Família contesta PM por morte de aposentado no quintal de casa em Santa Catarina

    João Fernando Monteiro foi atingido por três disparos, na frente da filha adolescente, no quintal da casa onde morava há 27 anos em Guaramirim (SC)

    João Fernando Monteiro foi atingido por três disparos | Foto: arquivo pessoal

    As três mulheres da família Monteiro seguem sem conseguir resposta para a pergunta que não cessa há mais de uma semana: por que atiraram nele para matar? No último sábado (15/9), João Fernando Monteiro, 48 anos, foi morto com três tiros no quintal da própria casa, na Vila Freitas, em Guaramirim, norte de Santa Catarina. As balas que atingiram o aposentado partiram da arma de um policial militar. A companheira de João, Sandra Jacobi Monteiro, e as filhas Kaline Monteiro, 23 anos, e uma adolescente de 15, que presenciou a morte do pai, ainda não conseguiram as respostas.

    Aposentado há dois anos depois de trabalhar por mais de 25 na maior empresa de Jaraguá do Sul, João tinha duas armas em casa, uma garrucha já sem balas e uma pistola .380, ambas legais e registradas. Naquela tarde, por volta das 17h, assim como fazia praticamente todos os dias, João foi ao “Bar do Tião”, estabelecimento próximo de sua casa, onde, inclusive, a sobrinha trabalha. Era lá que ele passava o tempo jogando cartas com os vizinhos e amigos da vila na qual morava há cerca de 27 anos.

    Naquela tarde, João se envolveu em uma discussão com um vizinho, que também estava no bar, e por volta das 20h voltou para a casa para buscar uma arma. Quando voltou ao local, a sobrinha já havia dispersado os clientes e fechado as portas do bar. A filha de João, Kaline Monteiro, conta que ele ainda tomou mais uma cerveja com a sobrinha, que procurou acalmá-lo. “Ele ainda ficou lá, com as portas fechadas, tomou uma cerveja e ela pediu para ele se acalmar e voltar para casa, e foi o que ele fez. Ele subiu pra casa”, conta.

    Porém, nesse meio tempo, a polícia foi acionada e, ao entrar no quintal de casa, João foi abordado. É neste ponto que as versões divergem e a história contada pela Polícia Militar revolta a família. “Falaram que ele subiu fugindo da polícia, que ele atirou, isso é um absurdo e, inclusive, muita gente viu ele subindo sozinho, sem arma na mão”, diz Kaline.

    Ao entrar no pátio, onde já havia deixado a garrucha encostada no muro, João recebeu ordem de parada dos policiais, que chegaram com as luzes da viatura apagadas, conta Kaline. A filha mais nova de João acompanhou toda a ação da porta e viu quando o pai foi atingido e tombou no terreno de casa. Ao ouvir a ordem policial, João parou e ergueu as mãos, conforme solicitado, de acordo com a filha mais nova. Depois disso, pediram que ele “jogasse as armas no chão”. Segundo a família, a garrucha, que estava no muro, foi colocada no chão, e ao levar a mão até a cintura para entregar a outra arma, o aposentado foi atingido por três disparos em sequência. O primeiro atingiu a mão, atravessou o pulso, o cinto e atingiu a região abdominal, o segundo acertou o abdômen e o terceiro a região do peito.

    Cinto de João atingido pelos disparos da PM | Foto: arquivo pessoal

    “A minha irmã correu para dentro de casa e a mãe tentou ir pra fora. Ela [irmã] empurrou a mãe pra dentro de novo e a hora que saíram, o pai estava caído no chão, sangrando. Elas correram na direção deles e os policiais apontaram as armas para elas dizendo que ou voltavam para trás ou eles iriam atirar, que elas não poderiam chegar perto. Imagina, tu ver o teu pai, o teu marido no chão, sangrando e não vai querer acudir?”, diz.

    Cerca de 15 minutos se passaram até que a ambulância chegasse para prestar atendimento. João foi levado ao Hospital Santo Antônio de Guaramirim e, na sequência, foi transferido para o Hospital São José, onde morreu. “Não deu nem tempo [de realizar qualquer procedimento]. O médico disse que estourou tudo por dentro”, conta a filha.

    Segundo o atestado de óbito, a morte ocorreu às 23h, menos de três horas após ser baleado pela PM. Assinado pelo médico Giovani Waltrick Mezzalira, o documento aponta como causa da morte os “ferimentos por arma de fogo abdominal, choque hemorrágico, rotura de segmentos intestinais, rotura do mesentério e vasos”.

    Marca de tiro no portão da casa onde João Monteiro viveu por quase 30 anos | Foto: arquivo pessoal

    A versão policial é de que João não teria obedecido a ordem de parada e também teria sacado a arma para atirar contra os policiais, motivando a ação. O chefe de comunicação do 14º Batalhão de Polícia Militar, major Aires Volnei Pilonetto, se manifestou afirmando que o comando não dará declarações antes da conclusão do Inquérito Policial Militar 1492, aberto pelo Comando Regional para apurar a ocorrência.

    Apesar disso, Pilonetto frisou que “as pessoas precisam respeitar, acatar as ordens emanadas dos policiais com o risco de sofrerem as consequências do fato. Infelizmente neste caso, não foi acatado e sofreu as consequências. Essa questão do excesso, isso, se houve, vai ser apurado. Aparentemente está tudo dentro do normal”. O major afirmou ainda que há uma onda crescente no país de pessoas “até pessoas de bem, acreditando que a Polícia Militar deve ser muito comedida, muito retraída, que os policiais militares no seu trabalho devem ser muito comedidos e retraídos e agindo dessa forma nós não conseguimos entregar, se agíssemos sempre dessa forma, nós não conseguiríamos entregar segurança pública às pessoas”, ressaltou.

