‘Eu era a vítima’: músico negro denuncia furto e acaba em camburão

Guardas municipais alegaram que Manoel Trindade, de 40 anos, que teve o celular furtado num ônibus, estaria “arranjando confusão”. Defesa do músico quer que caso seja investigado como racismo e abuso de autoridade

Manoel Trindade, de 40 anos, conta ter sido humilhado por guardas municipais | Foto: Arquivo pessoal

O músico Manoel Abílio Olinto Trindade de Souza, de 40 anos, fala com indignação sobre o episódio, ocorrido em julho do ano passado. Manoel percebeu que teve o celular furtado enquanto estava em um ônibus e, ao chegar no Terminal Pinheiros, na zona Oeste de São Paulo, pediu ajuda — mas em vez disso acabou sendo detido por agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM).

Manoel ficou cerca de 30 minutos dentro de um camburão e foi levado para uma delegacia. A defesa do artista pede que o caso seja investigado como racismo.

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Naquele dia, 7 de julho de 2024, Manoel cochilou durante o trajeto do ônibus e, ao ser acordado pela cobradora, percebeu que havia tido o celular furtado. O músico conta que a funcionária chegou a questionar se o músico achava que ela tivesse cometido o crime, o que ele negou. Contudo, mais trabalhadores foram acionados e Manoel relata ter sido cercado. 

“Eles falaram que eu estava causando, eu só falei que tinha sido furtado e a ‘mina’ disse que eu estava causando”, não se conforma. Manoel conta que chegou a pedir que a polícia fosse acionada, mas não foi atendido. O artista então entrou no Terminal de Pinheiros e conseguiu ligar para a Polícia Militar por meio do celular pessoal de uma funcionária da segurança. Enquanto aguardava a chegada dos PMs, foi abordado pelos guardas. 

‘Arranjando confusão’

O artista conta que, mesmo sendo a vítima do furto, teve os documentos pessoais solicitados pelos GCMs. E diz ter questionado a atitude dos mesmos, mas nega tê-los desacatado. Manoel aceitou ir para o 14º Distrito Policial (Pinheiros) com os agentes. No boletim de ocorrência, os próprios guardas Clayton Messias Liberato Camargo e Ednaldo Rodrigues De Oliveira contaram terem questionado Manoel sobre a necessidade de uso de algemas, o que foi recusado pelo músico.

No caminho até a delegacia, Manoel foi no banco de trás da viatura. O atendimento com o delegado demorou e o músico conta que não foi permitido que ele saísse da viatura e pudesse aguardar dentro da delegacia. Os agentes só o liberaram quando o artista pediu para ir ao banheiro. Contudo, quando notou que os guardas o acompanhariam até o local, desistiu. Manoel conta ter tido medo de que, em um local sem câmeras, pudesse ser alvo de algum tipo de agressão.

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A negativa, conta o músico, foi o estopim para que ele fosse colocado no camburão. “Nesse momento, eu fiquei bastante desesperado, comecei a gritar, pedir ajuda, falando que eu era a vítima ali”. O artista só foi liberado depois de ser ouvido pela delegada.

No boletim de ocorrência feito 14º DP Pinheiros, o registro sobre o caso conta como furto e desacato. O relato começa dizendo que Manoel foi furtado dentro do ônibus e, posteriormente, teria “arranjando confusão” sem que fosse descrito o que de fato aconteceu.

O músico afirma que, ao perceber o furto, solicitou ajuda dos funcionários, mas teve um atendimento ríspido. E nega ter causado qualquer tipo de confusão. O boletim descreve que Manoel aguardou ser atendido dentro do “chiqueirinho” (camburão) da viatura da GCM. 

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O documento também traz um relato conjunto do que disseram os guardas municipais Clayton e Ednaldo. Segundo a dupla, a GCM foi acionada para atender uma ocorrência em que “um usuário estaria causando transtornos no terminal de Pinheiros”.

Uma funcionária teria dito aos guardas que Manoel estava acusando os funcionários do terminal de o terem furtado. Os agentes disseram terem conversado com o artista, que contou ter chamado a PM, e que pediram que ele parasse de tumultuar. Ao que Manoel teria respondido: “Vocês não são ninguém, você está sendo conivente com eles porque eu sou negro, vocês são apenas guardas municipais.”

