policiais me levaram para uma sala e pediram pra eu tirar a roupa, pra eles fazerem uma revista. Eram mais ou menos quatro homens. Depois dessa revista, eles pegaram o meu celular, a caneca do meu curso, tiraram o cadarço do meu tênis e me colocaram dentro de uma cela”, conta.

    Segundo apontado por funcionários do IML, o procedimento correto é de que o único momento em que a vítima – e autor – podem tirar roupa é no Instituto, não na delegacia. E, caso seja uma mulher trans, ela ou solicita uma policial feminina ou pede para policiais homens saírem da sala.

    “Fiquei muito chocada, não sei porque eles me colocaram dentro de uma cela, sendo que fui eu que apanhei, eu que fui vítima, por mais que eu tenha corrido atrás dele com a garrafa, eu não cheguei nem 5 metros dele, não tinha nenhum risco de vida dele. Depois de uns 20 a 30 minutos dentro dessa cela, eles me tiraram pra eu dar meu depoimento. Então essa foi a parte que eu fiquei mais preocupada entre tudo que ocorreu”, desabafa Karen.

    O delegado plantonista Alexandre Neto não soube explicar à Ponte o motivo de a Karen ter sido levada à cela ou por ter passado pela revista. “Não fico na região das celas, apenas na sala. E estava cobrindo a folga de um delegado”, informou. Ele pediu para a reportagem procurar a Coordenadoria Geral da Central de Flagrantes, mas ninguém foi encontrado para comentar o assunto.

    O porta-voz da Polícia Civil, o delegado Gylson Mariano Ferreira, afirmou que o procedimento é o preso, ou a vítima, ser encaminhada para o IML para fazer o exame de corpo delito e não na delegacia.

    Das ruas para universidade

    Antes de entrar na universidade, Karen era profissional do sexo. Decidiu sair da prostituição e buscar outra maneira de se sustentar. Conheceu o Preparatrans, cursinho preparatório para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), exclusivo para transexuais e travestis. O Preparatrans é gratuito e ministrado por universitários voluntários da UFG e tem ligação com a Coordenadoria de Ações Afirmativas da universidade.

    Página do Preparatrans comemora aprovação de Karen | Foto: Reprodução/Instagram

    “Foi muito complicado entrar na universidade com a minha idade, eu tive que abrir mão de muita coisa, deixar de lado muitas coisas que eu podia ter agora, larguei várias oportunidades de ir pra fora pra poder trabalhar, mas não era mais o que eu queria. Eu venho da prostituição, eu saí da prostituição pra tentar uma vida nova, pra mostrar que travestis e transexuais não tem que trabalhar só com prostituição pra poder sobreviver, não é esse lugar que temos que estar. Venho do cursinho, um programa que tem de incentivo feito para pessoas trans, foi através desse cursinho que eu consegui chegar no vestibular”, conta Karen.
    Como poucas pessoas sabiam da sua transexualidade na universidade, Karen tem receio do que a repercussão da agressão pode trazer para o seu futuro acadêmico. “Não sei se vão me olhar e falar ‘olha a menina que foi agredida’. Todo mundo agora vai saber que eu sou mulher trans, não que eu tenha vergonha, mas eu acho que não precisava ter tanta exposição, por isso que eu não fazia parte de nenhum coletivo”, desabafa.

    Questionada se a UFG entrou em contato com ela após o episódio, a estudante contou que ninguém da reitoria a procurou, mas que entende a posição da universidade, uma vez que o agressor ainda não realizou a matrícula e o evento ocorreu fora do campus. Mas, por receio do que pode vir a acontecer, afirmou que, assim que as aulas retornarem em março, abrirá um processo administrativo, para que não tenha contato com o agressor.

    A Associação Atlética do curso de Administração fez uma nota pública de repúdio no Facebook. Em conversa com a reportagem, a presidente da associação, Aline Alcantara, de 21 anos, estudante do último ano do curso, contou que o clima na UFG sempre foi carregado de machismo e LGBTfobia, mas que nos últimos meses estava mais inclusivo. “Quando entrei no curso, quatro anos atrás, confesso que era um ambiente bem machista e muitas vezes homofóbico, eram poucas pessoas que se declaravam homossexuais, acho que até mesmo pelo medo da retaliação. Hoje, estamos em uma safra boa, onde o respeito já é muito mais evidente, a diversidade é algo estampado em nosso curso, mas claro que sempre vai haver aquele tabu, ainda mais com alunos trans”, afirma Aline.

    Foi Aline quem ajudou Karen na adaptação depois do processo do vestibular. “Fiz muita questão de aceitá-la na equipe pra mostrar mais ainda o quanto o curso de administração vive uma nova fase de inclusão. A informação chegou até nós da diretoria da atlética e fomos até a Karen pra saber o que havia ocorrido. No começo, ela não estava querendo que divulgássemos por medo de represália, mas insistimos por saber a importância que teria para buscarmos justiça”, conta Aline.

    Karen (de blusa rosa) com amigos da UFG | Foto: Arquivo pessoal

    Confira a nota de repúdio da Atlética na íntegra:
    “A realidade da população Trans, não só no Brasil, mas no mundo, é de luta. Como se não bastasse a corrida pelo reconhecimento na sociedade, diariamente são pessoas que se deparam com o constante perigo de violência e exclusão social.

    A luta diária pelos direitos sociais garante a este grupo a saída das margens da vulnerabilidade. Os direitos à saúde, à educação, à inserção no mercado de trabalho e etc, começam a ser assegurados. No entanto, este avanço não significa o fim da violência, muito menos da exclusão.

    Mediante esta discussão, viemos por intermédio desta carta de repúdio, denunciar o caso de Transfobia que aconteceu com Karen Motta, estudante de Administração da Universidade Federal de Goiás. Karen foi alvo de agressão física no dia 29/01/2018 no Parque Vaca Brava, durante a realização do tradicional evento de recepção de calouros ali realizado. A agressão aconteceu em decorrência ao preconceito e desrespeito à Karen simplesmente pela sua essência, por viver a sua verdade.

    Nós, da Associação Atlética de Administração (A.A.A.ADM) temos o prazer de estarmos inseridos em um ambiente de aceitação, respeito e igualdade, seja de raça, gênero ou credo. Uma ação desse gênero, de ódio e desrespeito, deve ser repudiado e posto em discussão, uma vez que todos os dias lutamos por uma sociedade, um ambiente universitário e acadêmico plural, diverso e, sobretudo, humano.”

    O outro lado

    Procurada pela Ponte, a UFG informou que o evento não é uma prática organizada pela universidade e que não compactua com nenhuma forma de violência, além de realizarem anualmente campanhas contra trotes, que não são aceitos nos eventos de recepção dos alunos. Em relação ao agressor, a reportagem buscou entrevista através de sua página no Facebook, porém, o agressor não respondeu aos pedidos de entrevista.

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