    O chefe de comunicação finalizou dizendo que “não existe outra forma de fazer segurança que não seja pautada na técnica e pautada na preservação da vida, principalmente dos policiais, como foi nesse caso. O processo em questão vai ser analisado e apurado e, se teve alguma coisa equivocada, quem se equivocou vai ser responsabilizado na medida do equívoco”, encerrou.

    A família contesta a versão e alega total despreparo policial. “Não deu nem tempo, no primeiro tiro eles poderiam ter parado, o pai não reagiu, o pai ergueu as mãos como pediram. A hora que mandaram ele retirar a outra arma, porque ele já tinha deixado a garrucha no chão, eles atiraram, não deu nem tempo de reação”, lamenta Kaline.

    Ela conta que o pai se mudou para Guaramirim há cerca de 30 anos, quando desembarcou na cidade vindo do município de Dois Vizinhos, no Paraná. De lá para cá, fez muitas amizades na Vila Freitas, local em que morava há 27 anos e onde criou as duas filhas. Para ela, a imagem que a polícia quer imputar ao pai é motivo de revolta. “Falaram que ele reagiu, apontou as armas, saiu fugido, isso que me deixa mais revoltada, ele nunca iria reagir, não é dele, não é da personalidade dele”, conta. “Por que mandaram ele tirar a arma da cintura? Por que não veio um policial quando ele estava com as mãos erguidas tirar essa bendita arma da cintura dele? Isso não é certo. Foi totalmente errado”, questiona.

    Kaline afirma ainda que as armas estavam com o pai há muitos anos e a pistola era utilizada, inclusive, em um sítio de um amigo policial. “Eles atiravam em alvos”, afirma. Ainda sem saber ao certo qual caminho seguir, a família não pretende deixar o caso passar em branco. Para Kaline, o despreparo policial resultou na morte do pai, que se preparava para construir a calçada da igreja da comunidade, que fica ao lado da casa da família. “Eles são totalmente despreparados, esse cara é despreparado pra fazer uma coisa dessa. Primeiro, ao invés de falar, perguntar, ele atirou. Ele mandou fazer uma coisa e o pai seguiu, ele iria tirar a arma da cintura e nem deu tempo de ele chegar a pegar pra soltar e ele [policial] já atirou. Então foi despreparado, totalmente despreparado. A gente tem respeito, são policiais, só que é triste, agora tu olha [pra eles] e se bobear um colega deles assassinou teu pai”, ressalta, indignada.

    Ela declara que deve procurar a Corregedoria da PM nos próximos dias e enfatiza que, embora os policiais tenham ameaçado a mãe e a irmã no dia da morte de João, a família não teme represálias e quer justiça. “A gente sabe que não fez coisa errada, não tem porque ter medo. A gente sabe, o pai não era disso, ele nunca iria reagir. Nós vamos atrás, essa pessoa vai ter que ser responsabilizada, não sei se retirada ou afastada, ou mudada de posto, não sei o que eles fazem, mas não pode ficar na rua. Agora foi meu pai, daqui um tempo pode ser o pai de outra, o marido de alguém. Não tenho medo. Nem eu, nem minha irmã, nem minha mãe. O que precisar para ser feita justiça, enquanto nós tivermos recurso, o que nós pudermos fazer, nós vamos fazer. Tudo o que tiver ao nosso alcance”, finaliza.

    Inquérito Policial Militar vai apurar caso

    O sargento da Polícia Militar, Elisandro Lotin, explica que a abertura do IPM (Inquérito Policial Militar) é um procedimento obrigatório, legal e normal, visando justamente investigar o que ocorreu durante o caso. “Em qualquer situação, principalmente naquela em que ocorre um óbito, abre-se um IPM, o qual, no final, concluirá se houve excesso dos policiais ou se eles agiram de acordo com o que prevê a legislação”, enfatiza.
    Ele explica ainda que, no país, não há uma lei específica que detalhe quais os procedimentos de uso da força pela polícia, com regras a serem seguidas quando da formação e treinamento do policial. “Há, sim, aspectos gerais que legitimam a força policial, conforme previsão do artigo 23 do Código Penal e, a partir destes aspectos gerais, ocorrem os treinamentos”, diz.

    Além do Código Penal, em que há previsões legais que legitimam a força policial, mas também limitam o seu uso, e do Processo Penal Militar, que também autoriza o uso da força, embora não detalhe como ela será empregada, existem regramentos internacionais dedicados à atuação das polícias, como o Código de Conduta para Encarregados da Aplicação da Lei, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1979, que possui oito artigos descrevendo as limitações, especialmente em relação à atuação de policiais, explica o sargento.

    “Outro documento internacional de extrema importância são os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo, adotados no Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Infratores, realizado em Havana, Cuba, em 1990, com o objetivo de proporcionar normas orientadoras aos Estados-membros na tarefa de assegurar e promover o papel adequado dos encarregados da aplicação da lei”, complementa.

    Lotin reitera ainda que o IPM irá verificar se houve ou não abusos ou excessos na ação policial que culminou com a morte de João Fernando Monteiro. “O uso da força letal ou não, justifica-se como legítimo desde que obedeça aos parâmetros de razoabilidade e de necessidade, ou seja, proteger a vida do policial ou de alguém”, finaliza.

    *Reportagem publicada originalmente no Paralelo Jornalismo

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