Família acampada no Paissandu deixa de receber auxílio por erro na grafia de nome

    Funcionário comeu letra do sobrenome ao preencher cadastro de Glivalda Conceição dos Santos, bloqueando os R$ 400 do auxílio-aluguel; outros acampados alegam não ter recebido benefício de junho

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Desde 1º de maio, centenas de pessoas ocupam o Largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Naquele dia, o edifício Wilton Paes de Almeida pegou fogo e a ocupação em que as pessoas moravam veio ao chão, matando ao menos sete pessoas. À época, tanto o governo do Estado, comandado pelo governador Márcio França (PSDB), quanto a prefeitura da capital, então sob gestão de João Doria e Bruno Covas (ambos do PSDB), fizeram a promessa: todos que perderam seus tetos receberiam auxílio-aluguel. Passado quase dois meses da tragédia, as famílias permanecem acampadas no Largo. Não bastasse a situação insalubre do local, com a ameaça de retirada dos banheiros químicos ali instalados, há relatos de que a promessa da bolsa a todos e todas não foi cumprida.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    O grupo diz que só sairá do Paissandu após todos serem contemplados com o auxílio ou com uma moradia definitiva. Parte das pessoas, instaladas no entorno da igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, reclama não ter conseguido sacar a segunda parcela do benefício, no valor de R$ 400, que deveria ter sido paga no início desta semana. À reportagem, acampados confirmaram ter recebido, ainda em maio, R$ 1.200, conforme acordado com a prefeitura. Pelo trato, segundo a gestão municipal, os contemplados com este montante deveriam deixar o local e procurar uma nova moradia, sob o risco de bloqueio do benefício.

    Um dos casos mais curiosos em relação ao não pagamento da segunda parcela é o do casal de vendedores ambulantes Adilson da Silva, de 48 anos, e Glivalda Conceição dos Santos, de 47. Moradores há mais de um ano do imóvel palco da tragédia, junto do filho Gabriel, de 4, eles foram impedidos de receber os R$ 400. Segundo eles, um erro na grafia do nome da mulher fez com que o auxílio a qual têm direito fosse bloqueado.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    “Fomos até a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano) para receber o cheque de R$ 400 e disseram que o nome da minha esposa está errado, que falta uma letra ‘S’ no Santos, já que o funcionário escreveu Santo”, conta Silva. Órgão administrado pela gestão do governador Marcio França (PSB), a CDHU é a responsável por fazer o pagamento após cadastro realizado pela Prefeitura, sob gestão de Bruno Covas (PSDB).

    O esposo de Glivalda conta que não vê a hora de sair da praça. Ali, eles sofrem com a presença constante de ratos e pombos, além da falta de estrutura – os banheiros químicos instalados no acampamento estão sujos e um forte cheiro de urina predomina nos quatro cantos do Largo. Mesmo com um valor do benefício fora dos padrões para pagamento de um aluguel em São Paulo, Adilson explica que espera receber a verba e tentar complementar com o que recebe no trabalho. Assim, conseguirá ir para outro lugar. “Meu intuito não era pegar esse dinheiro, eu não estou aqui porque estou brincando. Meu intuito é um imóvel para conseguir pagar as prestações dele. Prestações adequadas que eu tenha condições de pagar”, explica.

    Aliado ao não recebimento do auxílio, a tentativa de resolver a situação tem tirado o sono da família, já que o pouco dinheiro que ainda os restam têm ido para as passagens de ônibus. “Gastamos mais de R$ 16 no transporte para irmos em vários postos da Prefeitura e do Estado resolver a situação e, até agora, nada. Você vê até que ponto estão fazendo conosco. Uma falta de consideração e bom senso. Como coloca um funcionário que não sabe escrever um nome? Está faltando gente preparada para trabalhar”, completa o ambulante.

