Estudo sobre enquadros aponta viés racista da polícia do Rio

Levantamento do CESeC mostra que 63% dos abordados pela polícia na capital fluminense são as pessoas negras: “podemos apontar de maneira científica que as pessoas negras são as mais abordadas pela polícia”, diz pesquisador

Foto: Reprodução / Agência Brasil

As forças policiais são racistas na cidade do Rio de Janeiro, mostra a pesquisa Elemento Suspeito, coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). Os números levantados pelo estudo, junto com entrevistas feitas com jovens moradores de favelas, entregadores, motoristas de aplicativos, mulheres e policiais, revelam que os negros são os principais alvos dos enquadros na capital fluminense.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) citados no estudo, 48% da população da cidade do Rio de Janeiro é negra. Entretanto, 63% das pessoas negras do município já foi enquadrada pela polícia em algum momento da vida. 17% delas responderam que já foram paradas por agentes de segurança pública mais de 10 vezes. 

Entre os entrevistados que têm mais de uma dezena abordagens policiais, 94% eram homens, 66% eram negros, 50% tinham até 40 anos, 35% moravam em favelas, enquanto 33% moravam em bairros de periferia e 58% ganhavam de zero até três salários mínimos. “A gente consegue apontar de maneira científica, e quase inquestionável, que as pessoas negras são as mais abordadas pela polícia”, afirma o pesquisador do CESeC e coordenador do LabJaca, Pedro Paulo da Silva.

Vans e kombis, veículos utilizados no transporte alternativo da cidade, principal meio de locomoção das pessoas que moram nas periferias da cidade do Rio de Janeiro, são os espaços onde mais enquadros ocorrem. Segundo o levantamento, 74% das pessoas foram interpeladas dentro deste tipo de transporte.

Negros correspondem a 68% dos cidadãos que tomam enquadro enquanto estão caminhando na praia ou na rua. Esse também é percentual negros abordados entre motociclistas. 72% das pessoas que são paradas em carros de aplicativo também são negras. 67% dos enquadros dados em festas são em pessoas negras. Dentro do transporte público, 72% dos abordados por policias são negros.

“Um dia dois policiais subiram no ônibus onde eu estava e, dentre as dezenas de pessoas que estavam no veículo, apenas um homem mais escuro do que eu foi revistado. Não aceitei ver aquilo e disse aos policiais que se ele estava sendo revistado, todos do ônibus também teriam quer ser”, lembra o jornalista Fagner Torres.

Mas nem só no transporte público os negros são maioria quando assunto é enquadro policial. Mesmo dentro dos seus veículos, os negros são os principais alvos das forças policiais. “O estudo mostra que 61% das abordagens feitas em carros particulares têm pessoas negras dentro do veículo”, lembra Pedro Paulo.

O professor de educação física Herbert Borges tomou seu primeiro enquadro da vida quando tinha apenas 16 anos de idade, com direito a fuzil engatilhado contra o seu rosto. Ele, que é servidor público, conta que sempre anda com sua identificação funcional para tentar de alguma forma amenizar os ânimos dos policiais quando for parado em uma blitz, por exemplo. 

“Basta ter um homem negro dirigindo um carro. Tenho um veículo de uma boa marca e sempre sou parado. Isso acontecia sempre na saída do bairro onde eu trabalho, onde estou quase todos os dias. De dez vezes que eu passava lá, era parado no mínimo seis. Até que descobri um outro caminho para chegar até o trabalho”, lembra o professor.

Fagner Torres foi recentemente vítima dessa estatística quando voltava de um final de semana no interior com a sua família. “Estava dentro do meu carro com minha mulher e minha sogra. Mesmo sabendo que não tenho nada a esconder da polícia e não tendo nada de errado com o meu veículo é uma situação muito incômoda”, analisa o jornalista.

Mulheres pretas também são alvos dos enquadros

Se em números absolutos a maior quantidades de abordagens contra negros é entre os homens, com as mulheres os enquadros são mais humilhantes e vexatórios. Intimidações e violação de intimidade são mais frequentes entre elas, além das revistas sendo feitas por policiais do gênero masculino. “Eu não uso bolsa para ir trabalhar. Vou de mototáxi e eles não podem ver uma mulher negra na garupa da moto com bolsa que param a moto para revistar a bolsa”, explicou uma das participantes que foi entrevistada pelos pesquisadores.