Vítima nega ter xingado agentes

Ainda conforme o relato dos guardas, Manoel teria se negado a ir até a delegacia com eles. A equipe, então, teria questionado se o artista queria ir algemado ou não até o DP e que, sem algemas, o conduziu no banco de trás até o local. O motivo pelo qual teriam colocado o artista no camburão, justificaram os agentes, foi porque Manoel teria se exaltado, gritando e proferindo palavras de baixo calão. A dupla disse, ainda, que o artista estava fora de si e “aparentemente embriagado”.

“Em nenhum momento eu me dirigi a eles com nenhum tipo de palavrão. Eu fui extremamente cuidadoso justamente porque eu sou um homem preto e não sou burro”, afirma Manoel. “Sei bem que se eu representasse perigo real aos policiais ele sim me agrediriam e poderiam atirar em mim.”

A delegada Daniela Brito De Lima não viu desacato na ação de Manoel. “Trata-se de uma vítima nervosa, que queria a presença da Polícia Militar e, talvez, desconhecesse a nobilíssima missão constitucional da Guarda Municipal em preservar o patrimônio e serviços da edilidade, como o é o Terminal de ônibus e o serviço de transporte coletivo municipal”, escreveu. 

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Daniela corroborou a versão dos guardas de que teria havido confusão mesmo sem outras provas que corroborassem a versão. “Outrossim, não podemos também deixar de passar em branco a linha tênue entre a revitimização de MANOEL ABILIO OLINTO TRINDADE DE SOUZA e sua agitação e balbúrdia no terminal de ônibus incomodando os demais passageiros e funcionários, podendo comprometer a eficácia do serviço público de transporte”, concluiu. 

Racismo e abuso de autoridade

Em 26 de julho, foi instaurado um inquérito policial para apurar o caso. A investigação é conduzida pelo delegado Helder Góes M. de Oliveira, que passou a apurar tanto o furto quanto o possível desacato. A advogada Fernanda Peron, que defende Manoel, solicitou que a apuração também investigue os crimes de racismo e abuso de autoridade. 

Para a advogada, Manoel, um homem negro, foi submetido a uma situação de humilhação ao ser impedido de sair da viatura e depois ter sido colocado no camburão. Ela destacou, em documento enviado ao delegado, que o músico era a vítima e não havia cometido nenhum crime.

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O caso também foi levado à Corregedoria da Guarda Municipal, que abriu um procedimento para apurar a situação. Diferentemente do que contou em depoimento à Polícia Civil, o GCM Ednaldo Rodrigues de Oliveira disse que Manoel foi levado ao DP por ter começado a gritar, dizendo que a equipe só estava falando com ele daquela forma porque ele seria negro.

“Percebendo que o indivíduo queria induzir como se a equipe estivesse o tratando com racismo, então o declarante achou que deveria conduzir ao Distrito Policial”, disse para a Corregedoria.

O inspetor averiguante Romeu José de Faria Bari Guedes do Monte pediu o arquivamento do caso, entendendo que não houve excessos por parte dos agentes e que a ocorrência foi realizada dentro dos padrões da GCM. Em outubro, o caso foi arquivado após despacho do diretor de divisão da guarda, Adelson Simão da Silva.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Corregedoria da Guarda Municipal, a Prefeitura de São Paulo e a Secretaria da Segurança Pública (SSP) pedindo entrevista com os agentes públicos citados e uma posição sobre o caso. A SSP respondeu que o caso é apurado em um inquérito. “A autoridade policial analisa os elementos coletados e apresentados pelas partes envolvidas, como depoimentos e documentos, para o total esclarecimento dos fatos”, informou, em nota.

A Secretaria Municipal de Segurança Urbana informou que caso foi arquivado pela ausência de provas e elementos que justificassem o prosseguimento das investigações “Cabe ressaltar que na ocasião, o homem foi conduzido ao 14º DP, sem o uso de algemas e no banco traseiro da viatura, tendo o boletim de ocorrência registrado como furto e desacato aos agentes”, escreveu, em nota.

*Matéria atualizada em 22/1/2025, às 16h, para incluir a nota da Secretaria Municipal de Segurança Urbana.

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