    Antes de morar no terceiro andar da ocupação feita no edifício Wilton Paes de Almeida, o casal e a criança viviam em uma casa alugada na Vila Zilda, na região do Jardim Tremembé, na zona norte da capital. “Pagávamos R$ 600 de aluguel e, quando passou para R$ 800, não conseguimos pagar mais. Eu choro a toda hora. É uma situação difícil para tomar banho, ir ao banheiro… É lamentável. Espero que essa situação seja resolvida, nós queremos ter um endereço fixo. A Prefeitura tinha que arrumar um local, não um albergue”, desabafa Glivalda.

    Enquanto a mulher conversava com a reportagem, ela perguntava constantemente as horas. Só depois a mãe de Gabriel explicou o motivo: entre às 9h e 10h, o Sesc 24 de Maio, a poucos metros de distância, autoriza a entrada de mulheres com filhos pequenos para eles tomarem banho em seus vestiários.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    ‘Caso pontual’

    Em contato com a reportagem, a prefeitura de São Paulo nega que tenha descumprido o prometido. Alega que os pagamentos que não foram feitos são exclusivos a quem não comprovou que morava no prédio ou, então, não saiu da praça após ter recebido a primeira parcela, de R$ 1.200, liberada dias depois da tragédia – soma de três auxílios de R$ 400. Em nota, o governo municipal classificou a situação da família de Glivalda como “pontual” e afirmou que o valor já está liberado para ser sacado.

    A situação dos acampados no Largo Paissandu, que já é considerada por eles como ruim, a tendência é de ficar ainda pior. Uma ação da Prefeitura deve remover até o próximo sábado (30/6) os 10 banheiros químicos que foram instalados no local após pedido da Defensoria Pública. Na visão do governo municipal, a determinação judicial que autoriza a retirada dos sanitários móveis pode contribuir para uma saída pacífica dos ocupantes.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Na última quarta-feira (27/6), equipes de limpeza da prefeitura regional Sé tentaram mais uma vez limpar com água e produtos químicos o chão de pedra portuguesa do Largo. Assim como havia ocorrido na semana passada, os acampados resistiram em remover suas barracas para a limpeza, limitando aos funcionários a apenas varrer o local. O prefeito regional da Sé, Eduardo Odloak, acompanhou por alguns minutos o trabalho de zeladoria e foi embora quando hostilizado pelos acampados.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Contatada pela Ponte, a Secretaria Municipal de Habitação argumentou que grande parte das famílias no Largo do Paissandu “já não é oriunda do edifício” e que trabalha para a mediar a “saída voluntária dessas pessoas”, segundo a pasta, atraídas pela “expectativa” de que a permanência ali “gere atendimento habitacional e também pelas doações feitas no local”.

    Segundo a secretaria, 132 famílias estavam acampadas no Lago no dia 22 de junho, sendo que 71 delas comprovaram vínculo com o edifício que desabou. “Para o saque da segunda parcela, a família tem que comprovar que deixou a área de risco e que esteja utilizando do benefício para custeio com moradia adequada”, explica a pasta, comandada pelo secretário Fernando Chucre (PSDB).

    “O município reforça que vai atender todas as famílias originárias e vítimas do desabamento com auxílio até a entrega e produção da moradia definitiva, respeitando a fila existente no município (28 mil famílias estão recebendo auxílio e aguardando moradia). Famílias que não comprovarem vínculo com a ocupação do antigo edifício Wilton Paes de Almeida não serão priorizadas ou incluídas no atendimento habitacional definitivo”, sustenta a secretaria, dizendo que “os casos pontuais” de quem não comprovou ligação com a ocupação que ruiu podem sacar o benefício.

    Por outro lado, a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) explica que 224 famílias do edifício estão cadastradas para receber o auxílio de R$ 400 mensais. “Essas famílias foram cadastradas pela Prefeitura de São Paulo e o nome dos responsáveis foram enviados para que a CDHU realizasse o pagamento do benefício. Os valores referentes à segunda parcela do benefício estão disponíveis na rede bancária, bastando ao beneficiário a apresentação de documento de identidade”, explica a companhia, gerida pelo presidente Humberto Emmanuel Schmidt Oliveira.