“A gente vê menos casos entre mulheres sendo abordadas na cidade, mas há uma relação muito grande de promiscuidade. Há casos de policiais que chamam mulheres de ‘marmitas de bandido’, como apareceu nas nossas entrevistas. Além disso tem o caso das mulheres trans onde há uma agressão bem maior, onde além do racismo existe a transfobia”, argumenta Pedro Paulo da Silva.

Dentre os várias enquadros sofridos durante seus 39 anos de vida, Fagner Torres também tem um caso envolvendo mulheres e a diferença da abordagem policial de acordo com a cor da pele. “Fui casado durante algum tempo com uma mulher branca e nunca fomos parados pela polícia. A minha atual esposa é negra e das primeiras vezes que saímos juntos tomamos um enquadro da polícia”.

A pesquisa ainda mostra relatos de racismo escancarado como, por exemplo, mulheres que usam cabelos com dreads ou black power terem seus cabelos revistados sob alegação de estarem escondendo algum tipo de droga na cabeça.  

O CESeC fez a mesma pesquisa em 2003 e de acordo com a instituição a truculência nas abordagens aumentou neste período, com o acréscimo de 16,5%. “Podemos ver que as ameaças durante as abordagens passaram de 6,5% para 23%. Mas a experiência violenta mais comum é ter uma arma diretamente apontada para si: o uso de armas apontadas para os abordados foi 9,7% em 2003 para 28% na pesquisa atual”, informa um trecho do documento.

Reprovação e receio

A agressividade e a falta de respeito dos agentes de segurança faz a população preta carioca não ter confiança nas polícias. Mesmo não sendo a única instituçãoide segurança pública que apresenta comportamentos racistas contra a população, mas sendo aquela que faz as abordagens de maneira mais ostensiva, a Polícia Militar é a mais reprovada pelos moradores negros no município do Rio de Janeiro.

45% das pessoas pretas reprovaram a PM, 23% das pessoas brancas e 28% das pessoas pardas também reprovaram a corporação. Apenas 3% consideram a PM nada corrupta e 7%, nada violenta. “Os abusos da polícia geram um transtorno psíquico na população negra. Se você tem a casa invadida, algum amigo preso ou morto pela polícia isso cria uma trauma da polícia e do Estado”, destaca Pedro Paulo da Silva.

É comum pessoas negras criarem artifícios para se protegerem das abordagens policiais ou pelo menos aliviarem o tamanho do esculacho que correm o risco de tomar simplesmente por conta da cor da pele. 

“A gente nunca sabe qual vai ser a reação do policial nesses momentos, o mínimo gesto que você fizer pode ser fatal”, diz Fagner Torres lembrando casos de pessoas que já foram mortas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro por estarem portando objetos como guarda-chuva e furadeira que foram confundidas com armas.

“Quando tomo um enquadro, procuro falar pouco, dar informações diretas. Isso  diminui as chances dos caras terem uma ação violenta,e às vezes até matar você. Ando sempre com a minha carteira que comprova que eu sou um servidor público, mas isso nunca evitou que eu tomasse outros tipos de enquadro em várias situações diferentes”, relata Herbert Borges.

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O próprio Pedro Paulo da Silva, que trabalhou no levantamento dos dados do estudo, sentiu diversas vezes o que é ser um homem preto no Rio de Janeiro e ter que conviver com o racismo da polícia. “Eu vivenciei absolutamente tudo que está nesta pesquisa. Eu continuo sendo muito parado pela polícia, independente de ser um pesquisador, das roupas que uso, de ter o cabelo cortado e usar óculos. 

O que diz a polícia

Procurada pela reportagem, a Polícia Militar do Rio de Janeiro enviou a seguinte nota: “A Secretaria de Estado de Polícia Militar (SEPM)  é uma corporação mais que bicentenária com uma missão central de defender a sociedade do Rio de Janeiro. Nossas ações são baseadas em protocolos rígidos, treinamentos e orientação. A maioria do contingente policial militar vem das classes de base da sociedade, incluindo as comunidades carentes, o que torna nossos policiais parte do contexto estrutural, histórico e social em que atuam. Vale lembrar que a Corporação foi uma das primeiras instituições públicas do país a ser comandada por um negro e hoje mais da metade de seu efetivo de praças e oficiais é composto por afrodescendentes.”

Reportagem atualizada às 16h16 do dia 15/5/2022 para incluir posicionamento da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

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