Evento da USP sobre segurança pública é alvo de ataques de ódio de grupos bolsonaristas

    Palestra online com Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM e doutor em psicologia, e Ana Schritzmeyer, professora da USP, discutia presença da polícia no campus da universidade paulista e foi interrompida com gritos e ameaças de morte

    Debate sobre presença da PM no campus trazia Adilson Paes de Souza e Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer | Foto: Reprodução/Facebook / Marcos Santos/USP Imagens

    Um evento virtual que debatia a presença da Polícia Militar dentro da USP (Universidade de São Paulo), na zona oeste da capital do estado, foi interrompido após ataque de ódio de grupos bolsonaristas na última terça-feira (2/3). Além da situação da universidade, o debate discutia modelos de segurança pública no Brasil.

    Organizado pelo Centro Acadêmico Panthalassa, representação dos alunos do Instituto Oceanográfico da USP, o evento trazia Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM paulista, doutor em psicologia, mestre em direitos humanos e autor do livro O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares, e a professora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, docente do departamento de Antropologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) e pesquisadora do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência).

    A motivação do evento, explica Ana Lúcia, foi a construção de um posto da Polícia Militar no local de um antigo posto da guarda universitária, que fica estrategicamente colocado no último bloco do CRUSP (Conjunto Residencial da USP), onde moram estudantes de graduação e pós.

    “Esse posto ficou fechado por muito tempo e agora construíram um caixote de cimento, pintado de cinza e preto, com vidros pretos. É um horror. É um posto mais do que fixo”, argumenta a professora. “Isso em um campus cria polêmica, a polícia pode entrar quanto é chamada, mas ter um posto fixo? É muito simbólico, é para controlar o movimento estudantil”.

    Participavam do evento ao menos 40 pessoas entre alunos dos cursos de oceanografia, matemática, física e geologia e não-alunos. Segundo Adilson Paes de Souza, o começo do seminário foi tranquilo, houve a abertura e as apresentações dele e da professora Ana Lúcia. O ataque começou em sua primeira fala.

    “Eu falava sobre a dicotomia entre a teoria e a prática do que está sendo feito no campus com a presença da Polícia Militar, porque eles falam que está sendo executado o policiamento comunitário, então eu apresentei a teoria e dizendo que a prática não tinha nada a ver, estava totalmente diferente”, conta em entrevista à Ponte.

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    Após fazer uma crítica ao modelo usado pela PM dentro da USP, que, para Adilson “era um modelo incompatível com a democracia e que não era comunitário”, os ataques começaram.

    “O evento foi invadido por uma série de pessoas que começaram a berrar, fazer barulho, xingar, ofender, ameaçar de morte. Várias fotos sendo colocadas no perfil dos participantes e várias delas do presidente Jair Bolsonaro”, lembra Adilson.

    Os perfis ficavam se alternando. Apareciam, falavam e sumiam. Até que a organização decidiu encerrar a transmissão, mas antes Adilson deixou um recado para o grupo de invasores.

    “Eu falei ‘vocês são uns fascistas e não vão conseguir impedir a realização do evento, essa manifestação de vocês é uma manifestação que não nos assusta, pelo contrário, nos estimula porque sabemos que defendemos o debate, a liberdade de expressão e de pensamento, a defesa da universidade e da democracia e ninguém vai nos deter'”.

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    Após essa fala, lembra Adilson, os xingamentos voltaram e a coordenadora decidiu migrar para outro endereço virtual. Nesse novo espaço virtual, apenas metade dos ouvintes continuou, mas o debate durou duas horas e meia.

    Para Adilson, esse ataque é uma “síntese do tempo que nós vivemos, em que os valores democráticos estão sendo cada vez mais atacados e com mais intensidade a cada dia”.

    “Temos personalidades públicas, que defendem o golpe, que defendem medidas autoritárias, que são antidemocráticas, e acabam estimulando esse tipo de situação. Isso é uma ameaça à democracia e uma ameaça a todos nós”, critica o tenente-coronel da reserva.

    “Esse tipo de situação causa preocupação, mas não causa medo, porque mostra que estamos no caminho certo de defender os valores democráticos, uma sociedade democrática, a universidade pública gratuita e livre de amarras autoritárias, uma sociedade plural e justa que saiba resolver os seus dilemas de outras maneiras que não através da violência e da grosseria”, aponta Adilson.

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    Para a professora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, que já superintendente de Prevenção e Proteção Universitária da Universidade de São Paulo, entre 2014 e 2015, o tema do evento “suscita posições radicais, contra e a favor da PM”.

    “Há pessoas que devem ficar especialmente atentas a esse tipo de debate que envolve policiais militares. Imagino que foi algum grupo atento a isso que descobriu que haveria o debate e se infiltrou de uma maneira totalmente truculenta e antidemocrática. Pessoas que não estavam ali para conversar, se não seriam bem-vindas. Mas estavam para acabar o debate”, pontua.

    A professora assegura que, em situações como essas, é importante não silenciar. “Essas pessoas agem com truculência porque pensam que acovardam os outros. Estamos vivendo tempos às avessas: quem é a favor da democracia, das regras constitucionais, do diálogo e do respeito é perseguido, é censurado. Essas pessoas que não querem nada disso, nada de diálogo e nada de respeito, acham que intimidam. Não podemos intimidar. E preciso agir”.

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    Ana Lúcia lembra que os espaços virtuais são as salas de aulas durante a pandemia e aponta como a situação ocorrida durante o evento foi grave.

    “Como agora tudo é feito de maneira virtual, a autonomia e liberdade de expressão na academia está colocada em risco. Uma sala de aula virtual é nosso ambiente de trabalho, é como uma sala de aula física. O que essas pessoas fazem é como se alguém desse um chute na porta e entrasse gritando em sala de aula”.

    “Todos os professores, pesquisadores e organizadores de eventos acadêmicos têm que tomar inúmeros cuidados para fazer o que antes fazíamos entrando na faculdade, entrando em sala de aula. Esse tipo de gente é covarde, não mostra a cara”, finaliza.

    Nos últimos meses a USP foi palco de ações violentas da Polícia Militar. Em novembro de 2020, durante o Boat Show, maior evento náutico da América Latina, que recebeu mais de 18 mil visitantes, a raia olímpica foi alugada por R$ 90 mil para abrigar a feira, na qual empresários e entusiastas negociaram barcos, navios e até helicópteros.

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    Indignados, estudantes da universidade protestaram dentro do campus e foram reprimidos pela Polícia Militar com spray de pimenta e bombas de gás. Na internet, surgiram relatos de alunos que afirmam terem sido agredidos por visitantes do Boat Show e pela polícia.

    Em fevereiro, a PM ameaçou famílias de uma nova ocupação em terreno da USP e professores precisaram pedir diálogo para evitar agressões. Agindo sem ordem judicial, a tropa aumentou a pressão sobre os moradores de uma favela recém-criada em um terreno abandonado da USP, ao lado da favela São Remo, para que desocupem a área.

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