    Segundo a companhia, o caso de Glivalda Conceição dos Santos “está solucionado e sua parcela está disponível para saque” e reafirma que as famílias aceitaram “obrigações” ao assinar o termo, se referindo à saída do Largo. “Assim, para continuidade do pagamento do benefício em futuras parcelas, devem comprovar, junto à Prefeitura, que o benefício está sendo utilizado para a finalidade proposta, ou seja, para auxiliar o custeio de uma moradia adequada”, argumenta a CDHU.

    Na manhã desta sexta-feira (29/6), os moradores divulgaram uma carta aberta, com a mensagem abaixo:

    “CARTA ABERTA DOS MORADORES DO LARGO DO PAISSANDU

    São Paulo, junho de 2018.

    Somos sobreviventes de uma das maiores tragédias da história da cidade de São Paulo. No dia 1º de maio o Edifício Wilton Paes de Almeida, onde morávamos com nossas famílias, sofreu um terrível incêndio. O fogo devorou tudo muito rápido, corremos para nos salvar e salvar nossos vizinhos, mas Selma, Eva, Gentil, Francisco, Alexandre, Valmir e os pequenos Werner e Wendel não conseguiram escapar a tempo e perderam suas vidas neste triste dia.

    Com o desabamento do prédio além dos amigos perdemos documentos, geladeira, cama, fogão, comida, roupas, brinquedos… vidas inteiras que ruíram. Não sobrou nada além de nós mesmos, nossos amigos, familiares e vizinhos.

    Diante da tragédia procuramos nos organizar e naquele momento de desespero encontramos como única solução para continuar nossas vidas o chão da praça do Largo Paissandu em frente ao edifício em que morávamos.

    A repercussão inicial da tragédia no país e no mundo contribuiu para que recebêssemos apoio e doações de diversas entidades e de milhares de pessoas de todo Brasil. Barracas, água, comida, colchões, cobertores, roupas, fraldas, brinquedos e itens de higiene chegaram aos montes para nos dar alguma condição de sobrevivência em um chão que ainda continha poeira dos escombros e um ar que cheirava a fumaça.

    Apesar de todo apoio não recebemos uma solução para nosso problema de moradia. O presidente do país, o governador do estado e o prefeito do município estiveram na praça e viram a situação extremamente difícil em que vivemos mas não providenciaram nenhuma solução.

    Hoje, quase dois meses após o incêndio, ainda estamos morando na praça. Somos 126 famílias que lutam por uma moradia digna a qual temos direito. A bolsa aluguel de 400 reais adotada como solução pela prefeitura para parte das famílias nos levará novamente a morar em locais inseguros e em condições precárias como as que vivíamos no edifício Wilton Paes de Almeida. Os albergues do município, outra solução apresentada pela prefeitura, não permitiria que nossas famílias permanecessem unidas.

    Separar crianças de suas mães e pais é algo impensável! Preferimos viver na praça, no frio, na chuva e em péssimas condições de proteção do que correr o risco de vivenciarmos outra tragédia ou ficarmos longe de nossos filhos.

    Que se faça valer o direito de toda pessoa a uma moradia digna e adequada presente na Constituição deste país e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Que a especulação imobiliária e concentração de propriedades nas mãos de poucos não prevaleça sobre a vida da maioria, que como nós ou vive no chão das praças e ruas do centro ou áreas de risco na periferia da cidade.

    Agora pedimos mais uma vez a ajuda de todos, não mais com doações e apoio na organização do acampamento, mas na sensibilização dos gestores públicos para que garantam o direito à moradia de todas as pessoas que sobreviveram a esta tragédia e perderam sua moradia.

    Ex-moradores do Edifício Wilton Paes de Almeida e atuais moradores do Largo Paissandu”.

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